No Tempo das Diligências — o destino manifesto do faroeste

Excepcionalismo: a permissão do homem branco americano para matar e colonizar como um ato de heroísmo.

Rodrigo Torres
Revista Cine Cafe
8 min readJun 8, 2024

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(No Tempo das Diligências, 1939)

A história do faroeste como gênero cinematográfico quase se confunde com a do próprio cinema. Inventado em 1895 pelos irmãos Lumiére, o cinematógrafo era visto como um mero experimento científico até uns pioneiros mostrarem ao mundo o potencial da máquina para o entretenimento. Um deles foi Georges Méliès, ilusionista francês extremamente criativo, realizador do clássico Viagem à Lua (1902). Nos Estados Unidos, um curta provou que aquele instrumento caro poderia trazer viabilidade financeira e virar arte: O Grande Roubo do Trem (1903), produzido pelo inventor Thomas Edison e dirigido por seu operador de câmera, Edwin S. Porter.

Esse contexto era muito favorável em termos de produção e permitiu que O Grande Roubo do Trem fosse tecnicamente inovador em muitos aspectos: panorâmicas, zoom, montagem paralela, bonecos, dublês, filmagens externas e em cenários variados — elementos que trouxeram um dinamismo e um realismo inéditos, assim capazes de envolver seu espectador como nunca antes. Aliás, segue o conselho: separe 11 minutos do seu dia e assista ao filme hoje. Experiência que eu garanto ser única, divertida, principalmente se observada em retrospectiva e com atenção para identificar convenções que ficariam eternizadas. No entanto, um elemento fundamental para a transformação da obra de Edison e Porter num fenômeno no início do século 20 é alheia à sua primazia técnica: o fato de ser um western.

Viagem à Lua (1902), O Grande Roubo do Trem (1903).

O faroeste é considerado até hoje (e possivelmente será para sempre) o grande gênero americano. Um gênero também literário nascido para falar diretamente ao seu público: histórias típicas do seu país e ambientadas nele somente, sobre um passado glorioso, responsável pela expansão de seu território (então restrito a uma estreita faixa no leste) por todo um continente. Assim nascia um tipo de ficção dedicada a contar que o Oeste foi conquistado por bravos homens brancos em disputa com nativos selvagens e estrangeiros bandidos. Em outras palavras, um projeto muito bem-sucedido de construção da identidade americana. Que comunica perfeitamente uma ideia fantasiosa, mas muito bem disseminada por suas autoridades públicas e mentes pensantes, de que o estadunidense (padrão) era uma figura superior destinada a um futuro grandioso e, para isso, autorizada a massacrar o outro sem macular sua moral. Muito pelo contrário: agir violentamente em nome desse projeto de país era um dever cívico e patriótico.

O grande autor estadunidense a levar esse projeto adiante no cinema foi outro funcionário de Thomas Edison: John Ford, um menino de apenas 9 anos quando O Grande Roubo do Trem foi lançado. Aos 21, participaria do clássico O Nascimento de Uma Nação (1915) em uma figuração inglória: como um encapuzado da Ku Klux Klan. Por bem, ele logo deixaria esses papéis obscuros como ator (talentoso era seu irmão mais velho, Francis, grande responsável por seu ingresso no cinema) e se lançaria como diretor de cinema, com o curta O Furacão (1917). Foram quase 100 curtas, médias e longas-metragens de faroeste até que ele realizasse o que é considerado o modelo perfeito do western clássico: No Tempo das Diligências (1939).

John Ford no set de No Tempo das Diligências (1939) com John Wayne. (John Swope, 1938)

A identidade do faroeste

Dois símbolos definitivos do gênero são aqui lançados por John Ford: o Monument Valley, um vale no deserto que divide quatro estados (Utah, Colorado, Novo México e Arizona), e cujo monumento são montes de arenito que se tornaram cartão postal dos filmes de faroeste; e John Wayne, o herói definitivo do western, caracterizado por sua valentia, sua habilidade com armas, seu carisma com as mulheres e… sua branquitude. No Tempo das Diligências reúne também outras características essenciais do faroeste — a mocinha indefesa, os nativos selvagens e a glorificação da conquista do Oeste.

Este último aspecto é um dado importante que pode passar despercebido por sua sutileza. Mas devemos contextualizar que o filme (sobre um grupo de estranhos que, a bordo de uma carruagem apertada, enfrenta uma trilha acidentada, cheia de perigos, para chegar são e salvos a Lordsburg) é ambientado no exato ano em que a cidade do Novo México foi fundada, 1880. A história do nascimento de Lordsburg foi, assim, para sempre, ressignificada como resultado de uma grande aventura americana na qual brancos corajosos, homens e mulheres, venceram tribos nativas vilanescas.

Em termos cinematográficos, é bem fácil perceber por que No Tempo das Diligências é uma experiência tão cativante. Os personagens que embarcam na carruagem compõem um mosaico heterogêneo, gatilho perfeito para que a história contenha conflitos e força dramática. Da mesma forma, basicamente todas essas figuras são complexas (à exceção do banqueiro, que merece ser abordado mais adiante), possuem defeitos, virtudes e arcos próprios de transformação ao longo da trama. Apesar de o alívio cômico ser um tanto, digamos, primitivo, o longa-metragem é divertido e possui um típico ritmo de aventura, dinâmico. E quando isso desaparece, num momento chave do ato final, a perda de ritmo é funcional: acontece antes do duelo final com o propósito de gerar antecipação pelo ponto alto do filme. Enfim, aula de cinema.

John Wayne, Monument Valley. (No Tempo das Diligências, 1939)

O destino manifesto de um povo

Porém, como eu já disse algumas linhas acima, o faroeste é um patrimônio estadunidense. Isso se deve à forma com que articula ideais basais de seu povo. Desde a colonização. Quando os protestantes deixaram a Inglaterra, por volta de 1620, eles não tinham a opção de volta. A Europa vivia em guerra, eles eram perseguidos por causa de sua religião, e a disputa de terra era intensa. Na América, encontraram uma zona vasta para povoar e redimir os pecados europeus. Assim, o “Novo Mundo” tornaria-se uma espécie de terra sagrada; seus habitantes, pessoas escolhidas por Deus para cumprir esse destino grandioso. Esse ideário é a base de uma doutrina conhecida como Destino Manifesto.

O termo, cunhado pelo jornalista John O’Sullivan em 1845, sintetiza valores como a virtude especial do povo ianque e de suas instituições e sua autorização para conquistar e civilizar o Oeste, com a bênção de Deus. Essa forma de pensar não ficou restrita ao campo abstrato: em 1862, Abraham Lincoln assina o Homestead Act, uma “Lei de Terras” que incentivou novos colonos a ocuparem as terras do Oeste americano e adotar o modelo de pequena propriedade. E quanto aos nativos que habitavam esses locais? Foram considerados “inassimiláveis” pela cultura do homem branco. Incivilizáveis. Então, foram dizimados de sua terra natal.

“American Progress” ilustra o Destino Manifesto: o homem branco leva a civilização (telégrafo, ferrovias, agricultura, cidades) para o Oeste e põe os nativos em fuga. Com o amparo divino de Columbia, a personificação feminina dos Estados Unidos. (John Gast, 1872)

O colonizador assassinou nativos com o amparo filosófico, moral e divino do Destino Manifesto. No âmbito legal, isso se deu com autorização federal. Como um ato patriótico. Literalmente. Os Patriotas, revolucionários vencedores na Guerra de Independência, eram ideológicos do liberalismo e do republicanismo defendidos por Thomas Jefferson, autor da Declaração da Independência dos Estados Unidos. O trecho mais famoso do texto de Jefferson destaca: “Consideramos estas verdades como autoevidentes, de que todos os homens são criados iguais, de que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes são vida, liberdade e busca da felicidade”.

Infelizmente, porém, esse lindo ideal de liberdade tinha limites. Os direitos fundamentais defendidos pelo Bill of Rights não valiam para nativos — o que, naturalmente, autorizaria o homem branco a exterminá-los na Marcha Para o Oeste. Da mesma maneira, não valeu para negros, haja vista que a abolição dos escravos só ocorreria ao fim da Guerra Civil Americana (ironicamente, com a ajuda estratégica do Homestead Act), quase 100 anos depois. Também pudera: assim como o “pai do liberalismo” John Locke, Thomas Jefferson tinha escravos.

Os verdadeiros americanos são retratados no filme da mesma forma como são considerados pela Constituição: selvagens. O genocídio dos nativos teve incentivo federal. (No Tempo das Diligências, 1939)

Liberdade vs. racismo

Os Estados Unidos são, portanto, uma nação que incentivou o seu povo a conquistar e povoar o Oeste a partir de 1862. Na Segunda Emenda de sua Constituição, de 1791, garantia “o direito do povo de manter e portar armas”, para “a segurança de um estado livre” e proteção da propriedade privada recém-ocupada (ou tomada, roubada). Em seu Bill of Rights (1776), excluía nativos e negros do direito à liberdade natural concedida pelo Criador. Uma visão racista que, infelizmente, o cinema ajudou a perpetuar como um traço essencial da identidade americana (também fortemente marcada pela violência). Por exaltar o uso da força do homem branco (retratado de forma complexa) como um ato de bravura e, na contraparte, em antagonizar os povos nativos americanos com uma representação desumanizada e selvagem.

Dois homens brilhantes defendem essa tese em obras igualmente grandiosas: o filósofo Silvio de Almeida no livro Racismo Estrutural (2019); e o pensador James Baldwin em seu livro inacabado sobre preconceito racial nos EUA, adaptado para o cinema no espetacular documentário Eu Não Sou Seu Negro (2016). O escritor americano bate forte que o western prestou um desserviço ao sedimentar inconscientemente a ideia de que as pessoas brancas são superiores a pessoas de cor. Baldwin demonstra, com seu olhar soturno e dicção carregada, o mal que sente ao ver um indígena desumanizado sendo assassinado de maneira romantizada por um caubói. Diretor do documentário, Raoul Peck alterna essa fala emocionada do poeta com imagens de John Wayne atirando em nativos americanos em No Tempo das Diligências.

Apesar disso tudo, é no mínimo reducionista tachar John Ford de racista por esse faroeste. Com todo respeito, em minha opinião, é tão equivocado quanto dizer que Clint Eastwood é reacionário por ser republicano, crítico de Barack Obama e diretor de Sniper Americano (2014), como aconteceu na época do seu lançamento. É um erro analisar os vícios sociais de No Tempo das Diligências e não perceber que alguns deles estão articulados de forma crítica. E é um desperdício não perceber todos os momentos em que o filme é surpreendentemente progressista. Mas isso fica para depois — para a hora de discutir os aspectos redentores de Stagecoach, o fim do western em Rastros de Ódio (1956) e, na parte final dessa trilogia, a revisão do Velho Oeste de O Homem Que Matou o Facínora (1962).

  • Trilogia John Ford — Parte 2: Rastros de Ódio: a mitologia em busca de redenção (em breve)
  • Trilogia John Ford — Parte 3: O Homem Que Matou o Facínora — a desconstrução do faroeste (em breve)

Obras citadas:

Eu Não Sou Seu Negro (I Am Not Your Negro, 2016), de Raoul Peck; No Tempo das Diligências (Stagecoach, 1939), de John Ford; O Furacão (The Immigrant, 1917), de Charles Chaplin; O Grande Roubo do Trem (The Great Train Robbery, 1903), de Edwin S. Porter; O Homem Que Matou o Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance, 1962), de John Ford; O Nascimento de Uma Nação (The Birth of a Nation, 1915), de D.W. Griffith; Racismo Estrutural (2019), de Silvio Almeida; Rastros de Ódio (The Searchers, 1956), de John Ford; Sniper Americano (American Sniper, 2014), de Clint Eastwood; Viagem à Lua (Le Voyage dans la Lune, 1902), de Georges Méliès.

Texto originalmente publicado no dia 21 de janeiro de 2021, na edição nº 2 da Revista Cine Cafe.

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Rodrigo Torres
Revista Cine Cafe

Crítico de cinema, membro da Abraccine. Letrólogo e jornalista formado em Comunicação e UX. Amo artes, esportes, geopolítica e todo tipo de papo de bar.