“A pele” de Armando Liguori Júnior

Revista Contexto
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3 min readAug 30, 2020
“O homem vitruviano” — Leonardo da Vince, 1490 (tinta sobre papel)

A PELE (cena teatral)

Personagem (homem ou mulher) — sem se mexer
Não. Eu não gosto que me toquem.
Não, não me entendam mal.
Não gosto de abraço, beijo, braço no ombro, esse esfrega e gruda do dia-a-dia.
Esses toques de convenções.
Sim. Eu gosto de sexo. Sei que é toque. Muitos toques. Mas é um contato mais
objetivo. Um contato com finalidade.
Detesto contatos sem finalidade.
Não. Não sou antissocial. Gosto das pessoas. Só acho que não tem
necessidade de ficar pegando, encostando, ralando, esfregando.
Já. Já fiz terapia. Vasculhei o passado. Procurei uma origem para esse
problema. Não achei, quer dizer, não achamos. Nem eu, nem o terapeuta.
Por que para tudo tem que ter uma origem?
Sou assim e ponto.
O difícil é as pessoas entenderem esse meu jeito. Sempre passo por esquisito,
fresco, esnobe.
Quem me conhece já acostumou, quem não, estranha.
Não seguir padrões sociais é sempre um saco. Quem cria esses padrões? Por
que todos acabam aceitando e adotando?
Hoje tomei uma decisão: vou fazer uma tatuagem.
Registrar na pele que não gosto de outras peles, suores, fluidos, calores.
Deixar claro para o mundo: NÃO ME TOQUE.
Quem avisa, amigo é.
Sei que a tatuagem é uma espécie de estupro para a pele, mas como eu disse
é um contato com um objetivo, com uma finalidade.
Mas onde tatuar?
Não adianta fazer num lugar escondido. Minha tatuagem é um aviso.
Tem que ficar visível.
O melhor lugar é a testa. NÃO ME TOQUE.
Estou procurando um tatuador que faça. Muitos se negam: “não tem nada de
artístico”, “na testa? Você tá louco, depois de um mês vai enjoar”
Só que é urgente… a coisa está ganhando proporções e eu não estou
conseguindo mais me controlar…
Outro dia encontrei um colega de infância, amigo de escola, vizinho e tal.
Ele me abraçou, beijou, não me largava, parecia um polvo com seus tentáculos
me envolvendo e sufocando. Chegou uma hora em que não consegui me
conter e dei um soco bem no seu nariz. Um toque com finalidade. Ele caiu.
Desmaiou, sei lá. Mas me largou.
Sai correndo.
Acho que vou ter que mudar. Mudar para um lugar mais deserto. Onde eu não
conheça ninguém. Onde não faça amizade com ninguém. Aí é só fazer uma
cara de poucos amigos e afastar todo mundo.
Não dá mais para encontrar pessoas conhecidas. A não ser que eu faça a
tatuagem.
Encontrei um cara que topou. Vai escrever NÃO ME TOQUE na minha testa.
Talvez eu não precise mais me mudar

….

Fiz a tatuagem. As pessoas na rua me olham. O porteiro do prédio me olha. A
vizinha me olha. Meu chefe me despede. Não entende.
Mesmo assim funciona. As pessoas se afastam, acham que sou perigoso,
talvez, uma ameaça. “o que será que ele vai fazer se for tocado”.
Na condução consegui criar um espaço entre mim e os demais passageiros.
Já faz um ano.
Agora me olho no espelho. E vejo que o aviso é pra mim também.
Não estou mais suportando o meu próprio toque.
Não consigo tomar banho, não consigo me limpar.
Fico parado no meio da sala com os braços abertos. As pernas abertas, fazendo o possível para que, nenhuma parte do corpo,
encoste em outra.
Só não sei até quando vou conseguir.

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