Onde estava o medo de Jesse Owens?
Como o cinema de horror de Jordan Peele propõe uma releitura do homem negro na História dos Estados Unidos.
Reconhecido mundialmente por um feito atlético, quando, nos Jogos Olímpicos de 1936 em Berlim, se tornou o primeiro esportista a vencer 4 medalhas de ouro na mesma edição, Jesse Owens tornou-se também um símbolo de coragem ao afrontar o racismo dentro do epicentro do Reich alemão. Naquele emblemático pódio, Owens deixava a esperança da superioridade ariana silenciada em delírios superiores a 10 segundos.
Jordan Peele identifica esta mesma histeria no seu longa-metragem de estreia, Corra! (2017), visto que a família Armitage surge justamente a partir do encontro com o superatleta americano. O patriarca, descontente pela humilhação que sofrera ao competir com Jesse Owens, passa a acreditar que os negros nasciam dotados de capacidade física superior ao branco, e resolve criar um mecanismo para poder desfrutar desta superioridade. Entendam: além do racismo e da consequente exploração política, social, histórica e cultural, ainda era necessária uma maneira de roubar do negro a capacidade de superação a todas estas feridas e vencer um branco.
Começamos a entrar nos pormenores desta piração quando o lindo e aparentemente inocente casal interracial de classe média formado por Chris (Daniel Kaluuya) e Rose (Allison Williams) é apresentado ao espectador. Neste momento, a narrativa coloca-nos diante de um estranho convite: “Fique, relaxe, as tensões raciais aqui neste romance estão dissolvidas, aproveite a sessão”.
O protagonista parece carregar consigo a bandeira da democracia racial; Chris não pretende colocar o racismo como uma questão conflituosa na relação com a nova namorada. Ao perguntar à parceira se ela havia dito aos pais sobre a sua cor, não buscava impor uma posição de respeito na nova família se não que assegurar a comodidade da situação e a certeza de passar por essa com o menor número de feridas possível.
Instinto de sobrevivência: Corra!
Portanto, um dos principais trunfos narrativos de Peele é deixar o racismo como uma questão imatura, que não faz parte dos pensamentos e das atitudes da “iluminação” dos intelectuais modernos, uma espécie de tema superado, e o único personagem capaz de enxergar além desta bullshit é um típico bufão. Rod (Lil Rel Howery), figura daquelas naturalmente cômicas e que nunca são levadas a sério, problematiza questões, desconfia de alguns acontecimentos, julga, alerta o amigo para deixar a maluquice que está diante dos seus olhos e que volte correndo para casa.
O caricato personagem é o espectador nos grandes filmes de terror: ele tem medo, não tem vergonha de ter, sabe que o negro sempre morre, prefere não olhar ou mesmo escapar, conhece bem o destino dos Duane’s e Phil’s em A Noite dos Mortos-Vivos (1968) e Pânico 2 (1997), respectivamente. Chris, por outro lado, está decidido a não ouvir o melhor amigo e opta por naturalizar os acontecimentos, ignorar o alerta, jogar o papel do negro destemido.
Desta forma, brincando com o gênero, com a História e com a própria representatividade do negro do cinema de Hollywood, Jordan Peele leva o público a este mundo de falácias travestidas de normalidade, coloca um dedo na cara do espectador e outro na ferida que sangra por toda a sua — ainda curta — filmografia para perguntar: onde estão os medos dos negros?
O medo em Nós
As respostas desta pergunta não estão apenas em seu primeiro longa. Na sequência introdutória de Nós (2019), a pequena Adelaide (Madison Curry) se desvencilha da proteção de seus pais e entra numa Fun House digna de O Parque Macabro (1962), propondo ao espectador mais um convite ao terror. Desta vez, porém, sem hipótese para naturalizações: o medo agora está dentro e ao mesmo tempo na frente dos nossos olhos.
No segundo longa-metragem de Jordan Peele, somos jogados em outra dimensão para buscar no duplo, na nossa própria imagem, o maior de todos os medos. A jovem protagonista não encontra os monstros de Pague Para Entrar, Reze Para Sair (1981) ou mesmo o fantasma de Candyman (1992), ela depara-se e confronta-se com o espelho.
Jesse Owens, neto de escravos, caçula de uma família de 10 filhos, original do Alabama, migrante com a família para Ohio, vivera possivelmente o ápice da segregação racial na sociedade norte-americana. Apesar de tudo isto, graças ao seu exímio rendimento desportivo, foi convidado pela Universidade de Ohio para estudar e competir. Mas, mesmo sendo uma das principais estrelas do esporte do país, não tinha acesso aos espaços reservados aos brancos, era constantemente abusado pelos colegas universitários e convivia diariamente com o pavor da descriminação como uma sombra.
Imaginar que este garoto, que passara toda a sua vida enfrentando o racismo, seja nas ruas ou nas pistas, aos 23 anos, em solo alemão, não tinha olhado ao espelho muitas vezes e buscado dentro de si engolir o medo do fracasso é no mínimo leviano. Acreditar que a história deste jovem negro americano é mais um relato meritocrático ou de ordem divina é optar por um olhar vazio e plano da História.
O cinema social de Jordan Peele
O horror social de Jordan Peele dispara na outra direção, faz a coisa certa e escancara a possibilidade da existência de um cinema que se proponha a pensar as questões sociais de um filme de horror, dentro da óptica e do espelho negro. Desenha o negro como protagonista, dotado de uma história própria, traumas pessoais, e confronta-o não com o nazismo alemão, como Jesse Owens fizera em 1936, mas com todo o peso do racismo de uma sociedade que primeiro finge ser uma mentira, no filme de estreia Corra!, e depois, no exitoso Nós, extrapola os significados dos privilégios que significa viver este engano.
Hollywood, como indústria, existe da forma que existe, porque sempre foi o duplo da História americana, escrita por mãos brancas, fundada por mãos brancas, e todo o demais sempre fora acessório. O cinema norte-americano narra o negro, a partir deste olhar da História. O espaço do negro é concedido, mas claro, dentro do protagonismo total e absoluto branco.
Jesse Owens é um símbolo da cultura deste país, mas é mitificado como imbatível, naturalmente atlético, eternamente sem voz. Jordan Peele ativa o espectador em vários convites ao horror, seja o convite de Rose para conhecer os pais e superar barreiras na relação, seja o convite da família branca para um fim de semana na praia. Entretanto, o maior dos convites que o autor promove é o de, a partir da sua obra cinematográfica inserida num dos gêneros mais populares da indústria, propor pelo medo uma releitura do negro na História dos Estados Unidos.
Obras citadas:
Candyman 2: Vingança (Candyman: Farewell to the Flesh, 1995), Bill Condon; Corra! (Get Out, 2017), Jordan Peele; A Noite dos Mortos-Vivos (Night of the Living Dead, 1968), George A. Romero; Nós (Us, 2019), Jordan Peele; Pague Para Entrar, Reze Para Sair (The Funhouse, 1981), Tobe Hooper; Pânico 2 (Scream 2, 1997), Wes Craven e O Parque Macabro (Carnival of Souls, 1962), Herk Harvey.
Texto originalmente publicado no dia 31 de outubro de 2020, na edição nº 1 da Revista Cine Cafe.