Não vale chorar na roda de choro

Revista Contexto
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2 min readDec 6, 2020

Um conto de Yan Pool

Samba, 1925 — Di Cavalcanti (Óleo sobre tela)

Sessenta dias. Sessenta dias pra aprender o valor da liberdade.
Ah, sim, hoje posso dizer com toda certeza, doutor: liberdade é o bem
mais precioso. Do lado de dentro a gente tá lá, cabisbaixo, pensando nas ruas, nos becos, nas praças, nas meninas caminhando nas praças, na garotada jogando bola, tudo isso como se nunca tivesse visto, como se fosse ilusão, coisa inventada por quem nasceu preso, apesar de não ter nascido preso. Foi um deslize que me colocou lá. Por sessenta dias só, mas parecia uma eternidade. Parecia que eu tinha nascido ali e sonhava com a tal liberdade.

Liberdade não tem preço. “Liberdade vai cantar”, eu dizia olhando pro
canto menos feio da cela. Liberdade pra não revezar o chão pra deitar; pra chegar atrasado no serviço por ter pedido a hora; pra escolher um rango que não esteja azedo; pra visitar um parente quando ele não vem te visitar; ou pra pelo menos cagar sem pressa, sem fila. Liberdade pra fugir dos taradão ou dos que querem te dar porrada. Liberdade também pra tratar de uma tuberculose direitinho, com dignidade; essa tosse não tá mole não, doutor.

O doutorzinho vai achar que é exagero meu, mas não é. Com todo o respeito, o senhor viveu muito pouco, mal tem barba na cara, sabe das lei, dos código e tudo mas tem muito o que aprender. Falta de liberdade deixa até o cabra maluco. Um rapaz da galeria B se enforcou com lençol e eu confesso que tava com loucura desse tipo na cabeça, sem brincadeira.

Foi da galeria E, cela sete que eu saí outro homem. Quero mais passar
por aquilo não. Mas veja como Xangô é justo, doutor: Me liberou no sábado; não tinha dia melhor pra matar a saudade da liberdade. Ela não veio total, minha menina não quer saber de mim, minha mulher já se mandou pra casa da mãe, não me atende. A liberdade não veio cem por cento mas é um pé de cada vez, não tem jeito.

Desculpa chorar, doutor. Por hoje só tenho esse momento pra isso. A rapaziada costuma dizer que não vale chorar na roda de choro; é pra lá que tou indo agora. Agradeço a carona. Me deixa mais perto que puder da Carioca e quando ver minha pequena, dá um beijo por mim.

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