Um poema de Milena Martins

Revista Contexto
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2 min readJan 31, 2021
“Rosa meditativa” — Salvador Dalí (Óleo sobre tela, 1958)

Eu fui um evento banal,
Com pouco ou nenhum encanto
Num dia desimportante.
Vim ao mundo porque famílias
Também têm instinto de sobrevivência
E nasci mulher,
Para o desagrado de uma linhagem
Que morre aqui.
Deram-me um nome comum
Combinando a um sobrenome comum
Para que eu não fosse
Facilmente destacável
Da multidão dos ocupados.
E me ensinaram coisas como:
Seu propósito é provar que eu venci na vida,
Me deixar mais forte
E me realizar como pessoa.
Eu escolhi ser avesso
E fui ficando sozinha.
E, no fim do caminho,
Descobri que não havia
Ninguém lendo,
Porque o meu nome é também
O de tantas!
Talvez por isso
Eu não me importe muito.
Eu nunca fui mais que uma prova de vida.
O ato burocrático
De vir ao mundo
Servir a quem já estava aqui.
Perco o meu tempo
Cultivando verso

Pra passar fome
No próximo inverno.
De mim,
Nascem apenas
O reles
Que não sacia o apetite dos nobres
Nem lambe os pés dos miseráveis.

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