Três poemas de Felipe Fleury
O Jogo Inacabado
Viver o inferno de Omaha
sem sair da própria sala;
o desembarque anfíbio
na praia de aço e sangue.
Projéteis zunindo nos ouvidos,
muitos encontrando seus alvos.
Seguir até Paris, depois Berlim
e derrubar a suástica-mor.
Sorte ou azar de quem não caiu
para um chucrute?
Fazer a mira, a mão trêmula,
firma num segundo e:
“Morte ao canalha nazista!”
O caminho ainda é comprido
e deve ser cumprido para resgatar
a liberdade aprisionada no último
bunker alemão.
Mas o programador põe a placa
de fim antes do fim, sem resistir
ao esquecimento programado.
Nenhum B-29 leva a Hiroshima e Nagasaki.
Há de se criar um novo jogo, — haveria graça? –
trocando-se o rifle do sniper
por bombas de exterminação em massa.
***
A rosa perdida
(Depois de ler “A um jovem poeta”, de Manuel António Pina.)
Pudera ser um jovem poeta,
que escrevesse poesia
simultaneamente à vida.
Coisas demais aconteceram,
todavia, que sobraram apenas
imagens desfeitas.
Não me espantam os mortos
mais do que os vivos;
passei sobre tantos corpos,
muitos ainda carrego comigo.
A humanidade sorveu o sumo
da regurgitação das traças,
da putrefação dos livros,
tropeçou nos cimos da intolerância.
Caiu e não se levanta.
Perdi o fio da meada do espanto.
Só me assustam os seres humanos
e as rosas que não encontro.
***
Carne viva
Verde é a floresta,
a grama, o mato, a rama.
É o campo
onde o homem não pisou,
É o sonho
que o homem não sonhou.
Verde é o musgo,
que era o fusca sessenta e nove
do meu pai.
É a lágrima
da árvore cortada
ao rés do peito.
É a tinta
com que se pinta
a esperança
só para disfarçar
o cinza póstumo
da floresta extinta,
da ferida ainda
em carne viva.