Três poemas de Felipe Fleury

Cynara Barros
Revista Contexto
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2 min readAug 2, 2020
Guernica, de Pablo Picasso (1937) — Museu Nacional, Centro de Arte Rainha Sofia (Madri, Espanha)

O Jogo Inacabado

Viver o inferno de Omaha

sem sair da própria sala;

o desembarque anfíbio

na praia de aço e sangue.

Projéteis zunindo nos ouvidos,

muitos encontrando seus alvos.

Seguir até Paris, depois Berlim

e derrubar a suástica-mor.

Sorte ou azar de quem não caiu

para um chucrute?

Fazer a mira, a mão trêmula,

firma num segundo e:

“Morte ao canalha nazista!”

O caminho ainda é comprido

e deve ser cumprido para resgatar

a liberdade aprisionada no último

bunker alemão.

Mas o programador põe a placa

de fim antes do fim, sem resistir

ao esquecimento programado.

Nenhum B-29 leva a Hiroshima e Nagasaki.

Há de se criar um novo jogo, — haveria graça? –

trocando-se o rifle do sniper

por bombas de exterminação em massa.

***

A rosa perdida

(Depois de ler “A um jovem poeta”, de Manuel António Pina.)

Pudera ser um jovem poeta,

que escrevesse poesia

simultaneamente à vida.

Coisas demais aconteceram,

todavia, que sobraram apenas

imagens desfeitas.

Não me espantam os mortos

mais do que os vivos;

passei sobre tantos corpos,

muitos ainda carrego comigo.

A humanidade sorveu o sumo

da regurgitação das traças,

da putrefação dos livros,

tropeçou nos cimos da intolerância.

Caiu e não se levanta.

Perdi o fio da meada do espanto.

Só me assustam os seres humanos

e as rosas que não encontro.

***

Carne viva

Verde é a floresta,

a grama, o mato, a rama.

É o campo

onde o homem não pisou,

É o sonho

que o homem não sonhou.

Verde é o musgo,

que era o fusca sessenta e nove

do meu pai.

É a lágrima

da árvore cortada

ao rés do peito.

É a tinta

com que se pinta

a esperança

só para disfarçar

o cinza póstumo

da floresta extinta,

da ferida ainda

em carne viva.

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Cynara Barros
Revista Contexto

Escritora. Professora. Advogada. Instagram: @poesiacontexto