É possível uma estética neutra?

ano II: ensaio
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7 min readMay 26, 2021

Por Mayã Fernandes

Leni Riefenstahl, “The last of the Nuba” (1977).

“Ao olhar essas imagens sinto um incômodo que não sei descrever. Elas são bonitas, mas sei que existe algo de errado, de perverso… A foto é bela, entendo a técnica utilizada, mas o motivo, o conteúdo, parece-me um tanto estranho. O que a artista está fazendo? Porque ela precisa se posicionar no meio das pessoas, porque é ela que está no centro?”

A citação acima foi proferida por um dos meus alunos durante uma aula de Filosofia da Fotografia. A questão vem sendo cada vez mais repetitiva em meus cursos desde a abertura da primeira turma e revela-nos o incômodo da compreensão de uma estética neutra. A imagem em questão representa a cineasta alemã Leni Riefenstahl (1902–2003) em uma das suas viagens realizadas em 1977 ao Sudão, no território dos Nuba. Riefenstahl fotografou esses povos por mais de uma década e após lançar a primeira edição da obra The last of the Nuba (1973), foi criticada por continuar utilizando elementos estéticos que remetem à sua produção artística do período nazista.

Conheci a produção de Riefenstahl por meio da crítica realizada pela filósofa estadunidense Susan Sontag, no ensaio Fascinante Fascismo (1986). Sontag questionava o processo de “desnazificação” que Riefenstahl havia passado, como se a predileção de Adolf Hitler e a fortuna investida nas obras de Riefenstahl fossem livres de ideologia nazista. Seu envolvimento com o partido e o apreço por Adolf Hitler eram inegáveis. E por mais que ela fizesse ressalvas sobre sua relação com o ministro da propaganda Paul Joseph Goebbels, não modificou sua intensa produção de propaganda totalitária.

Em virtude de seu ilimitado acesso pessoal a Hitler, Riefenstahl foi precisamente a única diretora alemã de cinema que não prestava contas ao Departamento de Cinema do Ministério de Propaganda de Goebbels. […] A sobrecapa de Os últimos Nuba resume fielmente a linha-mestra da autodefesa que Riefenstahl fabricou a partir de 1950 e que é mais completamente decifrada na entrevista que ela deu ao Cahiers du Cinéma em setembro de 1965. Aí ela negou que qualquer coisa do seu trabalho fosse propaganda, chamando de cinema verité. (1986, p. 67).

Sontag justifica sua crítica elencando as produções cinematográficas de Riefenstahl e demonstrando elementos estéticos que questionam a neutralidade das obras. Em entrevista para o Cadhiers du Cinéma, Riefenstahl comenta sobre seus filmes produzidos no período nazista. A cineasta afirmava que se sentia

[…] espontaneamente atraída por tudo que é belo. É, a beleza, a harmonia. E talvez, esse cuidado com a composição, esta aspiração pela forma, seja efetivamente uma coisa muito alemã. O que você quer que eu acrescente? O que quer que seja puramente realista, uma fatia da vida, que é mediano, cotidiano, não me interessa… Sou fascinada pelo que é belo, forte, saudável, que é vivo. Busco harmonia. (SONTAG, 1986, p. 68).

Riefenstahl relaciona conceitos da beleza e recorre à forma como elemento neutro para a criação de suas obras. Como argumentação, também explica que está preocupada em reproduzir a verdade, de representar os corpos como eles são. Com essas justificativas, entende-se que qualquer expressão artística produzida pela cineasta funciona como um reflexo da verdade de seu tempo, eliminando filtros ideológicos.

Deste modo, separo a crítica de Sontag em 3 partes: O conjunto de obras de Riefenstahl, os elementos da obra The last of the Nuba (1976), a justificativa utilizada para a composição de suas obras.

Com a ascensão nazista de Adolf Hitler, a cineasta aproximou-se de seu governo e em 1934 realizou o filme sobre o Congresso de Nuremberg financiado pelo Ministério da Propaganda. O filme O triunfo da vontade (1935) foi entendido como o modelo de estética fascista, com elementos como a encenação e a captura de imagens panorâmicas para um filme documental, a composição de cenas verticalizadas, a uniformização do público excluindo a ideia de individualidade para garantir a permanência dos interesses do grupo.

No documentário Olympia (1938), Riefenstahl realiza filmagens dos Jogos Olímpicos em Berlim sob a campanha de Hitler para propagar o estilo de vida alemão, ressaltando a perfeição do corpo humano, com enquadramentos que valorizavam suas composições idealizando uma simetria dos corpos, enaltecendo-os, comparando-os aos jogos olímpicos dos gregos antigos. Essas escolhas inseriram os atletas entre o humano e o divino, reavivando o tema do universo mítico. As imagens foram capturadas por câmeras em dirigíveis e balões que conseguissem representar os humanos como semi-deuses.

Sontag argumenta que a cineasta no livro The last of the Nuba, ignora sua relação com o partido nazista e nega parte de sua biografia, como se Riefensthal tivesse renascido com esta nova proposta etnográfica.

Considero essa temática sensível para as artes e a filosofia. Sontag sofreu dezenas de críticas por indicar essa estética utilizada pelos nazistas, foi perseguida e até nos dias atuais é possível encontrar artigos de revistas em tom jocoso ou recorrendo à lesbofobia para desqualificar os escritos da filósofa. Os textos de Sontag são importantes por indicar características inerentes à uma arte reacionária, que rompe com qualquer pluralidade de representação. Dentre os elementos utilizados pelo fascismo, Sontag explica-nos que a busca pela simplicidade das imagens produzidas no período nazista estava amparada nos motivos propagandísticos, a insistência pela simetria, a harmonia, a padronização dos corpos e as dualidades entre homem e mulher, público e privado, religião e Estado.

Nesse sentido, aproximo as considerações de Sontag com as dos teóricos pós-coloniais Edward Said e Grada Kilomba, pois ambos explicam a constituição do conhecimento colonial e dos paradigmas sustentados pela modernidade. A vinculação da estética com o processo de colonização pertence ao mesmo vespeiro que Sontag revirou.

Como meia dúzia de países conseguiram manter a colonização em continentes inteiros durante séculos? Said (2011, p. 40) deixa evidente como a produção intelectual atua de modo agressivo para a manutenção do poder. Kilomba vai além e indica que a própria universidade se preocupa em garantir a dominação colonial. Ela insiste na ideia de que a produção de conhecimento não é neutra, que a universidade cria suas próprias bases epistemológicas para justificar sua violência colonial.

[…] é importante porque o centro ao qual me refiro aqui, isto é, o centro acadêmico, não é um local neutro. Ele é um espaço branco onde o privilégio de fala tem sido negado para as pessoas negras. Historicamente, esse é um espaço onde temos estado sem voz e onde acadêmicas/os brancas/os têm desenvolvido discursos teóricos que formalmente nos construíram como a/o “Outras/os” inferior, colocando africanas/os em subordinação absoluta ao sujeito branco. Nesse espaço temos sido descritas/os, classificadas/os, desumanizadas/os, primitivizadas/os, brutalizadas/os, mortas/os. Esse não é um espaço neutro. Dentro dessas salas fomos feitas/os objetos “de discursos estéticos e culturais predominantemente brancos”, mas raras vezes fomos os sujeitos (KILOMBA, 2019, p. 50–51).

O conhecimento produzido na universidade aposta na criação de paradigmas teóricos que são elogios à estrutura dominante. O estranhamento que meu aluno sentiu ao observar uma fotografia de Leni Riefenstahl advém desse abismo que reside entre os dados científicos embasados na modernidade com os questionamentos feitos pela contemporaneidade. Assim, para muitos a técnica, a recorrência à objetividade e a neutralidade são argumentos conhecidos para desqualificar o conhecimento produzido fora do cânone europeu. Said comenta

É difícil vincular esses diversos âmbitos, mostrar o envolvimento da cultura com os impérios em expansão, fazer observações sobre as artes que preservem suas características próprias e, ao mesmo tempo, indiquem suas filiações, mas digo que devemos tentar, e devemos situar a arte no contexto mundial concreto (SAID, 2011, p. 39).

Said mostra-nos que os processos coloniais realizados pela Inglaterra, França, Alemanha e mais tardar pelos Estados Unidos, são apropriações das ciências, das artes e das humanidades para formação de uma cultura colonial, que esmaga as culturas populares dos países colonizados. Como uma ferramenta versátil, as artes visuais e a literatura, por exemplo, imprimem no cotidiano regimes de visualidades que remetem à história dos colonizadores, que preservam a centralidade do europeu e subjugam outros corpos.

Consequentemente, a produção de The last of the Nuba utiliza os mesmos parâmetros estéticos utilizados em O Triunfo da vontade e Olympia. A idealização colonial, a acentuação do Outro como primitivo e mítico, a busca pela simplificação das formas compõem a objetificação dos Nubas e enfatiza a hegemonia europeia.

Percebo que o estranhamento é constante e nosso papel é pautar essas questões do mesmo modo que Susan Sontag, Edward Said e Grada Kilomba, sem receio do levante colonial.

Referências:

KILOMBA, Grada. Memórias de plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

RIEFENSTAHL, Leni. The last of the Nuba. Berlim: Harvill Press, 1976.

SONTAG, Susan. Sob o signo de saturno. SÃO PAULO: L&PM: 1986.

SAID, Edward. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das letras, 2011.

Mayã Fernandes é escritora, ensaísta, podcaster e filósofa de bar. Doutoranda em Teoria e História da Arte pela UnB, mestra em Metafísica e graduada em Filosofia pela mesma universidade. É professora de Filosofia da Arte e Filosofia da Fotografia, desenvolvendo estudo sobre a imagem abstrata na Antiguidade e na Arte Moderna. Seu site é www.linhasdefuga.com.br

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