Leigh Whannell, um autor de terror

Como o roteirista de franquias filmou horrores pessoais.

Bernardo Brum
Revista Cine Cafe
9 min readJun 7, 2024

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(Jogos Mortais, 2004)

Muitos dos destaques do cinema fantástico de horror na década de noventa foram de diretores mais amadurecidos, como o Pânico (1996), de Wes Craven, Drácula de Bram Stoker (1992), de Francis Ford Coppola e O Silêncio dos Inocentes (1991), de Jonathan Demme.

Entre carreiras que despontaram no período, já é preciso esmiuçar mais um pouco, apesar de conseguirmos apontar M. Night Shyamalan com seu O Sexto Sentido (1999) como um exemplo óbvio e Cronos (1993), de Guillermo del Toro, como um mais obscuro. É nesse sentido que Jogos Mortais (2004) tornou-se um filme importante: um blockbuster de uma nova geração.

Imperfeito, mas com profundidade temática: Sobrenatural: A Origem. (Blumhouse Productions)

Sim, pois tal filme revelou James Wan, cineasta que depois deslancharia outras franquias para além da de Jigsaw, como Sobrenatural (2011) e Invocação do Mal (2013). Wan fez tanto sucesso que carimbou seu passaporte para fora do terror, comandando Velozes e Furiosos 7 (2015) e Aquaman (2018). E além disso, revelou seu roteirista, Leigh Whannell.

O australiano Whannell acompanhou Wan de perto, escrevendo além dos três primeiros Jogos Mortais (onde também atua como o fotógrafo fotógrafo Adam Stanheight) todos os capítulos até agora da saga Sobrenatural. Nessa saga que começou a colaboração dos dois com a empresa de Jason Blum que Whannell iniciou sua carreira na direção, com Sobrenatural: A Origem (2015). Apesar da recepção mista, seu primeiro filme conseguiu alguns elogios, com o Rotten Tomatoes afirmando que o filme “goza de profundidade temática surpreendente”. Katie Rife, do The A.V. Club, pontuou que o filme tem “um tema de luto” guiando a narrativa, afirmando assim como o agregador supracitado uma “temática rica”, apesar de ser muito “baseado em jumpscares”.

Entre o primeiro e o segundo Sobrenatural, Leigh Whannell escreveu um roteiro chamado STEM, um trhiller de ficção científica que, em 2017, teria suas filmagens iniciadas e seria lançado como Upgrade: Atualização (2018). O filme exibe a máxima de Jason Blum: fazer muito com pouco. Produzido pela bagatela de $3 milhões de dólares (a título de comparação, só no mesmo ano a Disney lançou quatro filmes entre os cinquenta mais caros já feitos).

Você venderia sua alma por vingança? O protagonista de Upgrade: Atualização enfrenta o dilema. (Blumhouse Productions)

Fausto cyberpunk

Upgrade é sobre um homem que, após perder a esposa e a mobilidade do corpp após um assalto, aceita ser cobaia de uma revolução tecnológica de um empreendedor inovador: STEM, uma inteligência artificial implantada que devolve os movimentos perdidos. O implante evolui rapidamente, identificando o desejo de vingança do seu protagonista e oferecendo a identificação e a possibilidade de matar os agressores.

Apesar de ser seu segundo filme como diretor, talvez tenha sido, para muitos, o debute de Whannell, o filme que realmente ligou uma obra a um nome. O Rotten Tomatoes elogiou o “humor afiado e a história bem-contada”. Ed Potton, do The Sudnay Times UK, descreveu como uma “sátira perigosamente perto da realidade”. Já Emily Yoshida descreveu como o tipo de filme “que não fazem mais, do tipo que deixariam Cameron e Carpenter orgulhoso”.

Upgrade é uma espécie de Fausto pós-moderno, o tipo de filme que bem poderia ser um episódio de Black Mirror em sua melhor fase: um tema relevante, tratado de maneira pungente. Em uma discreta abordagem cyberpunk, que muito se assemelha ao nosso universo, porém levemente desfigurado por tecnologia, Leigh Whannell exibe certas marcas estilísticas, como uma composição simétrica e um uso algo expressionista de filtros, criando um mundo frio e distante, colorido apenas pelas emoções de seu personagem.

Mesmo no universo da ficção científica, Whannell não deixa de dever muito ao terror, dizendo haver uma espécie de “metrônomo de horror” em seu filme, onde “está quieto, está tenso e então explode”. Isso acrescenta uma nova camada que serve à narrativa. Nessa mesma entrevista ao TechCrunch, o diretor e roteirista comenta seu principal interesse sobre: Eu acho que a versão super-herói desse filme que alguém recebe alguma coisa (…) já foi feita muitas vezes. Então eu achei que seria mais interessante fazer a versão Taxi Driver disso, a versão que você percebe que o cara malvado está no seu corpo e a luta não é entre você e forças externas”.

Essa maturidade de um filme para o outro certamente colocou Leigh Whannell como uma das novas promessas do cinema fantástico (ainda que estejamos falando de um artista que já passou dos quarenta anos). Afinal, seu filme usa artifícios estilísticos a favor da narração de uma história e, ao lado de Jordan Peele, que dentro da mesma Blumhouse lançara no ano anterior Corra!, e outros nomes como Robert Eggers (A Bruxa, 2015, O Farol, 2019) e Ari Aster (Hereditário, 2018, Midsommar — O Mal Não Espera a Noite, 2019) lotou o mercado no espaço de alguns anos de opções de filmes do gênero com um lado, digamos assim, mais reflexivo.

E dessa forma, consolidava o olho persistente de Jason Blum em dar uma nova faceta para o terror, conseguindo novas abordagens até quando o material não parecia muito promissor. Foi assim, mais ou menos, que Whannell colocou as mãos em seu próximo projeto. Os cinéfilos que acompanham as notícias devem lembrar que a Universal queria, aos moldes da Marvel, criar um universo compartilhado com seus clássicos monstros. Porém, A Múmia (2017) foi um fracasso de crítica e desapontamento de bilheteria tão grande que levou ao engavamento de muitos projetos subsequentes. Porém, uma carta na manga: com contrato de produção com Jason desde 2014, a Universal colocou seus desamparados projetos a serviço de Blum.

Assim, o filme seguinte do Universo Sombrio (ou Dark Universe), o primeiro sob a tutela da nova casa, seria O Homem Invisível, lançado em 2020. Dispensado o mega-astro Johnny Depp, foi contratada para o lugar de protagonismo Elizabeth Moss (O Conto da Aia). Muitos ficaram surpresos: então o filme O Homem Invisível teria na verdade, uma mulher perdendo os valores ao ficar dotada da invisibilidade?

O Homem Invisível: agressores impunes e vítimas castigadas. (Blumhouse Productions)

Vítimas invisíveis

Mais ou menos. Em entrevista à ScreenRant, Leigh Whannell expressou seu interesse no projeto: “acho que o que me interessou no projeto foi a ideia de tornar O Homem Invisível assustador. Não acho que já tenha visto um filme dele realmente terrível. (…) Então, meu primeiro pensamento foi “Como faço esse caráter realmente arrepiante e terrível? E me deixou pensando: ‘Tenho que fazer ele misterioso’. O filme não pode ser sobre O Homem Invisível; precisa ser sobre a vítima do Homem Invisível, a pessoa que ele persegue. E foi basicamente isso”.

Basicamente isso — dessa forma, a nova versão do Homem Invisível não é mais sobre um homem comum que perde sua referência moral ao ser dotado de invisibilidade — mas pior: o que uma pessoa já perversa pode fazer quando dotada de tal capacidade. Dessa forma que veio o protagonismo de Elisabeth Moss como Cecília, apelidada de Cee (mesmo sonoridade de See, ou ver, em inglês), uma mulher que foge do marido, um abusivo cientista que a agride e, ao descobrir que o mesmo desenvolveu um uniforme transparente para continuar a persegui-la, encontra-se desacreditada pelo resto da sociedade. A vítima também é invisível, mas de maneira alegórica.

O insight de Whannell cria uma metáfora social poderosa, já que os números alarmantes de violência contra mulher ao redor do globo muitas vezes não encontra ressonância entre as autoridades até ser tarde demais. Assim, o diretor evidencia uma das principais potencialidades temáticas do horror: metaforizar questões sociais através do emprego dos monstros, que aparecem como avatares do medo. No caso, o medo de sofrer em silêncio e não ser acreditado.

Nesse sentido, outra questão que Leigh Whannell desenha nesses dois filmes é o transumanismo, a defesa da integração da alta tecnologia para a resolução de questões do cotidiano. Como de hábito na ficção científica, em temas tão diversos como 2001 — Uma Odisseia no Espaço (1968) e Gattaca — A Experiência Genética (1997), o tom é de cautela, pois o primeiro filme aborda como dar vazão aos seus instintos revanchistas, através da tecnologia, pode no final das contas consumir sua mente. No filme seguinte, o desenvolvimento da tecnologia mostra como o seu uso perverso é empregado de forma fácil e impune, em um mundo injusto onde vítimas são consideradas loucas ou culpadas? E como, em um gênero tão ultimamente mercadológico quanto a ficção científica e horror, implementar esse tipo de visão?

“Era um objetivo real e um sonho meu fazer isso”, disse Whannell para a TechCrunch sobre Upgrade: Atualização. “Fazer um filme que gozasse da construção de mundo da ficção científica mas também tomasse vantagem da liberdade criativa da independência. (…) Como modelo, usei os filmes de ficção científica dos anos 80 que eu cresci com. Usei o primeiro Exterminador do Futuro (1984) como um grande exemplo, porque se você estudar o filme cena-a-cena, a ficção científica e a tecnologia é distribuída judiciosamente e esparsamente. É o tipo de filme enxuto de matança e perseguição vestido em uma pele de ficção científica e eu amava isso”, conclui.

Whannel dirige uma das grandes atrizes da atualidade: Elisabeth Moss. (Blumhouse Productions / Dark Universe)

Estilística, temática e autoria

Em si, essas declarações constatam uma preocupação nitidamente autoral, uma leitura temática de elementos do real regurgitados em uma estilística própria. A filosofia de composição de atmosfera já vista em Upgrade é reforçada em O Homem Invisível, um filme onde o diretor-roteirista nitidamente brinca com nossas expectativas e passa boa parte do filme tentando nos fazer duvidar da protagonista. Para isso, a força não está nos textos dialogados, mas na realização arquitetada por imagens. Em conformidade com a proposta sugerida — existe ou não um Homem Invisível? — são frequentes os longos planos, os silêncios. A estratégia, geralmente contemplativa, é um substituto funcional dos habituais cortes, movimentos de câmera e música tensa. Não haver nada após um longo exame é terrível e põe o espectador em dúvida.

Outra marca que o diretor parece cultivar, já nas duas obras que jogaram holofote sobre seu trabalho são fortes reviravoltas que, se marcam o seu trabalho desde o primeiro Jogos Mortais, nas obras em questão são fortemente divisivos. Upgrade carrega consigo um tom sombrio em seu final, inserindo um contexto de dúvida da realidade, já forçando ainda mais a história ao terror do que para a ficção científica, testando os limites de categorização.

O Homem Invisível segue um caminho contrário, reafirmando uma realidade posta em dúvida e quebrando um papel tradicional do arquétipo do sofredor no terror. Ainda que ancorado no passado em suas referências, Leigh Whannell demonstra uma disposição em mexer em figuras tradicionalmente respeitadas — se O Homem Invisível, ao longo da trama mexeu no escopo da história tradicional de Stevenson, sua conclusão mexe com uma liturgia tradicional do terror. E é justamente essa provocação nesses dois projetos que faz de seu projeto de cinema pertinente aos tempos atuais.

O sucesso de suas duas empreitadas na Blumhouse fez valer uma nova empreitada: seu próximo projeto confirmado é dirigindo Ryan Gosling em The Wolf Man, nova empreitada da clássica história tornada célebre em O Lobisomem (1941), de Lon Chaney. Desta feita, o material a princípio não parece resvalar no assunto da tecnologia. Ainda não há detalhes da trama e se o diretor manterá a clássica história de Larry Talbot no período vitoriano, mas dada as preocupações nos filmes anteriores, sobre dramas particulares e monstros interiores, e como o drama de licantropia parece encaixar-se nisso, dificilmente pode-se dizer que pareça um ponto da curva. E fica a sensação de prazer, ao lado de Peele, Eggers e Aster, de acompanhar a germinação e o florescimento de um novo e vigoroso cinema.

Obras citadas:

Pânico (Scream, 1996), de Wes Craven; Drácula de Bram Stoker (Bram Stoker’s Dracula, 1992), de Francis Ford Coppola; O Silêncio dos Inocentes (Silence of The Lambs, 1991), de Jonathan Demme; O Sexto Sentido (The Sixth Sense, 1999), de M. Night Shyamalan; Cronos (1993), de Guilherme Del Toro; Jogos Mortais (Saw, 2004), Sobrenatural (Insidious, 2011), Invocação do Mal (The Conjuring, 2013), Velozes e Furiosos 7 (Furious 7, 2015) e Aquaman (2018) de James Wan; Sobrenatural: A Origem (Insidious: Chapter 3, 2015), Upgrade: Atualização (Upgrade, 2018) e O Homem Invisível (The Invisible Man, 2020), de Leigh Whannell; A Bruxa (The Witch, 2015) e O Farol (The Lighthouse, 2019), de Robert Eggers; Hereditário (Hereditary, 2018) e Midsommar — O Mal Não Espera a Noite (Midsommar, 2019), de Ari Aster; A Múmia (The Mummy, 2017), de Alex Kurtzman; 2001: Uma Odisseia no Espaço (2001: A Space Oddissey, 1968), de Stanley Kubrick; Gattaca, uma Experiência Genética (Gattaca, 1997), de Andrew Niccol; O Lobisomem (The Wolf Man, 1941), de George Waggner.

Texto originalmente publicado no dia 31 de outubro de 2020, na edição nº 01 da Revista Cine Cafe.

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Bernardo Brum
Revista Cine Cafe

Jornalista, mestre em Comunicação, crítico de cinema.