“Sobre medos e mitos” por Tássia Veríssimo

Revista Contexto
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3 min readSep 20, 2020
Fortunato Depero — Uomo Matita, 1926

Por muitos anos quis acreditar que o ser humano é essencialmente bom. Umas
tantas decepções depois, passei para o oposto: o ser humano é mau! Oito ou oitenta, eu sei. Sempre fui dessas, mas faço análise, então tenho fé que Lacan tem ajudado na construção do tal equilíbrio. Devaneios analíticos a parte, atualmente creio que não somos essencialmente coisa alguma além de seres que querem se autopreservar. Uns melhores, uns piores, é verdade. Mas na média muito parecidos.
Explico: como bichos que somos, precisamos buscar comida, água, segurança e, se possível, afeto. Afeto esse que está, inclusive, ligado à nossa vontade de
autopreservação. Um bebê humano não dura muito sem alguém para cuidar. Precisamos do amor de nossos pais para sobreviver. E crescidos seguimos dependentes de afetos e cuidados outros que nos garantam segurança, saúde e qualidade de vida.
Somos medrosos!
E, como criaturas medrosas, somos também facilmente manipuláveis. É aí que
está o pulo do gato do fascismo seja à italiana ou à brasileira. Todo autoritarismo baseado na figura de um líder-messias está pautado no medo infantil de se perder na loja de roupas e não ser mais encontrado pelos pais. Eles sabem disso e usam contra nós.
É fácil observarmos que basta que uma ameaça — real ou inventada, sendo que as do segundo grupo são ainda mais eficientes porque podem contar com o terreno fértil da imaginação — apareça no horizonte para que pessoas até então cordiais e bem dispostas passem a agir de maneira verdadeiramente perigosa com todos aqueles que, em suas mentes medrosas, representem uma ameaça a sua segurança e a de seus familiares.
Comunista, veado, sapatão, feminista, desquitada, macumbeiro, preto!
Em geral os fascistas elegem como portadores de todo mal aqueles e aquelas que não se enquadram no que a sociedade definiu como padrão de sucesso financeiro e moralidade religiosa. A fé é um componente muito presente em regimes deste tipo porque ela dá a base espiritual para uma perseguição que racionalmente não faz sentido algum, mas que sob o suposto comando divino passa a ser justificada, afinal é preciso purificar almas e salvar famílias. Terceirizar a culpa da crueldade humana para divindades tem dado certo há milênios, afinal. O nacionalismo também ajuda muito, tendo em vista que reforça nossos medos sobre o diferente. Cria o eles contra o nós.
Presa em fantasias de pátria grandiosa, acuada por medos irreais, conduzida por falsos messias e pautada em critérios morais duvidosos, uma população empobrecida de recursos financeiros e cognitivos é transformada na massa amorfa perfeita para o enriquecimento de uma meia dúzia que não crê em nada que prega, mas sabe como fazer o jogo.
Mais do que simplesmente odiar o tio do zap que repassa notícia falsa sobre
cloroquina — e eu odeio bastante, admito — é preciso refletir sobre o quanto de medo é necessário sentir para agir assim. Onde foi que deu errado? Que heranças terríveis de sermos uma colônia escravista trazemos? Que país é esse que não consegue se manter muito tempo democrático? Que autoimagem temos para sermos como somos? Como esperar consciência de classe quando temos uma educação que não liberta?
Insisto que a crise é — acima de tudo — cognitiva.
Precisamos de acesso às ferramentas que nos permitam não apenas existir no
mundo, mas entender seus mecanismos. Compreender nosso lugar no mundo, nosso contexto, nossas reais necessidades, nossas inúmeras possibilidades de libertação. É preciso nos entendermos enquanto povo(s) que compõe(m) essa nação. Somente caindo a cortina do obscurantismo e da ignorância é possível perder o medo do diferente, caminhar lado a lado, se descobrir e se (re)inventar.
Se o fascismo é o medo, que o antifascismo seja a coragem. A coragem de tirar
as vendas, de expor as feridas, de apontar os problemas, de se saber parte do problema, de buscar a solução. A coragem para ser a resistência firme na desconstrução do mito.

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