O obscurecido nada obtuso de um folclore em polvorosa

O horror como forma de conurbação político-social a adentrar grosseiramente nas mentes, com exageros e exageros — sessão segunda, 10 de julho.

Ted Rafael Araujo Nogueira
Revista Cine Cafe
8 min read15 hours ago

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É assaz sintomático ao gênero que seu dispêndio de tensão seja carregado de significados (objetivamente claros ou não) que deem suporte a sua gênese própria. Como uma perna assustadora que acaba por servir de castigo físico e mental com uma chave simbólica forte por trás. Ou quando uma figura aparece como representação de uma vingança frontal mediante uma expulsão de uma família pobre de uma casa. Ou na taciturnidade de uma criatura que reage mediante o que a fé lhe é impostada. São elementos que aprontados como tais diante dos desígnios de seus autores acabam por usarem do horror como um formato para exprimir suas vontades em diegeses que apostam num forçoso colorido que traz um regozijo quando vistos em tela grande. Junção de camaradagem criminosa de cores, sons altos e sentidos quaisquer que sejam.

Galera presente na exibição do Dia 02 (10/07) da Mostra Nordeste Fantástico — Sinistro 2024. (Foto por Ted Rafael)
Um dos curadores da mostra Wesley Gondim e o mediador do debate David Aguiar no Dia 02 (10/07) da Mostra Nordeste Fantástico — Sinistro 2024. (Foto por Ted Rafael)

Cabiluda

Direção: aColleto e Dera Santos. 20 min, 2023, Horror, Pernambuco. 14 anos.

Cabiluda. Direção de aColleto e Dera Santos. (Divulgação)

Material usa da cultural popular da Perna Cabiluda para impor um discurso acerca de uma misoginia existente, porém aqui tratada da maneira mais pueril possível, obviamente quando levamos em consideração ser um curta-metragem. Festinha. Curtições. Dissidências. O esquema adolescente que o filme compõe é irritante não por conta de suas escolhas estéticas (os usos de luzes e cores desse mesmo ambiente festivo é divertido e interessante demais na tela grande), mas por sua lengalenga proselitista. Afinal, a motivação envolvendo um romance superficial de dois jovens é abarrotado dos clichês e alcunhas modernas de uma geração que está em polvorosa com suas descobertas e possibilidades ideológicas. Que se manifestam na amplitude do chamariz dos machos misóginos alcunhados de esquerdomachos (essa terminologia é uma atrocidade tão risível que o simples fato dela conseguir irritar um sujeito, é passível do mais fino escárnio ao próprio também). Me entendam, o que é levantado pela fita tem seu quê de real. As relações mudaram assim como os julgamentos e reações aos estraçalhos dos caras, mas há de se salientar uma divertida contradição. Prega-se a liberdade de relacionamento, mas num primeiro ponto de divergência aparece um determinado freio moral usado como crítica ao primeiro sujeito. Tudo de maneira óbvia mesmo. Porém a intencionalidade me parecer ser tecer uma crítica aos animais machos que se travestem de palavrórios intencionalmente coloridos, mas que na prática partem para o controle sobre as mulheres que sempre ensejaram. Passa a mensagem, da forma mais irritante possível, mas passa. Ou quem sabe sou mais um macho escroto.

A lenda da perna Cabeluda. (Diário de Pernambuco)

Inclusive a perpetuação do discurso do embate desses jovens começa logo a se desgastar, mas é salvo pelas escolhas dos planos e das citadas luzes e cores que me agradam pra cacete. Com direito a sustos falsos, um humor político que funciona (a plateia da Mostra Nordeste Fantástico por sinal, teve boa interação nisso). Imageticamente é um troço feroz mesmo, que acelera sua montagem quando crê que tem que desenvolver alguma angústia, e nisso logra êxito. Assim como em conluio com o som e a trilha sonora. Uma cacofonia geral bem ajambrada que se interliga ao seu aporte crítico de forma que segura a narrativa decentemente. E é aí que vem o sensacional desfecho do material (sua abertura também é foda). Ótimo ataque na telona. A perna invocada. A vingança contra o otário. A tal Cabiluda. A lenda criada nos anos 70 pelo jornalista Raimundo Carrero [[1]] em 1º de fevereiro de 1976, proveniente de um apelo da chefia do jornal Diário de Pernambuco que tinha como mote a inclusão de estórias absurdas num misto de página policial e misticismo que trouxesse a curiosidade do público à baila. A existência desse folclorismo também se dava por conta dos órgãos de censura que coibiam diversos materiais e obrigavam os jornais a apelar para todo tipo de criatividade para se venderem. O que inclui a farsa e a curtição avacalhada. Portanto através de um relato outro dum amigo jornalista — provavelmente corno — Raimundo cria a Cabiluda, uma criatura pernosa que atacava nos arredores do Recife e tinha a fama de meter o chifre nos marmanjos e atacar uma galera. O que parece a inspiração também seria proveniente dos conflitos entre cornos e amantes, além dos relatos de mulheres espancadas servirem como inspiração para a criação da perna, já que chegaram a existirem boatos diversos de ataques da perna, quando mais pareciam serem frutos de violência doméstica. Este entremeio histórico ligeiro feito aqui vem de encontro exatamente com a vingança da perna retratada pelo filme, a se impor por sobre um sujeito que representaria um abusador das mulheres (mesmo que em tese nada de absurdo ele tenha cometido para ser executado, mas foda-se, a intenção é o destroço). A pancadaria é concretizada e bem arrumada, com excesso de cortes, um caleidoscópio quebrado e maluco que é montado pra criar uma tensão dum ataque duma perna cabeluda. E funciona pra caralho.

Aratu

Direção: Firmino de Almeida. 8 min, 2023, Horror, Paraíba. 14 anos.

Aratu. Direção de Firmino de Almeida. (Divulgação)

Aqui um curtíssimo de 8 minutos que se sustenta por sobre a exploração biltre por sobre uma família pobre enquanto orquestrado é um processo de desforra terceirizada por cima do representante dos poderosos e por parte de uma figura do folclore regional. Tirar a galera da casa. Luta de classes? E o folclore?

A questão da especulação de terras e controle das mesmas por conta de grandes latifundiários é problema mais do que secular na terra brasilis. E no interior nordestino não seria diferente. De herança colonial ao trato republicano e dentro das transmutações do capitalismo (ou qualquer experiência progressista dentro deste que seja), o problema da terra ainda é tema seminal do debate político brasileiro. Ainda mais num país que jamais fez um processo sério de autocrítica para buscar uma solução que passasse por uma reforma agrária necessária. Não há absolutamente nada que lembre uma exposição histórica sobre este ponto nesse curta, mas há uma permanência histórica latente nele que elucida esse objeto. Isso que interessa. Folclore responde e ataca. Dentro desse interim social entra o Aratu como figura a responder em aparição e medo para [vingar] aqueles que foram expulsos de suas próprias terras. O Aratu. Seria ele mesmo? O caranguejo Maria Mulata que foge do Baiacu por pura molecagem? Se assim fora, a molecagem fora sambada por cima de um representante de um patronato interessado na terra, e disso nossas lendas entendem. A terra é nossa. Ou pelo menos era pra ser.

Noites em Claro

Direção: Elvis Alves. 20 min, 2023, Suspense, Ceará. 14 anos.

Noites em Claro. Direção de Elvis Alves. (Divulgação)

Cearense. Trabalhador. Sombras e sons. Uma mão. Sem energia. Toque de recolher. Violência nas comunidades. A polícia ao fundo. Eles decidindo quem são os vagabundos. Tem uma criatura. A religião e o monstro. E tome temas. Um entregador via aplicativos — sintomático demais por conta da escolha deste personagem tanto subalternizado, mas que teve grossa importância na pandemia covid-19 e aqui está representado, ainda mais por esta obra em si ter sido concretizada durante esta pandemia –, é visto perambulando nocturnamente em busca de seu sustento enquanto lida com diversas vicissitudes no que tange ao morar sozinho, lidar com o abuso inserido em seu trabalho, a falta de estrutura de sua casa sem energia culminando na aparição esquisita de uma figura obscurecida a lhe assombrar. Serve como um microcosmo de uma situação de vida das periferias, onde a progressão canalha das dificuldades perpassa pelas condições insalubres de trabalho (que são normalizadas por classes outras para manter a massa em desespero diante do desemprego), controle policial pela escolha de quem são de fato os vagabundos (coisa que é explorada nas afirmações de um vizinho que adota o teoria e prática da violência como utilidade pública) chegando até na estrutura de uma casa na qual não consegue obter luz e a empresa responsável pouco se preocupa em resolver rapidamente o problema. Se isto não for luta de classes eu não sei o que é. São condicionantes diárias de muitos brasileiros onde o terror é dentro e fora de suas casas mediante uma extorsão que os cerca e os tangencia ao obedecimento e um subserviente agradecer por ter uma oportunidade de quase passar fome.

A escolha desses vários temas a resolver num curta-metragem cria um problema a lidar com o exagero, assim como uma solução ao servir como uma estrutura diegética de possibilidades interessantes que não fazem o espaço ser modorrento de forma alguma. Há sempre uma preocupação e algo a se pensar enquanto esse trabalhador sobrevive. Nisso há o entremeio das conversas com sua mãe que vê com desconfiança a intenção do filho estar morando sozinho e é aí que reside a questão da fé em como a religião tem diversas serventias decentes e indecentes a serem salientadas. Seja como forma de controle ou como exercício útil de fé como mecanismo de passagem para o amor de uma mãe. A entidade escuta a fé. As palavras. E é pelo direcionamento das palavras proferidas pela mãe que reside a chave para afastar qualquer monstruosidade. Não é a religiosidade uma força motriz do estraçalho com um monstro, mas só um receptáculo útil para as palavras duma mãe resolverem um drama. A fé independe de reza ou religião específica, mas o afeto sim detona algumas desgraças.

Notas:

[1] A PERNA cabeluda e mais: conheça lendas urbanas do Recife. Diário de Pernambuco, Recife, 31 de Outubro de 2023. Disponível em <https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/viver/2023/10/a-perna-cabeluda-e-mais-conheca-lendas-urbanas-do-recife.html>. Acesso em 12 de julho de 2024.

Dia 02 (10/07) da MOSTRA NORDESTE FANTÁSTICO — SINISTRO 2024 (Foto por Ted Rafael)
Dia 02 (10/07) da Mostra Nordeste Fantástico — Sinistro 2024. (Foto por Ted Rafael)
O diretor Elvis Alves do filme Noites em claro no debate acerca de sua fita no Dia 02 (10/07) da Mostra Nordeste Fantástico — Sinistro 2024. (Foto por Ted Rafael)

A PROGRAMAÇÃO

Mostra de Cinema Nordeste Fantástico — Sinistro 2024. (Divulgação)

Serviço

Mostra Nordeste Fantástico — Sinistro 2024
Centro Cultural Banco do Nordeste, Fortaleza-CE
Rua Conde D’Eu 560, Centro
Acessibilidade: Rua General Bezerril, 237
Sala Multiuso CCBNB
Horário: 18h30
Faixa etária: 14 anos
Entrada gratuita

Cobertura da Mostra Nordeste Fantástico — Sinistro 2024, em Fortaleza, Ceará.

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Ted Rafael Araujo Nogueira
Revista Cine Cafe

Realizador marginal de cinema via banditismo urbano. Comentarista cinematográfico das melhores/piores e arcaicas fitas. Cinema sem frescura. Cinema. CINEMA