A cor púrpura, de Alice Walker: uma urgente leitura sobre racismo, patriarcado, machismo e, é claro, o amor

Há que ter pressa para entender este mundo doente e, mais ainda, torná-lo menos terrível. Agora, já!

Karina Sgarbi
ano II: ensaio
4 min readAug 20, 2020

--

Há dores e problemas e também muito de agonia que a maioria dos seres respirantes desta terra jamais experienciarão. Condições geográficas, culturais e históricas, e também falhadas construções sociais, são hipotéticos tijolos e cimento de um muro que não se vê, mas que muito mal faz. A barreira, esta, apesar de invisível, já não é secreta, mas apenas a uns poucos é que interessa a derrubar. Até porque os muitos outros estão mesmo bem ocupados brincando de fingir presidir um país.

E, para os primeiros, nós, a literatura é sempre essencial arma e também escudo. Porque não há como destruir preconceitos sem entender o que são, como são. Diante do privilégio de não enfrentar tamanhas desgraças ou, ao menos, não todas elas, são as palavras o que nos permite sentir na pele uma dor que não é nossa, mas que acaba por ser, também.

Em A cor púrpura, de Alice Walker, a protagonista Celie tem catorze anos e se vê como menos bonita e não tão esperta quanto a irmã, Nettie. São ambas negras, à sorte de um pai que pouco se preocupa e muito lhes faz mal e com a mãe assassinada por outro homem. Um conjunto de abusos, da relação impiedosa e ainda atual, infelizmente, em que a mulher tem a condição única de obedecer aquilo que o homem diz. E, se ousa questionar, apanha. Se não o faz, apanha também. Pouco valemos neste mundo, apesar de sermos quem a ele vida traz.

Celie é um tesouro, é quem nos permite sentir tudo e todas as coisas, como diria Pessoa. É dada pelo pai, feito um saco de pão, a outro homem, que passa a ser seu marido. Mas não chega a ser esposa: é apenas a empregada doméstica, a babá, o corpo invadido dia sim e outro também. Dois filhos seus, frutos de abusos anteriores, andam pelo mundo sem também saber quem são, por origem. Dói nela, em mim, em todos que temos um coração.

Porque a história está neste livro muito bem escrito e também na vida real. Oxalá fosse apenas o retrato de uma época que não existe mais. Mas é agora.

“Se ouvisse sempre as desgraças das mulheres de cor, o mundo seria diferente, disso pode ter a certeza.”

Trata-se, aqui, de um livro imenso. Não por menos, ganhador do Pulitzer. A auto descoberta enquanto mulher, a chegada do amor que nem se acreditava existir, o ódio pela condição que a sociedade lhe meteu sem nem perguntar se podia, os homens todos que para nada servem além de machucar, de matar sonhos e sentimentos. Dói, já disse.

Um tanto arriscado, mas de certeza válido, é afirmar que a pérola máxima da obra está em não apenas nos contar a vida da mulher negra no contexto pós-escravidão nos Estados Unidos ou tampouco ser uma história apenas de amor ou do sofrimento que ele traz, quase sempre. Nettie, com mais sorte que a irmã justamente por causa da irmã, nos narra, ainda, a vida na África.

Uma viagem essencial, com críticas pontiagudas aos grandes causadores de um mal que ainda reverbera neste mundo. Mudam os disfarces, as justificativas, acaba por ser sempre a mesma merda. Porque os brancos são maioria apenas em controle de poder, em dizer que são donos de terras e gentes e enfiar ali o que bem entenderem. Já chega.

A África de quem ficou, de quem tenta sobreviver. A América de quem foi para lá levado para ser impedido de existir. O que foi feito, e ainda é. Tristeza, revolta.

“‘Tempos difíceis’ é o que os ingleses gostam de dizer quando falam da África. E acaba por ser fácil esquecer que os ‘tempos difíceis’ da África foram difíceis por causa deles mesmos.”

Simples e fatal.

Há também, claro, personagens de apoio que são tão marcantes quanto a estrela maior. Shug, é possível escutar a sua voz a cada vez que sobe ao palco, e Sofia, sua coragem e resistência trazem arrepios, porque mulheres muito fortes, também as há, somos todas.

Quanto aos homens, apenas náuseas, muitas.

Não é este um livro que pode apenas ser fechado após a leitura da última palavra na última linha da última página. Tampouco é do tipo que cabe na estante para estar ali apenas porque sim. É obra daquelas que precisam de ser soltas ao vento, de estar em umas mãos agora e noutras logo a seguir, porque não há mais tempo para o silêncio, para a espera.

Nada é mais didático que a empatia provocada por uma leitura avassaladora.

“Eu comecei a pensar por que é que precisamos do amor. Por que é que sofremos. Por que é que somos pretos. Por que é que uns somos homens e outros mulheres. Donde vêm realmente as crianças. Não levou muito tempo até descobrir que não sabia nada. E se se pergunta a nós mesmos por que é que se é homem ou mulher ou planta não quer dizer nada se não perguntarmos. Penso que estamos aqui para pensar. Para perguntar. E que ao pensar nas coisas importantes e ao fazer fazer perguntas sobre as coisas importantes, se aprende coisas pequenas, quase por acaso. Mas nunca se sabe nada mais acerca da coisa mais importante do que aquilo que se sabia ao princípio.”

--

--

Karina Sgarbi
ano II: ensaio

“Não diz coisa com Coisa nem escreve nada Que preste” (Excerto de Um útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas)