Kubi ou como desconstruir a mística samurai

Takeshi Kitano esbanja vitalidade em plena despedida — se é que será, tomara que não.

Rodrigo Torres
Revista Cine Cafe
3 min readJul 11, 2024

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30 anos para fazer isso?! Que beleza… Ou melhor: que surpresa!
Pois, ironia à parte, Kubi (2023) é mesmo um filme muito bom. Mas uma coisa é fato: o autor Takeshi Kitano subverte totalmente as expectativas criadas lá atrás.

Kubi é um projeto antigo e muito aguardado, comparado em seu nascedouro com o então recente Ran (1985). O próprio Akira Kurosawa tinha grandes expectativas e dizia que dali poderia sair um filme à altura de seu outro clássico, Os Sete Samurais (1954).

A obra é grandiosa, sim, e aborda um período importante da história japonesa, que marca o processo de unificação do país. E o que que Takeshi Kitano faz? Um longa-metragem da mais pura e frontal iconoclastia. Que sabor…

Kitano, ao centro sentado, brilha também na atuação. (Kubi, 2023)

Oda Nobunaga foi o primeiro grande conquistador do Japão feudal. Mas foi vítima do famoso Incidente de Honnō-ji. Para justificar o fim de seu regime, e se valendo de controvérsias históricas, Kitano narra os motivos e repercussões desse evento com uma verdadeira desconstrução da mística samurai.

Disciplina, honra, lealdade e frugalidade são valores que passam longe da trama. Imorais, vaidosos, imaturos, hedonistas, devassos, ofensivos, covardes… Os samurais de Kubi são uns escrotos! Mesmo sendo todos personagens reais em eventos e batalhas importantes na construção histórica do Japão.

E Kitano não brinca com isso apenas detrás das câmeras. O diretor interpreta ninguém menos que o sucessor de Nobunaga, o segundo “Grande Unificador” do Japão, Toyotomi Hideyoshi — e faz questão de transformá-lo no personagem mais idiota da trama.

O título “pescoço” é explicado já na primeira cena de Kubi. A banalização da violência vira piada reiterada e um meio de desconstruir a aura dos samurais e, consequentemente, questionar mitos de fundação do Japão. Iconoclastia na veia. (Kubi, 2023)

Dizem que Kubi será o último filme da carreira de Takeshi Kitano. Terá sido uma bela despedida. Como o título “pescoço” e sua piada reiterada denunciam, com um épico às avessas, que banaliza os feitos dos samurais e a violência do período.

Kubi é um filme nada preocupado em construir grandes ícones ou batalhas e muito interessado em imaginar, de forma radical, as violências, traições e os jogos de poder que resultaram no Incidente de Honnō-ji. Kitano faz isso se divertindo muito, e isso liberta a criatividade e vitalidade do autor em seu canto do cisne.

Obras citadas:

Kubi (2023), de Takeshi Kitano; Os Sete Samurais (Shichinin no samurai, 1954) e Ran (1985), de Akira Kurosawa.

Texto originalmente publicado no dia 17 de outubro de 2023, em cobertura do Festival do Rio 2023.

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Rodrigo Torres
Revista Cine Cafe

Crítico de cinema, membro da Abraccine. Letrólogo e jornalista formado em Comunicação e UX. Amo artes, esportes, geopolítica e todo tipo de papo de bar.