Longlegs — “Viva, Satanás!”

Equilíbrio entre sobriedade e insanidade com o Satanás presente.

Ted Rafael Araujo Nogueira
Revista Cine Cafe
8 min readSep 11, 2024

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(Longlegs — Vínculo Mortal, 2024)

Mais um material que busca um recauchute acerca de aspectos nostálgicos de obras setentistas e noventistas, ainda assim buscando uma aura própria sem grandes pretensões. Suspense/terror/horror com investigação policial e diabo no meio. E o Nicolas Cage. O vínculo pelo oportunismo de um zeitgeist cultural é claro. Remeter a um visual saudosista de décadas, o que causa fascínio por um lado e serve ao roteiro por outro, já que tem influências a obras anteriores tais quais O Silêncio dos Inocentes (1991). Sim ele tem esse último como referência, mas não se trata de um desespero tal que vise uma comparação direta e obrigatória. Serve mais como uma homenagem, mas que seja refrescante ao gênero.

Não busca grandes reinvenções, mas aposta numa estética manjada e se faz funcionar dentro dela, dando vulto às suas escolhas, sejam elas baseadas na encenação ou em opções de montagem, que apontam para a caminhos objetivos para um material que envolva marmotas com o Lúcifer. Os usos de signos dos anos setenta são referencialmente divertidos, assim como tem em sua gênese proposições até horizontais com a construção da fita, como nos usos das músicas da banda T. Rex, que versam sobre tesões, agonias e agitos diversos — em contraste com o tom sombrio e atmosférico da trilha sonora original de Zilgi (Elvis Perkins). Pedidos sacanas sobre morte, psicodelia, bonecas e insanidade. Nisso se coloca dentro de uma esfera temporal a usar da indústria cultural (música e cinema dos 70; visual, cinema e direcionamento policial dos 90) de épocas distintas para montar sua própria gênese. A sujeira do cinema independente dos anos 70 busca se fazer presente assim como relações entre as cores, objetos e seleções de planos para lidar com as sensações proveniente de seus personagens, ao mesmo tempo que não estica a baladeira nesse quesito, apostando num limite dentro de uma sobriedade que poder-se-ia ser quebrada por algum arroubo/arrombo que fosse. E é nesse limite que mora um dos elementos de um crescente de tensão, já que num universo primordialmente corriqueiro, o sensacional pode dar as caras.

(Longlegs — Vínculo Mortal, 2024)

Teima em não dar este fenomenal abusivo. Não tanto quanto muitos poderiam querer. É um horror com certa visceralidade, que se utiliza do esquisito tanto como destruição e resolução. E não vai em cima duma necessidade de um exagero completo, deixando isso para elementos vagos propositadamente impostos aqui e acolá, e no desenvolvimento da protagonista. Fora o overacting estupendo de Nicolas Cage. Por isso há o aparecimento contínuo de vários elementos visuais na fita que denotem a presença no diabo. Seja em flashs em vermelho, ou então nos olhos do mal perambulando por sobre os capuzes cobertos dalgumas bonecas macabras. Ou bodes escrotos em sombra. Ou o 666. Já dá pra sacar aqui que há um uso esperto de diversos signos ao horror que tragam o diabo na jogada. O interessante é que o Longlegs — Vínculo Mortal (2024) se projeta sobre estses elementos desavergonhadamente, dentro de um espectro de que, sim, já sabemos o quantos essas porras já foram usadas nos mais diversos filmes. Cinema é reinvenção, cópia, tesão e cara de pau. Há uma famigerada busca por uma suposta originalidade impérvia, que não passa de um academicismo fuleiro travestido de uma busca pelo irreal do belo e maravilhoso artístico ineditista. Uma presepada do caralho. O gênero do terror inclusive, é esculachado por reciclar e repetir os mais variados trejeitos próprios seus. Não estou aqui fazendo um proselitismo do não-original, mas aguçando que a porra toda é válida. A depender de seus usos. Longlegs — Vínculo Mortal intenciona esses citados elementos de forma desavergonhada no conceito e cuidadosa na forma. Há quem creia que isto seja uma contradição, mas o é enquanto uma coerência desenvolvida com certa gaiatice. Mantem a aura de terror enquanto o apontamento de problemas internos dos personagens vai sendo delineado, assim como um crescente por uma busca por pequenas surpresas que o material pode proporcionar. E tendo como desajuste mor na figura do Nicolas Cage e seu Longlegs. Acaba por ser uma obra bem infame (o que não é ruim). Mas consciente de sua canalhice pela aposta cultural que visa abranger. E esse aspecto biltre não é uma fuleiragem. Em absoluto. É um ardil prático. Divertido. Daqueles esperados em fitas de orçamento mais limitado para driblar exatamente problemas próprios a sua existência, que aqui se convertem em questões estéticas e dramáticas. Um homenagear ao cinema independente de terror/horror/violência/esculhambação norte-americano setentista.

(Longlegs — Vínculo Mortal, 2024)

Os personagens são mostrados de maneira bastante centralizada nas imagens. Como se fosse um balé macabramente bem organizado pelo diretor Osgood Perkins, aqui em seu longa mais vistoso. As deturpações são outras. Não há o uso aqui do artifício distorcido óptico da imagem para se trabalhar sobre como um determinado personagem está horroroso em tela. O diabo perambula, mas não está explodindo tortamente. Mas há o uso de rimas visuais entre ações dos personagens em repetição a posteriori. Com Longlegs dirigindo seu carro e a protagonista vai dirigi-lo depois, e sob que condições ambos estão posicionados e como a câmera os capta. Transferências de demonização? Novamente, é um formato sóbrio e decidido que instila algumas opções de tensionamento que podem ser calculadas como contradições propositais. Funcionam. É um ajuntado organizado, mas que me falta uma anarquia. O material independente dos anos 70 era sobretudo anárquico. Transgressor. Que apontava no desavergonhar de sua proeminência muito frontalmente. O que há aqui é um rascunho dessa proposição. Uma obra que se coloca como terror sobre insanidade e demônio, peca pela falta de mais esculhambação. Mesmo que eu tenha pleno entendimento de sua concepção, faltou putaria e loucura. Inclusive para equilibrar melhor a tão citada sobriedade.

A junção dos elementos e escapes (apesar da falta de bagaço) deixa Longlegs — Vínculo Mortal delicioso de se acompanhar. Consegue nos encaixar numa trama simples de investigação esquisita, que vai caminhando por momentuns de tensão homicida aqui e acolá, que se estabiliza entre a brutalidade e o simbolismo supostamente semipsicodélico dalgumas escolhas. E esse tal equilíbrio doentio entre sobriedade e marmota, o mantém membranosamente gostoso de se contemplar. Maika Monroe como Lee Harker, tem a condutora da trama nas mãos, que serve de termômetro para o esquema de compensação entre sobriedade e doidiça que o filme propõe, afinal a investigadora do FBI tem uma espécie de olhar apurado sensitivo para a perseguição de suspeitos, além de envolvimentos anteriores com figuras nefastas. Isto tudo enquanto tenta simplesmente fazer o seu trabalho. O descontrole (moderado de início) de sua mãe também segue esta linha, assim doutros personagens. O Longlegs propriamente dito de Nicolas Cage é — de fato — a loucura intransigente que serve como ponto de exagero dessa fita. O ponto de angústia e falta de sentido inicial para que se cause um contínuo incômodo. Por isso suas aparições espaçadas na obram visam pontuar não só a existência da persona em si, mas a existência de um mal abusivo. Escroto. Já que o Cage já é tido como figura histriônica do meio e faz desse aspecto um operativo explosivo. Aqui usado com parcimônia (infelizmente, queria mais abuso), para plantar objetivamente o horror quando for necessário chocar. Causa e efeito via a manipulação sensorial. E Cage encarna perfeitamente uma figura de insana vilania, que atesta em sua personalidade quebrada e desconexa a identidade de um mal absorto em morte, na qual ele mesmo não precisa se explicar. Nisso temos palavras a esmo, canções escrotas, passando por perguntas sagazes e culminando em ritos satânicos. “Viva, Satanás”, ele diz.

(Longlegs — Vínculo Mortal, 2024)

Por que o diabo causa esse troço? Desde o momento em que as sociedades buscaram propor uma organização social que buscasse proteger a propriedade, a religião teve ainda mais respaldo. Organização social demanda restrições individuais para o bem coletivo, e a conscientização disto pode ser um dispêndio através do medo de condenação. Não cobiçar o próximo, principalmente o que pertence a este próximo. E quem mais seria a figura responsável pelas penitências e manutenção das mesmas pela eternidade senão a criatura principal usada para controle religioso? DIABO. A criatura aversa a um deus divino que numa lógica maniqueísta de bem e mal (o meu comentário muito superficial aqui é por sobre não só a crença nessa figura maléfica, mas como o ocidente cristão o trabalha) servia como explicação e promessa de martírio. E como é um aspecto milenar introjetado social-política-culturalmente que não tem data de validade para expirar. CÃO. Segue como sendo eterna ameaça nos recônditos diversos dos incautos. O filme nem aprofunda nada disso, ele não precisa. Esse mal já existe encalacrado nas mentes, e basta saber como usá-lo. BELZEBU. E esse pavor por um desconhecido tácito (lógico, não é visível ou táctil) do cristianismo é um problema para os próprios cristãos, que atestam como absurdo malefício este mesmo desconhecido. E esse vácuo de moralidade presente nele (sem limitações e de relacionamentos pecaminosos — foda-se o pecado) é desesperador para sociedades cristãs. TINHOSO. Afinal, a organização social das mesmas é ditada também por um senso de crença no qual se expõe e segue os ditames do que é certo ou errado, com promessas de severas desgraças caso os manuais aprovados não sejam seguidos. Dentro disso essa desconsolação cresce. CORNUDO. Como se sua existência dependesse mais de crença e medo do que a não-crença. Um alimento para SATÃ seria essa agonia? O cristão a se tremer inteiro por sobre uma entidade etérea que estaria presente, não para cuidar das malditas almas perdidas somente, mas um ser a buscar cooptar mais almas para o seu gado. SERPENTE. E aqui mora um drama grande. O diabo pairar na realidade terrena como conspurcador vívido do mal. Fosse só uma criatura de mera punição, não teria o mesmo impacto. Mas ele na área, o medo se amontoa. CHIFRUDO. Por isso o Longlegs — Vínculo Mortal aponta para deixar a capeta presente. MAU. A proximidade de um mal absurdo. É um tipo de cinema que escolhe o medo por um ponto com o maior mal etéreo do ocidente religioso. CÃO-TINHOSO. E a ameaça do diabo em proximidade é absolutamente aterrorizante. E nem precisa ser um puta filme climático e abusivo na satanicidade, mas se souber usar essa criatura numa junção de eventos que culminem em desgraças, tu já tem um terror de diabo. ANJO MAU. ANJO DAS TREVAS. LÚCIFER. CANHOTO. DEMÔNIO. JURUPARI. MAFARRICO. MALDITO. MALIGNO. MALVADO. PAI DO MAL. PRÍNCIPE DAS TREVAS. SERPENTE. TENDEIRO. TENTADOR. VIVA SATANÁS.

(Longlegs — Vínculo Mortal, 2024)

VIVA, SATANÁS!

Obras citadas:

O Silêncio dos Inocentes (Silence of the Lambs, 1991), de Jonathan Demme; Longlegs — Vínculo Mortal (Longlegs, 2024), de Osgood Perkins.

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Ted Rafael Araujo Nogueira
Revista Cine Cafe

Realizador marginal de cinema via banditismo urbano. Comentarista cinematográfico das melhores/piores e arcaicas fitas. Cinema sem frescura. Cinema. CINEMA