A queda

Fernando Teixeira
ano II: ensaio
7 min readMar 26, 2020

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I

Humilhante não era ela ter se estatelado na rua, a súbita dor do choque do corpo velho contra o concreto, nem as sacolas terem lhe escapado das mãos quando ela tropeçara e, após o que pareceu um longo momento em suspenso, traçado parábolas no ar e se espatifado no chão. Foram os olhares de piedade que alguns dos curiosos lhe dirigiam que mais a incomodaram. Já se encontrava, agora percebia, naquele ponto da vida no qual nada cabe às mulheres senão se conformar com o destino de ser a velha anônima em que todos reconhecem, com piedade e nostalgia, algo de suas próprias avós.

Recolheu as sacolas que haviam se espalhado pela calçada e seguiu seu caminho, agradecendo por hábito a solicitude dos que se prontificaram a acudi-la. Chegaria em casa e vestiria a máscara do riso ao contar a história — história que seria depois repetida a amigos e aos demais parentes e seria incluída a partir de então no anedotário familiar — mais uma história servida aos parentes nos almoços de domingo. Seria, então, obrigada a rir do próprio ridículo, como se o ocorrido não tivesse lhe parecido, àquele momento, perturbador.

O marido, que se achava um piadista, não passava de um contínuo taciturno nos dias de semana, um office boy de sessenta que nos dias de folga despejava o acúmulo de bobagens que se passava em sua cachola enquanto percorria a cidade, resolutamente sóbrio — mas ainda assim apenas parcialmente equilibrado — numa Monark com ares de relíquia, carregado de papéis, suando e praguejando contra o ofício público que durante anos sustentara a ele e sua família.

Nos almoços dominicais, ele enchia a cara e passava a contar algumas das suas histórias. Muitas a envolviam, a esposa, estimada e menosprezada com igual intensidade pelo marido, sentimentos que ela, por sua vez, retribuía. Não é que não tivessem nunca se gostado. Mas a rotina e o convívio constante deram lugar à mera tolerância apática, nunca verdadeiramente amistosa.

Hoje em dia, esse tipo de coisa se resolve com divórcio. Mas ela, aos cinquenta e tantos, nascida e criada em outros tempos, achava mais prático resignar-se. Se fosse uns 15 anos mais nova, talvez. Até porque, o que via no espelho era um corpo disforme e uma cara erodida por tudo que é marca de expressão possível. Gostava de pensar nas rugas e pés de galinha como “marcas de expressão”, o termo preferido pelas propagandas de cosméticos — como se as rugas fossem sinal não só de velhice, mas de Experiência com e maiúsculo. Coisa que ela bem sabia ser uma tremenda bobagem.

Achava bonito ver as velhinhas na TV, embrulhadas em roupas de ginástica, dentaduras à mostra, falando a algum jornalista condescendente sobre a sua rotina de exercícios. Numa dessas, enquanto assistia a um programa matutino, sentiu-se tentada a mudar: traçou planos de exercício, planejou dietas; pensou em como tudo isso pavimentaria um caminho indesviável em direção à saúde e à felicidade. No entanto, enquanto desentulhava a velha esteira, comparada há anos e que agora servia de cabide para cortinas em desuso, viu-se pensando no porquê de todos aqueles médicos habitués de programas matinais parecerem estranhamente obcecados em redirecionar a vida de donas de casa como ela rumo à plenitude; persuasivos, dizem que é possível, sim, aproveitar a vida na terceira idade. Não é que ela duvidasse da nobreza das intenções deles, mas, pela primeira vez, a ideia de prolongar sua estadia no mundo lhe pareceu terrível. E a perspectiva de se ver às voltas por mais três décadas com a sua família, tendo de suportar natais e anos-novos, pareceu-lhe assustadora.

Naquele mesmo dia, voltou a fumar.

O cigarro tornou-se um prazer clandestino. Impregnada que estava, após tantos anos como dona de casa, pelo cheiro tempero e cremes para pele, que nem o marido e nem o filho reparavam no odor de cigarro. Costumava escapar sorrateiramente para o quintal, ou então aproveitava às idas ao supermercado ou ao banco para fumar, sentada e em silêncio, em bancos de praça e pontos de ônibus vazios.

Acendeu um cigarro. Dobrou uma esquina, depois outra e mais outra e por fim se aproximava de casa. Só mais um pouquinho. Jogou fora a guimba. Como sempre, sentiu-se tentada a largar tudo. A simplesmente não cruzar o portão. A desaparecer de vez daquele lugar, daquele bairro, daquela cidade. Vagar pelas inescrutáveis teias de concreto que compõem a malha rodoviária. Pedir carona a estranhos, arriscando-se noite após noite, tendo como companhia um canivete e uma bolsa qualquer com umas mudas de roupas. Sempre lhe pareceu estranho que essas fantasias fossem negadas às mulheres. Raras vezes se veem andarilhas. No mais das vezes, são putas baratas ou doidas fedendo à urina e à degradação generalizada. Nunca uma mulher totalmente só, apenas em constante fuga.

Em algum momento, ela teria de explicar ao marido o motivo dos joelhos esfolados. Ele ouviria a história sem pronunciar palavra. Guardaria mais aquela anedota para a próxima reunião familiar. Ao longo da semana, porém, os jantares seriam pontuados pelas reclamações de sempre, dele e do filho, que contava 26 anos e ainda morava com eles. O filho trabalhava com computadores, pequenos reparos e formatação, nada que lhe rendesse dinheiro o suficiente para sair de casa. E nem ele parecia ter essa intenção. Ela, embora jamais sequer ousasse pensar nisso por muito tempo, queria muito vê-lo ir embora. Não é que não o amasse. Foi por ele que ela e o marido largaram o cigarro, há muitos anos. Mas vê-lo andando pela casa o dia todo, um homem feito sem qualquer responsabilidade ou intenção de adquirir qualquer que fosse, sem amigos ou relações amorosas, vivendo à sombra do tédio dos pais, lembrando-a a cada ano de que ela estava envelhecendo. Ele passava o dia todo no computador — vivia para isso. Frequentemente, fazia declarações virulentas contra os jovens de sua geração que espantariam até mesmo os jovens das gerações anteriores. Caso soubesse do tabagismo da mãe, certamente se lançaria num discurso contra os malefícios da indústria do tabaco com um irritante ar de superioridade moral. Ela suspeitava que ele fosse virgem.

Chegou a casa, lavou as mãos e escovou os dentes para se livrar do cheiro de cigarro. Ligou a televisão para abafar o silêncio, guardou metodicamente as compras e ficou mais ou menos uma hora sentada em frente a tv, encarando o programa de culinária que estava passando sem prestar atenção de fato aos malabarismos técnicos e ingredientes exóticos de praxe.

Enquanto preparava o jantar, ia se preparando para mais um dia de reclamações vazias, de meneios insignificantes (por parte dela) e da história que contaria, como que casualmente, como se para ela não fosse nada, apenas um acontecimento levemente engraçado, e que no entanto ela sabia que na próxima oportunidade ganharia ares de fábula na boca enrugada e suja do marido. Naquele mesmo jantar, soube que a ocasião propícia se daria bem em breve: um churrasco planejado para o domingo.

II

Na forma ritualística que os churrascos dominicais vinham sendo praticados há anos, não era difícil de prever os elementos que compunham aquela liturgia: prazeres simples cujo objetivo era aliviar, por algumas horas, a lembrança do tédio esmagador do domingo que já se avultava, soberbo e inevitável como uma sentença de morte: comer e beber a vontade. Beber, então, para os homens era como receber a própria carne de cristo em forma líquida, embora muitos deles já tivessem comungado na missa das sete. Iam chegando, sedentos e famintos, na expectativa da primeira remessa de carne e da cerveja gelada, o incentivo necessário parar o desenrolar da prosa. Às mulheres, cabia a preparação dos acompanhamentos e manutenção da louça. No intervalo entre essas tarefas, juntavam-se aos homens no quintal e bebericavam com dignidade seus copos; todos, sem exceção, alteavam o tom de voz de acordo com o tema e o tempo transcorrido entre os goles. Os assuntos eram vários e os comensais passavam a comentaristas, especialistas tanto na pauta do jornal das oito do dia anterior como na vida alheia de todos os dias. Cada vez mais falantes, cada vez mais corajosos em suas opiniões.

Naquela manhã, ela achou por bem esconder um cigarro no bolso da calça. Poderia fumar na laje sob algum pretexto. Acabou presa na cozinha a manhã toda, sem meios de se libertar. Uma cunhada passou a manhã inteira reclamando do rompante alcoolismo do marido. A maionese não dava ponto. Minutos, horas. Como animais que pressentem o momento em que serão levados para o confinamento que antecede o abate, iam todos se agitando. Era chegada a hora da sobremesa, das piadas sujas, das fábulas sem cunho moral. O marido tinha dado início às suas tradicionais anedotas, arrancando risos solidários. Ele deixaria para contar da queda dela ao final, enfeitando a história, criando um diálogo engraçado que nunca houve, tornando-a uma cretina desatenta, como de costume. Pela primeira vez, ela se pegou antecipando esse momento. As vozes afetadas e cada vez mais grogues, as risadas que pareciam a ela cada vez mais tingidas não por prazer genuíno, mas pela ânsia por prazer genuíno. Ruídos todos, que se misturavam àqueles que ela ouvia há tanto tempo e tentava ignorar, mas que estavam sempre lá, sempre estiveram, alojados em algum canto da sua cabeça. Quando ele começou “a Joana chegou esses dias com o joelho esfolado aqui em casa…” ela se pegou rindo antes de qualquer um. Então veio enfim a parte da queda, ao que foi a primeira a gargalhar, o que só fez aumentar a hilaridade dos demais, que agora riam com vontade. Até que não mais. Ela, contudo, ria de chorar, a mandíbula já doía. Levantou-se de onde estava, puxou uma cadeira e sentou-se frente ao marido, os olhos ainda úmidos, pegou a caixa de fósforos que estava sobre a mesa e acendeu o cigarro já amassado, encarando-o como se pela primeira vez.

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