A poética (nem tão) apocalíptica de Torquato Neto

Parte 1

ano II: ensaio
ano II: ensaio
11 min readDec 3, 2020

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Só o monstro é original na morte.
Heitor arrastado por Aquiles diante dos muros de Troia
não é a morte.
A morte de Ofélia não é a morte.
O suicídio ritual de Mishima não é a morte.
Torquato Neto.
Francesca Woodman.
O tiro de Hemingway na própria boca
talvez seja a morte.

Victor Heringer [1]

Eu conheci a obra de Torquato Neto em 2014 através de uma postagem da póstuma modo de usar & co [2]. Ali, naquele ano, não sabia que o poeta me acompanharia pelos próximos longos anos da minha vida: das madrugadas apocalípticas de 2015 à atual pandemia, onde me exponho ao perigo de escrever sobre sua obra. A companhia poética não termina aqui, ainda que a morte, tão emblemática, tenha me impedido de encontrá-lo por aí, em alguma rua. Só não posso esquecer que toda rua lembra histórias de um tempo que não acaba. É por ali que tenho ido: pela rua sem fim que é a poesia de Torquato Neto. O que eu proponho aqui é uma leitura crítica, mas também, e sobretudo, um compromisso com os poemas, um diálogo que gostaria mais de levar à obra de Torquato do que ter sucesso na interpretação.

Torquato Pereira de Araújo Neto nasceu em 1944, Teresina, Piauí. Em 1972, um dia após seu último aniversário, cometeu suicídio em casa, no Rio de Janeiro. Em 28 anos de vida, o poeta produziu uma extensa e fragmentada obra em diferentes expressões artísticas: música, poesia, cinema. Sem mencionar sua importante incursão no jornalismo cultural com a revolucionária Geléia Geral. Décio Pignarati o chamou de “criador-representante da nova sensibilidade dos não especializados”. Paulo Leminski disse que ele foi o “único mito poético” de sua geração. A bíblia torquateana? Os últimos dias de Paupéria, livro póstumo editado por Waly Salomão, em 1973. Não publicou livros em vida, mas tornou-se referência imprescindível aos poetas marginais da década de 1980. Uma figura controversa, sem dúvida.

Há quem prefira dizer que Torquato não deixou algo que se possa chamar de obra. Há quem prefira fazer uma leitura da obra como reflexo de seu suicídio, esse estigma que marca corpos em decomposição. Em minha perspectiva, não é correto ignorar a influência de eventos biográficos ou classificações críticas, mas é preciso cuidado para não reduzir suas produções ao suicídio ou à sua figura mítica, ao fixo e imutável mito da marginalidade que parece ter sido alimentado após seu último ato. Também é possível lê-lo desse modo, claro, eu mesmo o fiz por muitos anos, jovem em busca de figuras subterrâneas. Aos poucos, modifiquei minha lógica: quase sempre à procura do mito, passei a enxergar o sujeito. Do mito ao sujeito. Do sujeito à obra.

Hoje, após um percurso turbulento, caminho com mais liberdade: imagino o medo e a desconfiança entre artistas brasileiros de 68 a 74: Médici, AI-5, anos de chumbo. Para alguns, um ambiente apocalíptico. Diferente, mas não tão distante do que outros têm sentido atualmente em meio à pandemia e à realidade absurda (na falta de palavras) do país. A poesia de Torquato, filha aparente do apocalipse, talvez seja fuga, refúgio, desistência. Ou crítica, confronto, resistência. Sonho, utopia, terra longínqua. Ou talvez tudo isso junto. Em sua homenagem: obrigado, Torquato.

Ao longo de leituras e audições da poesia torquateana, identifiquei uma ampla repetição do termo “fim” [3]. Supus que este elemento não seria aleatório, mas um dos possíveis atravessamentos que compõem a obra poética do autor. Apenas sua repetição, contudo, não seria suficiente para afirmar que se trata de um atravessamento; foi necessário verificar se há um significado compartilhado ou aproximado no uso repetido da palavra que esteja associado, por sua vez, à construção de sentido dos poemas. É uma pena que não dê para fazer uma discussão integral de todos os poemas que compõem a seleção que preparei. Aqui, destaquei trechos que permitem visualizar a proposta de interpretação, ficando desde já o convite para visitar a poesia de Torquato.

Entre poemas, encontram-se as duas versões de Literato Cantabile, Cogito e Mais desfrute, curta. Entre canções, encontram-se Marginália II, Mamãe, coragem, Três da madrugada, Dente no dente, O nome do mistério e Que película. Os textos não serão lidos cronologicamente, embora seja importante mencionar que a produção poética elencada tenha sido escrita entre 1968 e 1972: pequeno arco temporal que vai de sua fundamental (e nem sempre lembrada) participação no movimento tropicalista à sua virada pós-tropicalista, a partir de 1969, quando se aproxima de Waly Salomão e Hélio Oiticica. Torna-se um defensor do chamado cinema marginal e do super-8, os cabelos crescem, as roupas desleixam, a contracultura é o limite: a linguagem, o corpo, a iminência do fim. É preciso forjar lugares onde seja possível sobreviver. Em primeiríssimo lugar, o lugar:

O poeta não se cuida ao ponto
de não se cuidar: quem for cortar meu cabelo
já sabe: não está cortando nada
além da MINHA bandeira | | | | | | | | | | | | =
sem aura nem baúra, sem nada mais pra contar
Isso: ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. a
r: em primeiríssimo, o lugar.

Poetemos pois.

(O Poeta é a mãe das armas)

Em Torquato Neto, o apocalipse tem várias versões. O fim do fim, a afirmação do fim, a negação do fim. Assim como há existências possíveis, há “fim” possíveis. O fim não paira apenas no tempo, também está no espaço, em lugares, sujeitos, objetos, na linguagem. Literato Cantabile, por exemplo, possui duas versões com estruturas semelhantes, mas sentidos variados. Essa característica indica dois traços intensos da poética torquateana: a fragmentação e a intratextualidade. É possível encontrar versos destes mesmos poemas em seus Cadernos e Diários pessoais, o que demonstra que, além de reutilizações, o autor está em diálogo constante com sua própria obra ao explorar reflexões em textos com estruturas semelhantes que, contudo, se distinguem a partir de diferentes costuras.

[11] a guerra acabou
quem perdeu agradeça
a quem ganhou.
não se fala. não é permitido
mudar de idéia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos
[…]
[20] toda palavra envolve o precipício
e os literatos foram todos para o hospício.
e não se sabe nunca mais do fim. agora o nunca.
agora não se fala nada, sim. fim, a guerra
acabou
e quem perdeu agradeça a quem ganhou

(Literato Cantabile, 1ª versão)

[1] Agora não se fala mais
Toda palavra guarda uma cilada
E qualquer gesto é o fim
Do seu início
Agora não se fala nada
E tudo é transparente em cada forma
E em sua orla
Os pássaros de sempre cantam
nos hospícios
[…]
[15] Só tem que me dizer
O nome da república do fundo
O sim do fim do fim de tudo
E o tem do tempo vindo;

(Literato Cantabile, 2ª versão)

As duas versões possuem um mesmo núcleo em torno do perigo e da desconfiança em relação às palavras, tidas como “precipício” e “cilada”. Seu universo poético, contudo, está estruturado em elementos diferentes. Ainda que em ambas haja uma representação distópica do mundo, a primeira versão apresenta um ambiente de guerra, colocando ênfase ao término de um conflito; trata-se de um ambiente pós-guerra (“a guerra acabou”) e de isolamento de um grupo específico de pessoas (“e os literatos foram todos para o hospício”). A segunda versão, em outra perspectiva, identifica um ambiente estático e completamente controlado, uma realidade totalitária, em que o próprio corpo é marcado pela opressão do espaço (“E qualquer gesto é o fim/ Do seu início”).

Na primeira versão, o hospício é representado de forma ambígua, podendo ser fuga da guerra ou destino impelido aos literatos como resultado da guerra, um lugar em direção ao isolamento, onde se perde a noção de tempo (“não se sabe nunca mais do fim”) e é estabelecido o “nunca”. Na segunda, a república é sutilmente introduzida como lugar de liberdade em contraposição ao hospício, aqui representado como lugar de controle e dominação paradoxalmente habitado pelo silêncio e pelo canto dos pássaros (“Os pássaros de sempre cantam/ nos hospícios”). É possível sugerir que os dois poemas tenham um mesmo eu-lírico: um poeta internado. Mas a construção da realidade poética é diversa. A variação na estrutura de sentido do fim ocorre a partir de uma mesma caracterização distópica do mundo, com possibilidades de fuga e refúgio distintos: entre a amplitude do isolamento e a pequenez da liberdade, remota, mas possível.

Cogito apresenta outra lógica de relações entre ambiente e eu-lírico: como nas duas versões de Literato Cantabile, há uma ambientação apocalíptica (“todas as horas do fim”), mas o eu-lírico aqui, ao evocar o cogito cartesiano (penso, logo existo), subverte-o para além de uma personalidade isolada em meditação racional, ponderada. Quinet sugere que a síntese do cogito torquateano estaria na expressão “morro, logo existo” e, artisticamente, em “morro, logo crio” [4]. Em outra leitura possível, sugiro que a síntese do cogito torquateano possa ser “findo, logo existo, logo crio”. O fim, contudo, não é necessariamente a morte. É uma miríade de significados “transferíveis” e “possíveis”.

[1] eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim

(Cogito)

Segundo a caracterização que faz de si próprio, o sujeito está em condição limite: cria-se na medida do impossível, despido de segredos. No entanto, a homologia linguística entre início/impossível e fim/tranquilamente demonstra uma margem de ação do sujeito sobre sua realidade e seu tempo. Ele cria a si próprio, inicia-se como homem: cria seu próprio fim. Estamos localizados no tempo presente (“nesta hora”, “eu sou como eu sou/ presente”), ainda que o sujeito presente seja “desferrolhado indecente”. À maneira de Drummond, o eu-lírico torquateano poderia entoar:

Não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes
A vida presente

(Mãos dadas. Carlos Drummond de Andrade) [5]

O diálogo com a obra do poeta mineiro não é novidade nem segredo, basta ouvir Let’s Play That, escrita por Torquato Neto e musicada por Jards Macalé. Na canção, o intertexto volta-se para a figura do gauche: retraído, “desferrolhado”. Apesar disso, alguém que veio para desafinar o coro dos contentes.

Ao retomar Cogito, poderíamos dizer, não sem alguma liberdade, que estamos diante de um gauche vivendo à iminência do apocalipse. É preciso sobreviver às “horas do fim”. Embora o poema não traga um recurso explícito à ação, como podemos observar no Drummond de A Rosa do Povo e Sentimento do Mundo, há uma postura de ensaio entre a resistência e a indiferença. Se em Literato Cantabile há uma realidade distópica em que o eu-lírico projeta espaços de fuga e refúgio, em Cogito há um ambiente apocalíptico em que o eu-lírico, por outro lado, se posiciona “tranquilamente”, “na medida do impossível”, situando-se no presente da própria realidade em que (sobre)vive.

Em Mais desfrute, curta percebe-se a dificuldade de se estar sempre no limite. A realidade está entre a virtude e o vício. A virtude e o próprio vício jogam entre si ao longo das estrofes, nada fáceis de digerir. Ao fim, não parece que haja o que desfrutar, como o título sugere. É um dos poemas mais fortes que já li até hoje. As estrofes são organizadas em ordem alfabética. Onde se espera um texto truncado, encontra-se um ritmo volúvel, as pausas entre estrofes são como vírgulas conectadas pelo jogo de virtude e vício. Chuva, chave, precipício… hospício. A recorrência ambígua ao lugar do hospício em diversos poemas de Torquato Neto não é aleatória: o poeta foi internado e internou-se diversas vezes, sobretudo na virada para a década de 1970, em seus últimos anos entre nós.

[5] b) A virtude e o próprio vício
– conforme se sabe –
estão no fim, no início
da escada. Chave.
[…]
[15] d) (amar-te/a morte/morrer:
há urubus no telhado e a carne seca
é servida: um escorpião encravado
na sua própria ferida, não escapo: só escapo
pela porta da saída).
[…]
[29] f) A virtude
mais o vício: início da
MINHA
transa, início, fácil, termino:
“como dois mais dois são cinco”
como Deus é precipício,
durma,
e nem com Deus no hospício
(durma) nem o hospício
é refúgio. Fuja.

(Mais desfrute, curta)

O poema articula símbolos sugestivos e imagens incômodas, particularmente na quarta estrofe: urubus no telhado, carne seca servida, escorpião encravado na própria ferida. A crença de que escorpiões, quando encurralados, lançam seu ferrão sobre o próprio corpo reaparece em uma cena onde urubus esperam o suicídio do aracnídeo. O ritmo e a configuração dos versos são fluídos e velozes, mas as imagens e o tom de desespero conformam uma realidade fatal: se Deus é precipício, nem o hospício é refúgio. Há uma plasticidade sombria do fim. O apocalipse em ato: o hospício não é refúgio, a casa em Teresina não é refúgio, Navilouca não é refúgio, super-8, Geléia Geral, o lado de fora, o lado de dentro. Não, não há refúgio. Não houve refúgio. Apenas a porta da saída.

Nos seus Cadernos, em uma anotação de 17 de setembro de 1971, encontramos uma luta-limite de Torquato contra seus próprios refúgios:

a prisão, o hospício, a burocracia repressiva dos esquemas, o apartamento apertado no meio de apartamentos — enfim , esses lugares forçados podem (e devem, com o exercício de vida) ser curtidos segundo os papos da política, da psicologia etc. mas em nenhuma hipótese podem servir como refúgio contra, refúgio contrário, apocalíptico do tipo suicida (a mais “doce” tentação, a mais “cruel” e a mais “malandra”, saco, soluço, banheiro), o hospício é o lugar mais fundo que eu conheço — mas isso não é desculpa para que EU o transforme em refúgio, o fundo do poço e o lado de fora. a prisão não é jamais o ideal do meu lar e nem o meu lar deve servir como meu refúgio, nem lar e o lado de fora lá fora […]. [6]

Se não devemos ignorar a presença de elementos biográficos em sua produção poética, também não podemos cair na tentação de reduzir o sujeito e a obra a uma leitura teleológica, ou seja, tomá-los apenas a partir do suicídio, seu último ato. O alcoolismo, a depressão e o suicídio são fatos, mas não totalizam sua vida-obra. Devemos fazer jus à sua pluralidade estética: Torquato Neto e sua obra foram e ainda são “um poliedro de infinitas faces” [7].

Notas

* Algumas partes deste ensaio foram livremente inspiradas no artigo Projeções apocalípticas e anti-distopia na obra de Torquato Neto (1968–1972), publicado por mim e Victor na Revista de Literatura, História e Memória (Unioeste). A quem interessar a leitura, o trabalho está disponível em http://e-revista.unioeste.br/index.php/rlhm/article/view/24668.

[1] Trecho do poema Só o monstro é original na morte, publicado na revista Deriva. Disponível em: http://derivaderiva.com/so-o-monstro-e-original-na-morte/.

[2] Torquato Neto (1944–1972). Apresentação e seleção de Fabiano Calixto e Ricardo Domeneck. Disponível em: http://revistamododeusar.blogspot.com/2008/03/torquato-neto-1944-1972.html.

[3] Para todos os poemas de Torquato Neto citados aqui, consultei a obra Torquatália: Do lado de dentro (vol. 1). Rio de Janeiro: Rocco, 2004.

[4] Antonio Quinet. Morro, logo crio — O cógito de Torquato Neto. concinnitas, ano 16, vol. 01, n. 26, julho de 2015, p. 97.

[5] Carlos Drummond de Andrade. Sentimento do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 34.

[6] Torquato Neto. Torquatália: Do lado de dentro (vol. 1). Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p. 304.

[7] “Palavras são poliedros de faces infinitas e a coisa é transparente a luz de cada face distorce a transa original, dá todos os sentidos de uma vez, não é suficientemente clara, nunca”. In: Torquatália: Geléia Geral (vol. 2). Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p. 277–278.

Gustavo Paiva é mestrando em Estudos Literários pela Universidade Federal de Viçosa (UFV). Estudou a obra e a trajetória de Torquato Neto nos últimos anos. Atualmente se dedica à tradição da crítica literária brasileira e aos nexos possíveis entre as gerações marginais dos anos 1970 e anos 2000.

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