A Fome de Cada Dia

Anna Clara Lôbo
Anna Clara Reis Lôbo
13 min readOct 1, 2020

Por Anna Clara Lôbo e Fernanda Nogueira

Por vezes o sol está tão quente que estar debaixo dele é difícil. Normalmente buscamos uma sombra, um estabelecimento que dispõe de um ventilador ou ar condicionado para nos refrescar. Mas essa alternativa não é para todos, principalmente para aqueles que precisam enfrentar o sol diariamente para conseguir o ganha pão. O sol é árduo, os raios ultravioleta penetram a pele dos trabalhadores, aumentando suas jornadas diárias de luta para conseguir o dinheiro suado de cada dia, seja para pagar as contas de casa, garantir a gasolina para o transporte — se possuir um — e comprar comida, roupas e remédios que ajudam nas dores diárias. Ainda assim, mesmo com tanto esforço, não há uma garantia para esses trabalhadores de que irão receber o dinheiro, seja para garantir a comida do mês inteiro, da semana ou mesmo do dia; muito menos sobrar alguns reais para pagar consultas médicas por causa das condições de vida difíceis.

Essa é a realidade de pessoas que sofrem com problemas de saúde, mas são obrigadas a trabalhar para conseguir se sustentar, mesmo que as condições físicas já não as permitam. Nestes casos, mesmo com cargas horárias de trabalho exaustivas, essas pessoas ainda passam dificuldades para se alimentar. A fome aperta o estômago, e a renda do seu ofício, que deveria suprir essa necessidade básica do ser humano, não é suficiente ou é quase inexistente. As vozes dessas pessoas são silenciadas, e os seus estômagos negligenciados pela falta de comida, à espreita de melhores condições de vida que não chegam.

A feira do Ceasa, em Vitória da Conquista, Bahia, é cheia de pessoas assim. Barracas e mais barracas de verduras, frutas, biscoitos, temperos, queijos, carnes e tudo o que uma feira tem para oferecer de melhor. Passar pelos corredores de biscoitos pode se revelar uma tentação para os amantes de carboidratos, já o corredor das carnes não é muito agradável, com todo aquele cheiro de morte. Porém, para os bons entendedores de carne, é uma vista prazerosa que mais tarde se tornará em um prato carnívoro delicioso. É descendo o corredor das mulheres que debulham o feijão verde, na lateral da feira, logo ao atravessar a rua, no sentido de quem vem do Centro da cidade, onde as mesmas se encontram. Sentadas em caixotes de madeira usados como banquinhos, com uma bacia em seus colos elas tiram o feijão da casca, que podemos escolher aonde iremos comprar aquele que pode ser feijão fradinho ou andu.

Lá no final da fila, sentada com sua colega de vendas e amiga com quem divide as dores do dia, é que Vilma Célia, de 48 anos, debulha seu feijão. Os fregueses passam, perguntam o preço do litro dos caroços verdinhos e em seguida caminham para a próxima barraca, na intenção de comparar os preços e comprar o mais barato. Vilma tem no rosto a expressão de quem já passou de tudo um pouco, mas que não perde a esperança de uma vida melhor. Ela é perceptivelmente tímida, não queria conversar muito com as entrevistadoras e só escutava a colega falando. Desconfiada e quieta, só depois de alguns minutos ela começou a falar sobre sua história, seu trabalho, sua família e como a vida tem sido difícil depois que ela parou de fazer trabalhos autônomos por causa das dores nas costas.

Vilma tem problema na coluna, diagnosticado e presente em sua vida todos os dias. O médico passou uma injeção quinzenal, que ela toma no posto de saúde porque a aplicação é gratuita. Com os remédios a história é outra. As receitas estão “entoladas”, como ela mesmo disse, porque suas condições financeiras não permitem adquirir remédios caros. Ela prefere levar um pedaço de carne para casa e enfrentar as dores que a fazem chegar em casa com os pés inchados boa parte dos dias. Ao chegar em casa, não quer falar “não” quando o seu neto, Franco, de 12 anos, pede dois reais para comprar pão.

Sobre as vendas, a debulhadora de feijão disse que até o momento não tinha vendido nada, sendo que o ponteiro do relógio já marcava 11h da manhã. Ainda mostrou como a sua bacia estava cheia dos grãos verdinhos, esperando um bom freguês para levar um, dois ou até mais litros para casa. Não se tratava apenas vender seu produto, mas de conseguir dinheiro para o alimento do dia. Vilma disse que não tinha feito o suficiente ainda, e que por isso, sequer havia tomado café da manhã naquele dia, e a perspectiva para o almoço estava zerada. “Tem dias que a gente trabalha aqui só através de um copinho com água”, enfatizando que traz a água de casa, bebe o líquido e pronto. Tanto ela, quanto sua parceira diária.

Nos dias em que falta o alimento para o café da manhã e almoço, é que sua amiga Ridalva Maria de Jesus de Jesus, 40 anos, entra em cena. Célia gosta de definir a amiga como “despachada”, que não se importa de pedir ajuda para os colegas da feira para conseguir fazer alguma refeição. Para garantir o almoço do dia, as duas já cederam um litro de feijão de suas bacias em troca de uma marmita que, mais tarde, viria a ser dividida. Mas quando não conseguem, o vazio no estômago é a única alternativa. Ridalva divide a casa com a mãe, o irmão e o filho, em Serra Malhada, e para contribuir nas despesas de casa, a mãe consegue ajuda de igrejas que doam os alimentos; já o seu irmão consegue, às vezes, um “bico” e Ridalva se vira como pode. Comunicativa, ela prontamente aceita a contar a sua história e incentiva Célia a fazer o mesmo. Apesar de sua situação, Ridalva tem um olhar de determinação, aquele de todo trabalhador que vai à luta e não desiste, mesmo com todas as adversidades.

A relação de Ridalva com a fome é antiga, desde os tempos em que era criança e viajava para Vitória da Conquista com o pai para vender mercadorias. Às vezes, quando as vendas estavam fracas, ela voltava andando da cidade para a sua casa, e seu pai ganhava restos de comida para se sustentar no caminho de volta para a sua região. Ao falar das suas condições financeiras, Ridalva explica: “Quando dá bom, eu compro dois quilo, quando já dá mais ou menos, eu compro um quilo de coisa pra dentro de casa. E às vezes até meio quilo de coisa, às vezes a gente leva, né Vilma? Ontem mesmo eu tive que comprar meio quilo de carne, porque não dava pra comprar um quilo”. Assim, ela vai levando a vida, entre trancos e barrancos.

Engana-se quem acha que a única dificuldade de Maria é a de se alimentar. Ridalva tem pressão alta e tem a necessidade de continuar trabalhando para conseguir sustentar o filho pequeno. “Aqui teve uma vez que minha pressão foi pra 18/9. Tem hora que vai pra 22, que altia mesmo”, confessa, enquanto debulha o feijão. A vendedora já desmaiou no seu local de trabalho e o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) fez os primeiros socorros utilizando o remédio específico para a doença. O dinheiro, que já não é suficiente para o seu próprio alimento, não sobra para os remédios “É que às veis a gente pega no posto. Agora tem uns remédio que é compra. Porque tem um remédio que é muito forte, é mais caro, aí tem que comprar. Porque nem todos no posto têm… Aí às vezes não dá, o dinheiro não dá”, afirma Ridalva.

Por ter pressão alta, não é qualquer alimento que a feirante pode comer. O açougueiro que cedeu o ponto para elas trabalharem, vendeu para Célia um pouco do cuscuz que ele tinha levado, ao descobrir que as duas estavam sem almoçar. Apenas Célia conseguiu comer nesse dia, Maria continuou com o estômago vazio, pois o cuscuz é muito forte e poderia aumentar a sua pressão. “Aí ontem passou uma marmita que é cinco conto, nois comprou e dividiu. Por causa que eu tava com o menino, né. Não podia deixar o menino passando fome”. Por morar fora da cidade, na zona Rural que ela chama de “baixão”, Ridalva também precisa se preocupar com o dinheiro para a locomoção, no valor de quatro reais, ida e volta. Ela afirma que nem todo dia dispõe do dinheiro para pagar o seu deslocamento, mas assim que consegue vender o feijão, já separa a cédula para custear o transporte. O deslocamento passa a ser a sua prioridade, mais do que a sua própria alimentação, pois é a forma que conseguiu de ir para o trabalho e tentar garantir o alimento diário.

Deus é presente na vida destas duas amigas, e Ele está sempre em suas orações e esperanças para que essa situação um dia melhore. No ano de 2018, o relatório internacional ‘O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo’, da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), mostrou que a fome atinge cerca de 5,2 milhões de pessoas no Brasil. E essas pessoas estão mais próximas do que podemos imaginar. Imaginem que a população do Uruguai, por exemplo, é constituída por 3,5 milhões de pessoas, então temos mais que a quantidade de um país passando fome. São muitas histórias para contar, muitos apertos, problemas, sofrimentos e misérias, porque dentro desse número, ainda existem aqueles que sobrevivem em um estado de miséria crítico dentro de um país tão cheio de riquezas naturais.

Mas quem pensa que o único empecilho de Vilma é conseguir o dinheiro para se alimentar diariamente, terá uma surpresa ao ver que só a fome não basta em sua vida. As contas de casa e o compromisso semanal de pagar o fornecedor do feijão, esse que raramente aumenta o prazo de pagamento do saco do feijão fradinho, que custa cerca de cento e vinte reais, é a sua principal preocupação. Assim sendo, sua renda é muito baixa para todas as necessidades, e o seu marido, que trabalhava com solda elétrica, está desempregado e tenta conseguir bicos para ajudar a mulher em casa. Como antigamente ela tinha uma vida melhor, vendendo conjuntos de lingerie, entre outras atividades autônomas, hoje em dia a vergonha de falar para as vizinhas sua atual situação é mais forte, e o orgulho natural ao ser humano se faz presente. “Hoje eu fico com vergonha de chegar pra elas e dizer ‘eu to passando uma vida assim, assim e assim’. Eu prefiro ficar queta, vir pra feira, comprar meu feijão…”. Quando não consegue vender todo a leguminosa porque ele começa a ficar ruim, ela doa uma parte e congela o restante, que fica para uso próprio. O gosto fica um pouco diferente, meio amargo, mas ela diz que o esposo faz uma farofa ou qualquer outra coisa e eles comem. Não ganha no bolso, mas preenche a barriga.

O fornecedor de feijão, Manoel Alves de Lima, 59 anos, conta que não tem dificuldade em conseguir mercadoria, pois tem os contatos dos donos das roças, e muito menos para vender os feijões. “Não, né difíci não, porque eu já tenho elas aqui que tudo pega na minha mão, aí eu já trago o feijão tudo de encomendado pra elas aqui…” Em relação ao preço da mercadoria, ele falou que depende da época de colheita, porque quando está em falta, o preço é um, e quando está cheio, o preço é outro; mas até então, estava vendendo o saco por cento e dez reais. Diferente do fornecedor citado acima por Vilma, Manoel concede um prazo às vendedoras para pagar pela mercadoria “(…) elas aqui que eu já tenho muito costume de pegar na minha mão, eu deixo pra mim receber dia de domingo uns, aí eu recebo sábado, e é assim… aí eu dou um prazin eles, pra dá tempo deles também, trabalhar né?”.

Vilma não é a única na família a passar por essa situação. Sua irmã também tem problema de coluna, mas de vez em quando manda um quilo de alimento que sempre ajuda um pouco mais. Ela diz que o diferencial da irmã é que ela é mais “despachada”, e que teve a coragem de “encostar”, se referindo ao auxílio-doença que o governo disponibiliza para as pessoas que não têm mais condições de trabalhar devido às enfermidades. Apesar dos seus problemas, ela não quer tentar esse afastamento. Muita gente que convive com ela pediu que ela tentasse, mas a mesma diz que é arriscado não conseguir o afastamento e perder as possíveis vendas, por causa dos dias que teria que faltar o trabalho para tentar o auxílio. Célia afirma que enquanto estiver aguentando, vai trabalhar, principalmente por estar sozinha no cargo de pagar as contas e colocar o alimento dentro de casa.

“Em casa o que tiver a gente come. Não vai escolher o que comer, né? A gente não pode escolher. Porque a fome é que manda tudo, né.” declara Célia ao falar que ela e o esposo comem ovo com farofa e passam o dia apenas sustentados com isso, e quando tem. “É horrível” desabafa ainda a debulhadora de feijão, em relação a não saber se terá o que comer no dia. E assim, Vilma continua conversando enquanto debulha os feijões, que vão saindo um por um, entre os seus dedos rápidos e acostumados com a atividade. Nas pontas dos dedos ficam só resquícios de casquinha, que também grudam no restante da mão, cheia de marcas de trabalho e linhas que refletem uma vida difícil que só ela sabe.

Ainda no Ceasa, é possível encontrar, por exemplo casos como o de Marinalva Damascena, 48 anos, que nunca passou fome, mas revela que em sua casa já teve momentos em que não tinha comida suficiente para todas as oito pessoas que residem no seu lar. Ela conta que a situação piorou desde quando se viu obrigada a abrir mão de seu emprego como doméstica, profissão que exerceu por mais de dez anos. As constantes dores que sentia se desdobrou em um desgaste na coluna, em virtude do trabalho pesado que fazia limpando casas. A feirante diz que ficou parada um ano em casa, até que decidiu montar a sua barraquinha no Ceasa, mas que ainda assim, não consegue pegar muito peso, contando com a ajuda dos colegas de trabalho. Apesar do seu recente emprego autônomo, ela ainda não consegue comprar muitos alimentos para a sua casa e pagar todas as contas. Ela trabalha de manhã até às 14h da tarde e em sua barraca vende batata, cebola, alho, batata doce, repolho, alface e abóbora.

Marinalva revela que as contas da casa sempre foram prioridade, principalmente a energia e a água, mais até do que a comida, visto que para ela, é possível ficar sem a carne e sem verduras, mas não sem a energia ou água. Ela afirma que nunca ficou totalmente sem nada para comer, mas que as coisas que faltavam, ela não tinha como comprar. Em relação ao almoço ela diz: “Assim, o básico né. O feijão, um arrozinho, a gente nunca deixou de ter em casa. Mas assim, às vezes a carne faltava às vezes uma verdura, tinha uma coisa e outra, quando faltava… tinha uma coisa e não tinha a outra, né”. Os olhos de Marinalva lacrimejam um pouco ao lembrar-se de quando teve início de depressão, e acredita que por consequência da situação de sua casa, isso contribuiu para agravar a sua ansiedade e também o transtorno depressivo “… porque a gente vê dentro de casa faltar às coisas, conta chegando e a gente não ter condição de pagar, tudo isso, mexe né, com o emocional da gente”.

Não muito longe dali, subindo a rua e passando pelas tantas barracas e corredores da feira, chegamos às escadas que cercam a lateral do Shopping Popular, essas que são repletas de brechós ao ar livre. Toldos e panos ficam espalhados no chão, com todo tipo de roupas e sapatos estendidos sobre eles. A gente só sabe mesmo que é um brechó ao parar para conversar com alguns dos vendedores. Mas é falando com José dos Santos que entramos em um tópico muito mais profundo do que poderíamos imaginar: a fome.

José é tímido e o seu timbre é baixo, de maneira que é preciso encostar próximo a ele e prestar bastante atenção ao que está sendo dito para entender as suas palavras. Boa parte das vezes, algumas pessoas, amigos de trabalho, falam por ele e acrescentam informações, mas é só com ele que podemos sentir uma grande mágoa e dor escondida por trás dos seus olhos cansados e cheio de rugas. É um dia de sábado, 11h da manhã e o sol está chegando ao seu pico, mas José segue sentado em seu banco. Ele diz que tem vinte anos que fica naquele ponto, todos os sábados, e que só vai para lá para não perder o local, cedido pelas autoridades. As roupas que ficam em sua frente e que pertencem a ele, são poucas. Ele diz que todas são doações da igreja, e que vêm de arrecadações feitas na cidade para ajudar os mais necessitados.

A situação dele já se diferencia da de Vilma, de Dalva e de Marinalva. A falta de brilho nos olhos e postura curvada demonstram o sofrimento que ele não revela inicialmente, mas que, em poucos minutos de conversa, revela que sofre de hipertensão, e não são poucas as vezes que vai parar no pronto socorro do hospital. Essa doença é silenciosa, chega sem dar muitos avisos e ataca vasos sanguíneos, coração, cérebro e causa sérios danos na saúde de quem a porta, sem contar que pode durar a vida toda. José não tem condições de se alimentar apenas com o dinheiro que consegue da venda de roupas, então conseguir tratamento para sua enfermidade é uma tarefa quase impossível. Para melhorar a sua saúde, José tem que se exercitar, fazer o uso de medicamentos e ter uma alimentação saudável, porém o mais próximo que ele chega de um exercício é sua locomoção de casa para seu ponto de venda e do ponto para casa, tudo isso carregando as roupas e usando o método mais antigo de locomoção: suas próprias pernas.

Os medicamentos são caros e, por isso, ele não pode tomar. Não existe a possibilidade dele conseguir manter a alimentação saudável, quando aceita qualquer coisa para matar a fome que aperta a barriga todos os dias. “Quando falta eu tenho que pedir”, se referindo a comida. Ele não entra em muitos detalhes sobre a frequência que se alimenta, mas é perceptível que não é tão constante. Além disso, José ainda tem que lidar com a falta de comunicação com os seus filhos, que não o ajudam e sequer entram em contato. Mas ele tenta compreender a situação, ao explicar que os seus filhos também passam por dificuldades e por isso, não poderiam ajudá-lo.

As histórias de Vilma, Ridalva, Marinalva e José são diferentes, mas ao mesmo tempo possuem algo em comum: a dificuldade para se alimentar. Trabalham tão próximos um dos outros e mal sabem que passam pelas mesmas dificuldades, com exceção das amigas Vilma e Ridalva que se conhecem. Só Vilma, Ridalva e José sabem a dor e o barulho que seus estômagos fazem quando estão suplicando por um pouco de comida. Embora esses trabalhadores saibam que é uma necessidade que nem sempre podem corresponder. Essas pessoas, apesar de trabalharem arduamente dia-a-dia com problemas de saúde, não conseguem garantir o direito básico de um cidadão, que é a alimentação. Em suas buscas pelo pão de cada dia, tudo o que conseguem é a fome de cada dia, que aperta e aparece sem nenhuma perspectiva de que irá passar.

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Anna Clara Lôbo
Anna Clara Reis Lôbo

Jornalista que se apaixonou pela área de experiência do usuário.