A poesia de Constança Guimarães

ano II: ensaio
ano II: ensaio
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5 min readAug 5, 2021

Aleatórias

1

sem tempo para acertar contas com a receita federal
da empresa do marido
que tinha seu nome

2

cem coisas para fazer
sem nenhum minutinho
sem nada para olhar
cerveja
cerveja quente
pras crianças
comida congelada
exausta com culpa

3

sem conversa
no almoço
estrogonofe com milho
contado um a um na ponta do garfo.
arroz é impossível contar
cem japoneses juntos vendo a monalisa
nunca fui a paris
eu ia, antes de me casar
um dia, talvez
antes do meu pai gritar
que era o único jeito
depois ‘de tudo que eu fiz’

4

sol não se mede não se conta
como as gotas que ela tomou todas ontem
calor não se mede
forno ligado o gás se espalhando
as gotas os comprimidos
sem história
sem história nenhuma na vida dela sem pausa
sem café nem vodca
com comida e fome

5

o menino falou muito alto ontem
ela não ouviu.
voltou para casa sem voz. a festa
cem pessoas sozinha
o menino no colo ardia

6

tempo não se mede.
cem dias
sem tempo pra nada.
sem tempo para tomar banho. sem tempo nem pra tomar banho
sem nenhuma gota. a água acabou
cem lágrimas caem em poucos dias
o tempo se conta assim.
os dias se contam como a água se conta — em gotas.
as lágrimas se contam às vezes
os meninos sentados no sofá.
cem reais. sem reais para pagar a conta. o dinheiro acabou.
o emprego sem emprego. sem emprego
sem emprego. no jornal, empregos.
sem vizinhas
cem casas em volta. sem ninguém
a janta.
os meninos sentados no chão perto da televisão.
televisão idiota velha chamuscada.
como será que eles conseguem enxergar o desenho?
sem imagem.
quantos pixels
o tubo velho ainda se esforça.
o menino do desenho grita: olá papai, trouxe um presente?
o pai do menino do desenho havia levado um presente.
as crianças dela se entreolham.
sem reais. sem emprego. sem pai em casa
sem água. sem salário
o marido. saiu. faz tempo.
levou o dinheiro na caixa
o celular que era o telefone da casa
o que poderiam ser dias bons.
deixou, apesar, um alívio não identificado
até hoje
e junto a angústia das crianças
cem dias se conta toda hora.
cem dias se conta todo dia.
às vezes se conta com lágrimas.

7

um dia dormi e
ali naquela bifurcação tem cem saídas
leia rápido: melancolia.
melancolia é uma palavra que não tem plural. experimente sentir e contar não dá. contei cem vezes, repeti. e sozinha ela se repetia, repetia, repetia, repetia. não teve fim. não me largou
cem degraus
sobe e desce um sem número de vezes.
a escada não conta a vida. tente não cair
a porta de igreja é grande meu véu
tem cem quilômetros
sem fôlego
ou desejo

8

sem ovos
sem leite
sem sabão em pó
sem café
sem pão sem bombril — cem vezes cem e mais uma utilidade!
as panelas sem comida
sem feijão
já tínhamos comido um quilo de sal.
muitos casos mulheres muitas camas
cama sem ninguém por aqui
geladeira com estrados congelados
eu sempre em casa só
sem tempo sem um minutinho
cem quilos.
para a comida das orcas krill
manada matilha alcateia
tento entrar e tento fugir

9

com as crianças com fome em casa
era domingo perguntaram pelo pai
fomos à janela, ver o sol e brincar com as nuvens
tinha muita gente na rua
sem tempo pra pensar
entramos correndo
bala de borracha. porrada. Tiros de verdade
a hélice do helicóptero voa a que velocidade?

Silêncio

uma mão esquerda
que treme
o nariz bonito do filho vivo
um filho morto
o mais novo
um marido
triste
carro na garagem
dedão em cada mão
um emprego
um dia depois do outro
sexo sem nenhum gozo
água morna na mesa de cabeceira
geladeira sem gelo
porque já não se faz drinques nessa casa há anos

uma bicicleta com pneus murchos encostada
um mais um não é dois
na cama de casal
um sábado
um mês
um ano
quase uma década
amarga
uma casa
descuidada

um filho vivo por ali crescido quase por conta própria
quem cuida deste rapaz cada vez mais bravo
uma novela
um capítulo por dia
um pé esquerdo
passo, lento
um café e um pão de queijo às vezes
sombrinha molhada da ida à padaria
jogo de futebol
um gol, depois outro e ainda mais um
um rapaz sentado no chão perto do sofá comemora discretamente
acaba o jogo
uma porta de quarto fechada, depois outra

uma mãe sozinha na sala
vê uma televisão sem som
segura o controle remoto
uma boca seca
num sofá
vazio
o filho morto
soluço cortado ao meio
do tabu dentro da casa que não sara

Em gavetas não se morre de frio

moramos em gavetas
simplesmente, você tem razão, W. Z.
em gavetas com divisórias
mas, veja, há teto
e o vento só circula quando deixamos
as janelas abertas — não no frio

também há banheiros
e podemos nos limpar

morei em espaços
de engenharia primária
ou negligenciada
construções feitas por quem
nunca habitaria
um quadrado
de poucos metros
divididos
em quadrados menores
de tamanhos diferentes

ali também havia teto
e banheiro e janelas que eram
fechadas no frio
era um lar sol e afeto
com encanamento e telefone

hoje o quadrado casa é um pouco maior
com recortes internos diversos
uma gaveta larga
divertida em família
que chamo lar e assim ele se faz

Cobertores rotos e caixas de papelão
não são gavetas nem há teto
e o sol quando vem não é belo
o frio na rua mata

Escritora mineira e jornalista, Constança Guimarães é autora de Como se fosse possível medir o tamanho do escuro, (Urutau, 2020), Ombros caídos olhando pro Inferno (Urutau, 2017) e A sereia da contorno e outras histórias (Leme, 2017). Tem poemas e contos em revistas como a Gueto (especiais Utopia/Distopia e Crianças em Guerra), Ruído Manifesto, Mirada, Germina, Laudelinas e Torquato, entre outras, e na recém lançada antologia ‘Nao há nada mais parecido a um facista que um burguês assustado’, editora Hecatombe/2020.

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