ANTROPOFAGIA COMO PENSAMENTO DA DIFERENÇA

Por Rodrigo Almeida

ano II: ensaio
ano II: ensaio
8 min readJul 8, 2021

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Oswald de Andrade, um pensador. Pode parecer estranho dar ao enfant terrible do modernismo brasileiro o epíteto de “pensador”. Afinal, Oswald de Andrade quase sempre foi visto como um mero agitador cultural, preocupado apenas em romper com a tradição literária dominante, mas incapaz de substituí-la por algo consistente. Porém, penso que, se é possível falar ainda de alguma relevância de Oswald hoje, essa relevância se deve principalmente ao seu pensamento, que, longe de ser um pensamento sobre a identidade nacional brasileira, é um pensamento sobre a diferença da e na cultura brasileira. Para pensá-la, Oswald de Andrade mobiliza o conceito de antropofagia, que aparece pela primeira vez no “Manifesto Antropófago”, publicado em 1928.

Para entender melhor o potencial desse conceito, convém comparar o “Manifesto antropófago” com o manifesto publicado por Oswald quatro anos antes, o “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”. Já nesse texto, encontramos uma atitude de transvaloração, para usar uma linguagem nietzscheana: assumir como positivas as características da realidade brasileira que, historicamente, sempre foram julgadas como negativas (a mestiçagem, o primitivismo, os “erros” da linguagem coloquial etc.). A fim de realizar essa transformação, Oswald propunha nesse manifesto a criação de uma “poesia de exportação”, inspirado na árvore que foi o primeiro produto de exportação nacional, que não apenas assumisse os elementos “primitivos” e “arcaicos” da cultura brasileira, mas que também os conciliasse com a modernidade. Nas palavras do manifesto, seria a síntese entre “a floresta e a escola”.

Entretanto, a ideia de uma “poesia de exportação” mantinha implícita uma perspectiva colonialista [1], em que a poesia (e, portanto, a cultura), assim como o pau-brasil, têm o seu valor determinado pelo estrangeiro. Se a transvaloração deve ser levada às últimas consequências, esse paradigma subjacente deveria ser também abandonado. Para isso, Oswald de Andrade adota como estratégia a crítica a um dos mitos fundadores do colonialismo, o mito do “bom selvagem”.

O mito do “bom selvagem”

A “Carta ao rei D. Manuel”, de Pero Vaz de Caminha, não é apenas o primeiro documento escrito em território brasileiro: como tal, ele também é a “certidão de nascimento” do Brasil, pois é a partir dele que o Brasil faz seu aparecimento no devir da História Universal (isto é, europeia). Com ela, Pero Vaz de Caminha criou, sem o saber, alguns dos mitos fundadores do que, séculos mais tarde, seria o Brasil.

Um desses mitos é o do “bom selvagem”, que influenciou decisivamente a visão a respeito dos povos que habitavam o território brasileiro quando da chegada dos portugueses. Na carta de Caminha, os índios aparecem como seres ingênuos e dóceis: não há conflito com os portugueses e o escambo é feito sem grandes problemas. Ao mesmo tempo, como Adão no paraíso, “eles não lavram nem criam” e sua inocência com relação ao pudor “é tal que a de Adão não seria maior”. Por isso, segundo Caminha, a conversão deles ao Cristianismo também seria realizada com facilidade:

Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências. E portanto se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque certamente esta gente é boa e de bela simplicidade. E imprimir-se-á facilmente neles qualquer cunho que lhe quiserem dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons.

Assim como a terra “descoberta” torna-se posse do rei de Portugal e é renomeada com o nome cristão de Ilha de Vera Cruz, também o índio é sem história antes daquele encontro: ele é como uma página em branco, uma moeda na qual se imprime “qualquer cunho que se lhe quiserem dar.”. E o cunho impresso foi o único possível naquele momento: a imagem do índio tal como visto pelo olhar do colonizador cristão, isto é, como selvagem inocente e puro.

Essa representação do índio seria, séculos depois, mobilizada pelo indianismo romântico em seu projeto de criação de uma identidade nacional. Influenciados pelas ideias do francês Ferdinand Denis em seu livro Résumé de l’histoire littéraire du Portugal suivi du résumé de l’histoire littéraire du Brésil (1826), os primeiros românticos defendiam que o Brasil não só possuía uma literatura própria, diferente da de Portugal, mas também que os escritores nacionais deveriam destacar essa especificidade, concentrando-se na descrição da natureza brasileira, dos costumes brasileiros e, principalmente, do habitante originário (portanto, mais autêntico) do território brasileiro, o índio. Posteriormente, esse projeto estético ganhou contornos mais políticos graças ao mecenato de D. Pedro II a artistas românticos, como Gonçalves de Magalhães, Manuel de Araújo Porto-Alegre, Carlos Gomes, Vitor Meirelles, Pedro Américo entre outros, e com o apoio do imperador ao Instituto Histórico Nacional, fundado em 1839 e responsável por dar legitimidade ao movimento [2].

Tendo os escritores românticos aderido ao projeto político de uma monarquia que via a si mesma como um pedaço da Europa nas Américas, era bastante natural que o índio romântico fosse europeizado, mistificado, “cheio de bons sentimentos portugueses”, como o descreve Oswald de Andrade no Manifesto Antropófago. Será preciso mobilizar uma outra representação do índio para fazer frente ao mito do “bom selvagem”. É exatamente isso que Oswald de Andrade fará em seu manifesto de 1928, evocando a imagem do índio antropófago.

A lei do antropófago

Os primeiros relatos de antropofagia entre os indígenas brasileiros aparecem nas cartas de Américo Vespúcio a Lorenzo de Médici. Nelas, a imagem do “bom selvagem” aparece misturada à do selvagem bestial, que come carne humana e vive em guerras constantes. No romantismo brasileiro, reencontramos essa dupla imagem no poema “I-Juca Pirama”, de Gonçalves Dias. Porém, o final feliz corrobora o mito do “bom selvagem”, recolocado em circulação pelos românticos: a antropofagia e a guerra indígena, temas que aparecem no poema, são elementos secundários e que reforçam a imagem do índio “bondoso”, já que, ao final, a intervenção do chefe timbira impede a guerra e a vingança do índio capturado. No entanto, com Oswald de Andrade a antropofagia aparece não mais como um costume bárbaro a ser erradicado, mas um elemento essencialmente positivo.

No entanto, é importante ressaltar, com Benedito Nunes [3], que a palavra “antropofagia” intervém no manifesto não apenas para designar o ritual indígena, mas também como metáfora crítica das repressões e tabus que caracterizam a sociedade brasileira. Assim, a transvaloração que já estava anunciada no “Manifesto da Poesia Pau Brasil” assume um tom nitidamente político, no qual o processo colonizador é compreendido a partir da imposição traumática dos padrões culturais e religiosos da Metrópole, que importou para as terras brasileiras uma “consciência enlatada”.

Portanto, não se trata mais de produzir uma “poesia de exportação” genuinamente “brasileira”, mas de compreender que a própria formação da identidade brasileira foi, fundamentalmente, resultado da repressão e marginalização dos elementos das culturas indígenas e africanas que não eram assimiláveis pelo colonizador português. Para Oswald de Andrade, seria preciso trazer à luz esses elementos reprimidos, ou, na linguagem do Manifesto, transfigurar o tabu em totem.

Mas isso não quer dizer que essa identidade nacional imposta de cima para baixo deva ser substituída por outra, mais genuína e autêntica: como diz o próprio Manifesto, “só interessa o que não é meu”, isto é, o que não é assimilável à identidade, o que permanece como alteridade e diferença. Compreendida dessa forma, a antropofagia de Oswald de Andrade não é um pensamento sobre uma suposta “identidade” nacional, mas um pensamento sobre o papel da diferença no interior da cultura brasileira e, também, da diferença da cultura brasileira em relação à cultura da Metrópole.

Antropofagia e perspectivismo

Para entender melhor esse ponto, é necessário fazer um pequeno desvio, saindo do Manifesto de Oswald de Andrade em direção ao ritual indígena propriamente dito. Como explica o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, a antropofagia dos índios tupinambás tinha como objetivo primordial reafirmar a alteridade entre devorador e devorado, o que permitia também a manutenção das guerras indígenas associadas a ela:

O que se assimilava da vítima eram os signos de sua alteridade, e o que se visava era essa alteridade como ponto de vista sobre o Eu. O canibalismo e o tipo de guerra indígena a ele associado implicavam um movimento paradoxal de autodeterminação recíproca pelo ponto de vista do inimigo. [4]

O devorador apreende sua singularidade a partir do ponto de vista de sua vítima, isto é, a partir da alteridade. Da mesma forma, a vítima, ao ser devorada, permite que sua tribo vingue sua morte, transformando-se ela própria em devoradora e invertendo a relação. Em ambos os casos, devorador e vítima permanecem sempre numa relação de incomensurabilidade irredutível, o que explica as estranhas palavras ditas pelo cacique Cunhambebe a Hans Staden. Horrorizado diante do canibalismo do chefe tupinambá, Hans Staden pergunta a ele como um ser humano poderia devorar outro ser humano. Cunhambebe apenas responde: “Sou uma onça.”. Ao comer sua vítima, o devorador se coloca numa relação de alteridade em relação a ela: agora, ele é uma onça, não um ser humano. Reciprocamente, a tribo da vítima, a partir desse momento, está autorizada a guerrear contra os devoradores e se transformar ela própria em onça, caso vença.

Uma vez que a prática da antropofagia não pressupõe a identificação entre devorador e devorado, a imagem do índio como “selvagem bestial” que devora os seus semelhantes só faz sentido a partir do ponto de vista do colonizador em relação ao índio. Tanto essa imagem quanto a outra (a do “bom selvagem”) partem de uma perspectiva bem definida e, como tais, não compreendem o índio em sua real alteridade, mas sempre em oposição ao cristão europeu. Seja em seu aspecto positivo de “bom selvagem”, seja em seu aspecto negativo de “selvagem bestial”, ele é sempre o “não-europeu”, o “não-cristão” [5].

Reconhecer o perspectivismo por trás dessas imagens do índio significa compreender as culturas indígenas (e as demais culturas que atravessam a cultura brasileira) em sua verdadeira singularidade. O que significa dizer também que essas culturas, por serem singulares, são também irredutíveis a uma “identidade” nacional homogeneizadora. Ao invés da unidade da identidade, a cultura é antes um feixe de diferenças em conflito inconciliável.

Oswald de Andrade hoje

Levada às últimas consequência, a transvaloração da cultura brasileira proposta por Oswald de Andrade significa também o reconhecimento do perspectivismo por trás de toda avaliação: o “negativo” e o “positivo” são ambos definidos em relação a um parâmetro inquestionável, a saber, o olhar do colonizador sobre os indígenas e os povos escravizados. Uma vez abandonado esse parâmetro, pode-se não apenas compreender o Outro em sua real singularidade e alteridade, mas também resistir a qualquer tentativa de assimilação a uma suposta identidade nacional. Afinal, o pensamento sobre a identidade nacional nunca é isento de consequências políticas. Por isso, talvez a principal lição da antropofagia oswaldiana para nós, hoje, seja principalmente a resistência: resistir à homogeneização da identidade pela reafirmação constante das singularidades e diferenças.

Notas

[1] NASCIMENTO, Evando. Das relações do “manifesto antropófago” com o presente em que vivemos. Disponível em: < https://www.suplementopernambuco.com.br/artigos/2150-das-rela%C3%A7%C3%B5es-do-manifesto-antrop%C3%B3fago-com-o-presente-em-que-vivemos.html >.

[2] CANDIDO, Antonio. O romantismo no Brasil. São Paulo: Humanitas; FFLCH, 2002.

[3] NUNES, Benedito. A antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE, Oswald. Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.

[4] VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac & Naify; n-1 edições, 2015, p. 61.

[5] HANSEN, João Adolfo. Manuel da Nóbrega. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Massangana, 2010.

Rodrigo Moreira de Almeida é professor de Língua Portuguesa na rede pública estadual do Espírito Santo. Nas horas vagas, lê e escreve.

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