A Fuga

Fernando Teixeira
ano II: ensaio
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11 min readJul 9, 2020

Tão logo botava os pés para fora da fábrica, um cigarro: e então: o formigamento de prazer percorrendo todo seu corpo. A recompensa por tantas horas de serviço árduo, ritualística celebração ao fim da jornada. Nos últimos dias, porém, passara a ter outro motivo para saborear ainda mais os poucos minutos que passava de pé recostado no capô do carro, ouvindo desatentamente as cansadas palavras de despedida dos colegas: a passagem das alunas do período noturno, algumas delas trabalhadoras da fábrica como ele, do primeiro turno: transfiguradas, maquiadas, despidas dos uniformes costumeiros, os corpos delineados pelos jeans colados e roupas casuais, cujos caminhares ele acompanhava, alongando discretamente o olhar, tragando lenta e deliberadamente.

Sentia-se confortável no papel de observador. Confortável naquele limiar entre o fim do expediente e o momento em que daria a partida no carro e voltaria para casa, para a mulher e a menina recém-nascida — ainda sem nome, ainda não-batizada, uma criaturazinha que não se parecia com ninguém em particular, embora ouvisse com frequência que era a cara dele, ao que ele assentia, fingindo o orgulho que se espera do pai nessas ocasiões. Em casa, apenas ouvia. Sogra, vizinhas, irmãs — mulheres cujos rostos não lhe diziam nada que já não soubesse, rostos que já observara a exaustão.

Ele não era como os outros caras com quem trabalhava. Agora que era casado, gostava de se dar ao respeito. Às vezes ele se perguntava se elas, as estudantes, percebiam o homem parado, fumando, enquanto passavam, sempre no mesmo lugar, o homem que nunca sequer tentou qualquer gracinha, nenhum assovio. Vê-las era quase que suficiente, quase que bastava.

Uma delas em particular: curvilínea, cabelos cacheados que cascateavam sobre os ombros, invariavelmente vestida com uma blusa que mal alcançava o cós da calça: no rosto os sinais de acne e puberdade tardia.

Tão logo chegavam à maioridade, até mesmo antes, os homens tornavam-se funcionários de alguma das fábricas e as mulheres, donas de casa. Depois vinham os filhos, um carro usado longamente financiado e uma casa — própria, se o casal tivesse sorte: um puxadinho esquálido, uma extensão da casa dos pais, crescendo feito um tumor sobre estruturas precárias, paredes sem reboco e janelas de aço: lares primitivos habitados por seres minerais.

Desde o nascimento do bebê ele não fumava mais em casa. A mulher reclamava do cheiro só quando estava de mau humor. No mais das vezes, simplesmente ignorava, ocupada que estava com a criança e os afazeres domésticos. Era boa, prestativa — perdera o emprego na fábrica tão logo souberam da gravidez, mas ela resolutamente resolveu deixar pra lá: todo mundo sabia que um processo demoraria anos e que fábrica nenhuma a empregaria de novo depois de botar os antigos patrões na justiça.

O dinheiro rendia cada vez menos, mas a crise ia passar, sempre passava. O mesmo acontecera com os pais deles e com os pais dos pais dos pais deles em um sem número de crises que se sucediam, intermitentes, quem sabe, ele se perguntava, não com essas palavras, se não se tratava de uma crise só: atávica, inevitável.

Tudo que se recordava ao despertar era a dolorosa sensação de felicidade irrecuperável. Semidesperta agarrava-se à memória que desaparecia depressa demais, substituída pelas preocupações do dia a dia. O lado vazio da cama de casal significava que Ricardo já estava lá fora, cerimonialmente lustrando o carro usado que comprara dois meses atrás e que ele admirava como se fosse uma Ferrari. Logo, ela ouviria o ronco do motor, de novo e de novo, aquecendo, como se prepararasse para disputar uma corrida; depois o silêncio que precedia seu aparecimento na cozinha. Cara séria, sempre fechada, olhar perdido, provavelmente pensando nas prestações do som do carro que ainda devia.

Ouviu o bebê chorar.

Os olhos que de relance a observaram do espelho estavam fundos. Segurava a criança, que resmungava, com uma das mãos enquanto escovava os dentes — da melhor forma possível — com a outra. Ajeitou a criança no carrinho, escovou os cabelos, dessa vez prestando atenção ao próprio reflexo. Rosto mais magro, olheiras. Sulcos ao redor da boca e dos olhos.

O cheiro de café que percorria a casa significava que Ricardo já estava na cozinha, preparando-se para sair. Mesmo de costas virada para ela, encarando concentradamente o bule, ela adivinhava bem sua expressão frustrada.

As madrugadas dela eram um apanhado de entressonhos e memórias tênues de ter o bebê nos braços, ora amamentando-o ou acalentando-o, enquanto o Ricardo roncava furiosamente a seu lado. As manhãs eram dedicadas às mesmas discussões inúteis: sabe que tenho que sair daqui sete e quinze e mesmo assim cê não acorda, ele começou, e a exaustão a alcançou antes mesmo que ela atentasse às palavras que ele enunciava com aquele mesmo tom queixoso de sempre. Era como participar involuntariamente do mesmo teatro todas as manhãs.

Ao longo do dia, cuidava da criança, que parecia nunca dormir em hora alguma, e nas raras ocasiões em que dormia, ela aproveitava para ajeitar a casa: trabalho ingrato e diário, coisa que desde menina ela sempre soube, mas entre o prazer de ter um canto para chamar de seu e a perpétua responsabilidade de manter sozinha tal canto em condições habitáveis havia muita diferença.

Ricardo saia diariamente para funcionar o carro, depois voltava à cozinha, tomava o café e saía, um cigarro dependurado no canto esquerdo do lábio. Os outros funcionários da fábrica eram apanhados pelo ônibus, mas Ricardo gostava de se pavonear com o carro recém-comprado. Durante as folgas, saia para longos passeios solitários: o som automotivo que ele também ainda estava pagando ribombando pela rua, anunciado sua passagem como as trombetas do apocalipse.

O pastor falava sempre de arrependimento: não há pecado que não seja redimido pelo sincero arrependimento, mas o fato é que na vida, no dia a dia de quem labuta sob o sol ou dentro de um galpão que seja, enfim, de quem sente o suor turvar a vista à guisa das lágrimas que por falta de tempo ou de dinheiro não se choram, o fato é que compaixão é um conceito mais plausível na boca de quem fala de um púlpito.

Raro eram os momentos de silêncio. Apreciava-os cada vez mais. Sem criança gritando ou chorando, sem a voz do marido, sem música. Deixou-se cair no sofá e sentou o sono penetrar-lhe a mente, devagar e inevitavelmente. Sonhou com um pássaro arremetendo contra o azul vazio de um céu sem nuvens.

Acordou com Ricardo abrindo a porta. Esperou as costumeiras reclamações acerca do desleixo, que desta vez ela sequer poderia rebater, uma vez que ainda se encontrava deitada no sofá, o corpo sonolento e a cabeça pesada.

Ele atravessou a pequena sala e se sentou à mesa da cozinha, quieto, o olhar ainda mais perdido que o de costume. Ela o seguiu com o olhar, inquisitivamente; lentamente, levantou-se e foi até a cozinha. Ele, com a cabeça baixa, fixando o olhar o no tampo da mesa, anunciou que venderia o carro. “Pra pagar o aluguel”, disse.

Seria ruim não ter mais o carro, um pisão em falso, como sentir que o pé que se erguia para alcançar o próximo degrau na vida houvesse errado, pesada e dolorosamente, por poucos milímetros, o novo patamar. Por outro lado, sentiu uma espécie de alívio por não ter que encarar os vizinhos que os observavam das janelas, furtivos, descontentes com a balbúrdia do som. A neném também se incomodava com o barulho, coisa que ela evitava dizer a Ricardo, já tão preocupado com o serviço e com as contas e cujo único divertimento parecia ser lustrar o carro, portas abertas e música alta.

Lado a lado, em silêncio, dois irmãos caminhavam, marcando com seus chinelos a estrada de terra que desembocava no asfalto da avenida do bairro. Nenhuma nuvem. Moravam à beira da cidade, próximos aos bosques de eucaliptos.

O diabo fala através do silêncio. Um vazio, uma erosão lenta das ideias que faz com que a moral e a responsabilidade e as boas intenções ou o que quer que você chame a parte boa da sua cabeça seja consumida por completo e quando você percebe está com as mãos firme no pescoço de uma pessoa com a qual você só queria conversar, uma moça que você queria dizer que amava mas que agora nunca mais vai ouvir coisa alguma, e você nunca mais vai ouvir coisa alguma porque as bocas vão se mexer e a música vai continuar tocando no rádio no som mas nada, você não vai ouvir nada só o silêncio contínuo no lugar onde suas ideias deveriam estar.

O calor percorria seu corpo como minúsculos insetos. Caminhou ladeando a cerca que se estendia em direção à represa, interpondo-se entre ele e o bosque de eucaliptos. Na boca o gosto amargo do café, dos cigarros, da pobreza. Caminhou desalinhadamente, traçando um caminho descontínuo por entre as árvores, tropeçando e urrando para o nada, até sentir o chão nos seus joelhos e as gotas gordas de chuva na nuca e o cheiro úmido da terra.

Quando voltou com a gasolina, viu dois moleques parados, transfixados diante do corpo. Tarde demais. Só lhe restava fugir, para onde, não sabia, mas não demoraria muito para que chegassem até ele, e então já era.

A calça ainda estava suja de terra à altura dos joelhos. O carro, que ele havia negociado, era sua única chance. Percebeu que deixara o galão de gasolina ainda próximo do corpo, ao ser surpreendido pelas testemunhas. Tanto melhor que o tivessem visto, pensou. Assim, ao menos o corpo da moça estaria em um estado decente quando fossem sepultá-la. Pensou se daria tempo, se teria como recuperar o combustível e decidiu arriscar. Talvez alguns poucos minutos antes que surgissem os vizinhos e a polícia.

Correu, o suor encharcando-lhe todo, até as cercanias do bosque de eucaliptos. Não ouviu nada. Esgueirou-se, atento a qualquer som diferente, qualquer barulho de gente, mas não ouviu nada: certamente os garotos ainda não tinham tido tempo de chegar até a polícia. Naquele lugar ermo, ele bem sabia, não havia sinal de celular. Viu o galão. Apanhou-o. Mas antes de ir, de dar o fora de vez, sabe-se lá para onde, num ato impensado, resolveu aproximar-se da moça.

O corpo jazia, ainda inteiramente vestido, quase como se dormisse, não fosse o ângulo esquisito formado pelas pernas e braços, desalinhados, claramente se esforçara para lutar. Uma boneca de pano estirada no chão. Os olhos fixos em algum ponto indistinto no céu, inertes.

Desta vez não correu. Passos apressados, alcançou o carro, a mente um turbilhão no qual ele se deixava perder. Ideias indistintas, desordenadas, um vórtice de vozes e possibilidades vagas. Não poderia voltar para casa, nunca mais. Arrancou a bateria do celular, posicionou-o na estrada, com cuidado, e passou sobre ele, ouvindo o som de algo se quebrando sob a roda, enquanto disparava rumo a lugar nenhum.

O telefonema que recebera não foi de Ricardo, mas sim do comprador do carro, um colega de fábrica, questionando-a, frustrado, sobre o paradeiro do marido. Dormiu só aquela noite, ela e o bebê. Na manhã seguinte, pensou, vou ligara para a polícia. Mas não foi necessário: a polícia veio até ela, com todo tipo de perguntas. Não, ele não falara com ela. Não, ela não sabia onde ele estava. Não, ela não sabia onde ele poderia ter ido. Os pais moravam numa cidade vizinha, se ele não estava lá, ela não saberia onde ele poderia estar.

Na delegacia, fizeram mais perguntas. Aparentemente, Ricardo estava envolvido em algo muito sério. Dois garotos o haviam encontrado próximo ao corpo de uma moça, segurando algo que parecia um galão. Fugira ao vê-los. Não, não havia sinal de violência sexual, não, não sabia se ele e a vítima se conheciam ou se eram amantes.

Ao ser deixada em casa pelos policiais, sentiu-se suja, sórdida e sabia que assim seria vista. Ainda que não tivesse nada a ver com o ocorrido, ninguém na cidade jamais a enxergaria da mesma forma.

O velório atraiu centenas de pessoas, entre conhecidos e curiosos. A mãe da garota assassinada, soube ela, amaldiçoava, entre urros, o homem que fizera aquilo com sua filha. E o que começou como murmurinho tomou proporções imensas e várias teorias passearam pelas bocas entediadas dos cidadãos do lugar: crime passional, estupro, ritual satânico.

Tampouco sabia ela o que poderia ter levado o marido a fazer algo tão terrível. Por sua vez, aderiu e depois descartou várias teorias. Mas tanto fazia. Todos sabiam que ela não tivera nada a ver com o crime, mas ainda assim sentia que a cidade a observava, centenas, milhares de olhares que alternavam entre a pena e repulsa.

O aluguel continuava atrasado. A senhoria, não sabia se por piedade ou por receio, passou 3 meses sem cobrá-la. Enquanto isso, viva como podia, com a ajuda pontual da mãe, que fazia as compras necessárias com o dinheiro da aposentadoria. Pensava todos os dias, ao acordar, em buscar um emprego, mas sabia que as chances de conseguir um eram escassas, especialmente ali.

Passava horas olhando o pequeno, que agora parecia finalmente ter encontrado uma espécie de paz no sono. Dormia, arfando tão suavemente como fazem os bebês, vez ou outra resmungando baixinho, mas sem as birras noturnas. O rosto, nesses meses, ia se moldando em algo parecido com o do pai.

Pensava, ao observá-lo, ao sentir os dentinhos que despontavam machucando-lhe o bico do peito, se ele seria capaz de matar alguém. Se ele herdara do pai a ruindade.

A última vez que viu Ricardo foi na televisão: desgrenhado, faminto e sujo, era levado pelos policiais ao presídio da cidade vizinha. Alguém o havia denunciado. Após algumas semanas em que o ar parecia estanque, a notícia espalhou-se pela cidade como um contágio. Subitamente, seu telefone começou a tocar a todas as horas, do dia ou da noite, e tudo que ela podia fazer era silenciá-lo e contemplar a possibilidade ir embora. Quando comunicou à mãe, ela já não mais tentou dissuadi-la.

As pessoas esquecem, ela dissera até alguns dias antes da captura, mas agora havia ficado claro que a memória, naquele lugarejo teria vida e sobrevida, ressuscitada com frequência em olhares de soslaio e conversas à meia-voz, entreouvida nas casas cujas janelas se abririam quando ela fosse passear com o filho.

O menino não poderia crescer ali e nem ela continuar a viver ali. A senhoria veio pedir-lhe a casa.

Tudo que se recordava ao despertar era a sensação de felicidade irrecuperável, um entressonho em que o vazio se assemelhava a mais profunda paz. O bebê acordou assim que o celular começou a tocar.

Estática, silêncio e a voz de Ricardo — outras tantas ao fundo. Não pôde ouvir o que ele dizia. O coração batia nos ouvidos, atordoando-a. Não respondeu, apenas largou o telefone enquanto ele berrava, inquisitivamente, do outro lado da linha. O espaço, a distância, as grades e o concreto que se lhes interpunha pareceu insuficiente. Algum dia, ela soube, ele sairia da prisão, e então ela teria de ouvir a versão dele.

Precisava sair, precisava deixar aquele lugar.

Pegou o menino no colo. O choro dele somava-se ao coração disparado. Desorientava-se, errava pela casa, os pés desobedientes e na cabeça um turbilhão. Apertou a criança contra si, abafando o som ao máximo. Abraçou-o tão forte que só se ouviam fiapos esganiçados. Uma breve tosse. As lágrimas do filho escorriam pelo peito dela. Então o choro cessou.

Silêncio. Deitou o menino no berço e foi fazer as malas.

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