Onde estava o medo de Jesse Owens?

Como o cinema de horror de Jordan Peele propõe uma releitura do homem negro na História dos Estados Unidos.

Igor Guimarães
Revista Cine Cafe
6 min readJun 20, 2024

--

Jesse Owens. (Leni Riefenstahl)

Reconhecido mundialmente por um feito atlético, quando, nos Jogos Olímpicos de 1936 em Berlim, se tornou o primeiro esportista a vencer 4 medalhas de ouro na mesma edição, Jesse Owens tornou-se também um símbolo de coragem ao afrontar o racismo dentro do epicentro do Reich alemão. Naquele emblemático pódio, Owens deixava a esperança da superioridade ariana silenciada em delírios superiores a 10 segundos.

Jordan Peele identifica esta mesma histeria no seu longa-metragem de estreia, Corra! (2017), visto que a família Armitage surge justamente a partir do encontro com o superatleta americano. O patriarca, descontente pela humilhação que sofrera ao competir com Jesse Owens, passa a acreditar que os negros nasciam dotados de capacidade física superior ao branco, e resolve criar um mecanismo para poder desfrutar desta superioridade. Entendam: além do racismo e da consequente exploração política, social, histórica e cultural, ainda era necessária uma maneira de roubar do negro a capacidade de superação a todas estas feridas e vencer um branco.

Começamos a entrar nos pormenores desta piração quando o lindo e aparentemente inocente casal interracial de classe média formado por Chris (Daniel Kaluuya) e Rose (Allison Williams) é apresentado ao espectador. Neste momento, a narrativa coloca-nos diante de um estranho convite: “Fique, relaxe, as tensões raciais aqui neste romance estão dissolvidas, aproveite a sessão”.

O protagonista parece carregar consigo a bandeira da democracia racial; Chris não pretende colocar o racismo como uma questão conflituosa na relação com a nova namorada. Ao perguntar à parceira se ela havia dito aos pais sobre a sua cor, não buscava impor uma posição de respeito na nova família se não que assegurar a comodidade da situação e a certeza de passar por essa com o menor número de feridas possível.

(Corra!, 2017)

Instinto de sobrevivência: Corra!

Portanto, um dos principais trunfos narrativos de Peele é deixar o racismo como uma questão imatura, que não faz parte dos pensamentos e das atitudes da “iluminação” dos intelectuais modernos, uma espécie de tema superado, e o único personagem capaz de enxergar além desta bullshit é um típico bufão. Rod (Lil Rel Howery), figura daquelas naturalmente cômicas e que nunca são levadas a sério, problematiza questões, desconfia de alguns acontecimentos, julga, alerta o amigo para deixar a maluquice que está diante dos seus olhos e que volte correndo para casa.

O caricato personagem é o espectador nos grandes filmes de terror: ele tem medo, não tem vergonha de ter, sabe que o negro sempre morre, prefere não olhar ou mesmo escapar, conhece bem o destino dos Duane’s e Phil’s em A Noite dos Mortos-Vivos (1968) e Pânico 2 (1997), respectivamente. Chris, por outro lado, está decidido a não ouvir o melhor amigo e opta por naturalizar os acontecimentos, ignorar o alerta, jogar o papel do negro destemido.

Desta forma, brincando com o gênero, com a História e com a própria representatividade do negro do cinema de Hollywood, Jordan Peele leva o público a este mundo de falácias travestidas de normalidade, coloca um dedo na cara do espectador e outro na ferida que sangra por toda a sua — ainda curta — filmografia para perguntar: onde estão os medos dos negros?

(Nós, 2019)

O medo em Nós

As respostas desta pergunta não estão apenas em seu primeiro longa. Na sequência introdutória de Nós (2019), a pequena Adelaide (Madison Curry) se desvencilha da proteção de seus pais e entra numa Fun House digna de O Parque Macabro (1962), propondo ao espectador mais um convite ao terror. Desta vez, porém, sem hipótese para naturalizações: o medo agora está dentro e ao mesmo tempo na frente dos nossos olhos.

No segundo longa-metragem de Jordan Peele, somos jogados em outra dimensão para buscar no duplo, na nossa própria imagem, o maior de todos os medos. A jovem protagonista não encontra os monstros de Pague Para Entrar, Reze Para Sair (1981) ou mesmo o fantasma de Candyman (1992), ela depara-se e confronta-se com o espelho.

Jesse Owens, neto de escravos, caçula de uma família de 10 filhos, original do Alabama, migrante com a família para Ohio, vivera possivelmente o ápice da segregação racial na sociedade norte-americana. Apesar de tudo isto, graças ao seu exímio rendimento desportivo, foi convidado pela Universidade de Ohio para estudar e competir. Mas, mesmo sendo uma das principais estrelas do esporte do país, não tinha acesso aos espaços reservados aos brancos, era constantemente abusado pelos colegas universitários e convivia diariamente com o pavor da descriminação como uma sombra.

Imaginar que este garoto, que passara toda a sua vida enfrentando o racismo, seja nas ruas ou nas pistas, aos 23 anos, em solo alemão, não tinha olhado ao espelho muitas vezes e buscado dentro de si engolir o medo do fracasso é no mínimo leviano. Acreditar que a história deste jovem negro americano é mais um relato meritocrático ou de ordem divina é optar por um olhar vazio e plano da História.

(Corra!, 2017)

O cinema social de Jordan Peele

O horror social de Jordan Peele dispara na outra direção, faz a coisa certa e escancara a possibilidade da existência de um cinema que se proponha a pensar as questões sociais de um filme de horror, dentro da óptica e do espelho negro. Desenha o negro como protagonista, dotado de uma história própria, traumas pessoais, e confronta-o não com o nazismo alemão, como Jesse Owens fizera em 1936, mas com todo o peso do racismo de uma sociedade que primeiro finge ser uma mentira, no filme de estreia Corra!, e depois, no exitoso Nós, extrapola os significados dos privilégios que significa viver este engano.

Hollywood, como indústria, existe da forma que existe, porque sempre foi o duplo da História americana, escrita por mãos brancas, fundada por mãos brancas, e todo o demais sempre fora acessório. O cinema norte-americano narra o negro, a partir deste olhar da História. O espaço do negro é concedido, mas claro, dentro do protagonismo total e absoluto branco.

Jesse Owens é um símbolo da cultura deste país, mas é mitificado como imbatível, naturalmente atlético, eternamente sem voz. Jordan Peele ativa o espectador em vários convites ao horror, seja o convite de Rose para conhecer os pais e superar barreiras na relação, seja o convite da família branca para um fim de semana na praia. Entretanto, o maior dos convites que o autor promove é o de, a partir da sua obra cinematográfica inserida num dos gêneros mais populares da indústria, propor pelo medo uma releitura do negro na História dos Estados Unidos.

Obras citadas:

Candyman 2: Vingança (Candyman: Farewell to the Flesh, 1995), Bill Condon; Corra! (Get Out, 2017), Jordan Peele; A Noite dos Mortos-Vivos (Night of the Living Dead, 1968), George A. Romero; Nós (Us, 2019), Jordan Peele; Pague Para Entrar, Reze Para Sair (The Funhouse, 1981), Tobe Hooper; Pânico 2 (Scream 2, 1997), Wes Craven e O Parque Macabro (Carnival of Souls, 1962), Herk Harvey.

Texto originalmente publicado no dia 31 de outubro de 2020, na edição nº 1 da Revista Cine Cafe.

--

--