A poética de Carla Andrade

ano II: ensaio
ano II: ensaio
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2 min readNov 1, 2021

Semiótica e semi-deuses

eu queria subir em um tsuru
olhar bem antes para o seu
degradê de cores e rir da sua
longevidade jovem de mil anos

é um pesar ser tão eterno
(triste ou feliz) sem descanso
sem desmame do tempo

eu queria ir do Japão para a China
no seu grou amarelo poeta Calixto
destruir e reconstruir a Torre
sete vezes numa bebedeira cabalística
e trocar as cores das cerejeiras
pelas cores dos pessegueiros
mas não posso: eles também
têm vida longa e próspera

eu queria ter o corpo do Sísifo
as minhas pedras têm o mesmo peso
e rolam do topo todos os dias
e, se não for pedir muito,
ter menos ouvido para escutar
as senhoras disputando
a eternidade antes da missa

(os suicídios estão mais sinceros
que as revoltas)

gostaria de sacolejar bandeiras
todas as cores e já, agora
a maioria cor sangue
mas acho que as pessoas
deveriam enxergar
como os cachorros
espectros azuis ou laranjas
elas estão bem bipolares
não merecem as cores

cansada: quero
trançar meu cabelo
asilar este momento
e despertar amanhã
menos sóbria e sombria
ver sombra de árvores
no espelho dos meus olhos
e no colo da vida
ser flor das benzedeiras

Os galos continuam tecendo a manhã

a criança pinta os pés
da galinha de esmalte
miúdos na bacia
de alumínio da mãe

o pai fala para o filho
que vai quebrar seu pescoço
se ele entrar no mar de novo

a criança quebra o pescoço da barbie
a mãe fala que não vai comprar outra
a mãe e a filha com as unhas pintadas

Os poetas não deixam em paz:
o mar
a galinha
as crianças
os pais

hoje, parece que os
galos cantaram menos.

guerra

mais um dia
carrego minha
bazuca de likes
quase
sem munição
imunidade

Caixeira viajante

Entre nosso abraço
– numa tarde
gorda
suada –
existe
cheiro
pressão
taquicardia
ossos
fingimento
ataduras
feromônios
detenção
redenção
veneração
ciência
e essa santa pendurada
no retrovisor.
Há coisas demais
entre nosso abraço suado
numa tarde gorda.

Carla Andrade é mineira e brasiliense. Tem quatro livros de poesia publicados: Caligrafia das Nuvens (Patuá), Voltagem (7Letras), Artesanato de Perguntas (7Letras) e Conjugação de Pingos de Chuva (LGE). Além de poeta, é jornalista e servidora pública.

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ano II: ensaio
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A revista literária ano II: ensaio se apresenta como o meio de expressão de um coletivo de escritores, críticos e poetas que se utiliza das bases ambíguas, experimentais e críticas da linguagem ensaística a fim de ensaiar com a palavra literária.