Procura-se um ditador

Revista Contexto
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3 min readOct 10, 2020

Cynara Barros

“O Grande Ditador”, 1940 — Charlie Chaplin

Procura-se um ditador

Essa, talvez, seja a minha primeira crônica. Como nunca escrevi, não sei se será. Ok, mas isso eu já disse. É que hoje estou com medo de não dizer o óbvio, e você já entenderá. Pois bem, fui pesquisar como deve ser uma crônica. Pelo que li, tem que ser algo leve, cotidiano, com pitadas de humor. Desato-me a rir. Estamos em 2020! Leve e cotidiano não são palavras que combinam esse ano. Mas, vamos lá, vou tentar.

Começo pensando no tema e me lembro de um texto interessantíssimo que li hoje sobre a história e a política brasileiras. Era sobre a ditadura militar. Um artigo de um historiador. Um assunto sempre pesado, controverso, violento, triste. Pode rir, leitor. Eu não sei escrever crônica, já disse. E por isso mesmo vou prosseguir.

O texto falava sobre a personificação dos regimes ditatoriais mundo afora. Em outras palavras, dizia que toda ditadura tem seu ditador. E como, durante o regime militar no Brasil, a batata quente passou de mão em mão, tivemos tantos ditadores que não tivemos nenhum. O autor completava mostrando como estudiosos, escritores e a imprensa dificilmente usavam aqui a palavra “ditador”.

Pronto. Foi o suficiente. Passei o dia pensando nesse texto, com aquela sensação de engasgo na garganta. Aquela sensação de “como eu nunca me dei conta disso?” ou “Como eu nunca chamei Costa e Silva de ditador?”. Eu tinha que desabafar, falar desse texto com alguém, mas sei que não é leve e nem engraçado. Desculpe, leitor. Acho que agora já podemos passar a temas banais.

Hoje cedo fui passear com meu cachorro. Um senhorzinho bem conservado, cheio de energia e vitalidade. Não fosse o problema no coração e as tosses constantes, ninguém adivinharia sua idade.

Ao descermos pelas escadas, escuto o vizinho reclamando que o salário não aumentava e o preço das coisas só subia, pra, dois minutos depois, arrematar que na Argentina estava um horror: as empresas saindo do país porque o governo, segundo ele, comunista, estava tabelando preços.

Segui adiante e, sim, leitor, sigo firme no propósito de falar só do cotidiano.

Desci com o cachorro. Saímos à rua. Aí começa: puxo o danado pra um lado, ele me puxa pra outro. E com força. Quero evitar que faça cocô no meio da calçada, ele faz exatamente ali (e eu que tenho de recolher, óbvio, já que nenhum cachorro recolhe sua merda). E ultimamente tá com uma mania muito nojenta de querer comer o cocô dos outros. E já que estou falando de coisas nojentas, vamos de xixi. Quer fazer em todo lugar, espalhando nhaca pela vizinhança.

Quando encontra outros cachorros, jura que pode fazer frente, apesar do tamanho. Até que não é de latir muito, mas acha que pode enfrentar os outros. Exceto por um american bully que tem aqui na rua, pra quem, sabe Deus porquê, ele sempre abana o rabo, apesar da antipatia e desdém habituais do outro cão.

Queria levá-lo para caminhar perto das árvores, de uma escola, num lugar agradável que tem logo depois que a gente dobra a esquina. Mas não, ele me puxa, me puxa e me puxa. Pro outro lado. Adora passear na vila militar, onde ficam dois soldados do exército de plantão, vigiando.

Passeio feito, voltamos pra casa. Venho escrever minha primeira crônica e acho que falhei miseravelmente. Vou dormir.

….

Você ainda está aí? Desculpe, leitor, tive um pesadelo e não consegui mais dormir.

Sonhei com meu cachorro no Palácio do Planalto, de uniforme militar, subindo a rampa, ovacionado pela multidão. Eu, lá de baixo, gritava “seu ditador, seu ditador!”, enquanto meu marido me sacudia, dizendo: “não, Bambam não! Ele é só um cachorro… brasileiro!”.

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