Como Torto Arado muda a história da literatura
Por Diego Perez
No princípio da década de 1990, um novo fenômeno literário se deslindava sobre a literatura ocidental.
Surgida como um desdobramento quase natural do que chamamos de pós-modernidade, a literatura do eu, em vários sentidos, não era algo necessariamente novo: as Confissões de Jean-Jacques Roussseau, publicadas em 1782, serve como ponto basilar para compreendermos as autobiografias como gênero literário; a célebre frase de Gustave Flaubert em 1857, “Madame Bovary c’est moi”, metonimicamente exemplifica a necessidade burguesa de se ver refletida na produção mais canônica que o gênero (burguês) poderia encontrar, o romance; por fim, a ascensão da autoficção, que em 1977 acaba por ser conceitualizada por Serge Doubrowsky no romance Fils, também traz em sua bagagem vários dos aparatos técnicos/estéticos que se convencionou usar na literatura do eu.
O que essa literatura teria, então, de tão diferente? Pra ser sincero, não muita coisa, principalmente se nos atemos aos pontos estéticos da sua brumosa relação com a verdade/ficção: esse tipo de literatura, de fato, bebeu tanto quanto pôde — ao ponto de se confundirem — da fonte dessas manifestações anteriores de arte.
A diferença não estava na qualidade, mas na quantidade: a literatura do eu é, antes de qualquer coisa, um acontecimento editorial/ mercadológico, uma moda, ainda que isso não implique necessariamente uma conotação ruim. O intuito do presente texto é menos de questionar a qualidade dessas obras do que de tentar entendê-las enquanto fenômeno cultural que implica e é implicado pelo seu contexto social e leitor.
Acanhada durante princípios dos anos 90 — com a produção de um ascendente Cristóvão Tezza ou de um Enrique Vila-Matas -, a literatura do eu parece ter ganhado corpo durante a virada do milênio ao surfar na avassaladora onda de um Roberto Bolaño; escritor este que, mesmo delineando em sua literatura grandes questões sociais, de forma alguma se absteve da autoficção.
A partir dos anos 2000, assim, o fenômeno começa a ganhar um corpo mais claro e volumoso de modo que uma conceitualização crítica e editorial para a literatura do eu parecia algo tanto inevitável como estimulante, afinal, nas palavras de Winston Manrique Sabogal em seu texto ‘O Eu assalta a literatura” (2008), essas narrativas:
Não são autobiografias, não são diários, não são memórias, não são depoimentos, não são biografias, não são ensaios romanceados, não são romances puros onde tudo é imaginação. Mas também são tudo isso. É literatura. São romances, insiste Javier Marías, “porque ele assimila tudo”.
Os escritores exploram “esse território deliberadamente indefinido que sempre existiu sobre o que é real e imaginado, mas onde alguns acharam um filoncito ao sublinhar essa indefinição, em uma ruptura do pacto sobre o que é a literatura”, assegura um Javier Marías.
Como pano de fundo de tal fenômeno, o boom das commodities, os anos Lula, a estabilidade da União Europeia e o surgimento e crescimento dos maiores conglomerados americanos atuais — como a Amazon, Facebook, Google, Tesla, etc. — pareciam dar uma sensação de segurança aos autores para que estes deixassem um pouco de lado as questões sociais como tema literário e se voltassem à interioridade da vida pós-moderna (o que quer que isso signifique).
Acredito que não seja surpresa ao leitor que essa onda foi majoritariamente branca, masculina, bem estudada (elemento importante para as construções metanarrativas), de classe média e urbana. Com efeito, o rosto dessa moda não só marcava todas essas caixas como, por “bônus”, tinha os olhos azuis e complexidade nórdica:
No Brasil, esse padrão tanto não foi muito distinto como, por hábito, tal onda parecia atingir nossas praias com uma década de atraso. Nesse sentido, escritores como João Anzanello Carrascoza (Trilogia do adeus), Daniel Galera (No dia que o cão morreu), Marcelo Mirisola (Como se me Fumasse), Miguel Del Castillo (Cancún) e Tiago Ferro (O Pai da Menina Morta) foram alguns que marcaram seus nomes nas listas, prêmios e eventos literários da década de 2010 como as promessas das letras nacionais.
Em 2015, durante a FLIP, a critica argentina Beatriz Sarlo chegaria a declarar que “Chegamos ao auge da literatura do eu” no sentido que:
O que eu percebo é que aos autores contemporâneos não interessa contar uma história de principio ao fim com interesse social e subjetivo como já se fez. Os autores mais jovens falam basicamente da própria vida em narrativas mais curtas dentro das tribos urbanas de que fazem parte. O que é ótimo, pois me permitem, como leitora, viajar e conhecer estas realidades tão diferentes da minha. Porém, ao contrário do que aconteceu na segunda metade do século 20, para um público inevitavelmente pequeno. Hoje não existe mais literatura popular. Isto é triste por um lado, mas por outro dá uma liberdade incrível para os criadores. Como já não importa o público, tudo é possível.
Até aquele momento, tudo parecia bem para a literatura do eu, esta disposta a explorar os limites da ficção a partir de sua confortável poltrona de veludo verde.
E então…
Impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2015, eleição de Trump em 2016, Brexit entre 2017 e 2020, eleição de Bolsonaro em 2018, protestos no Chile em 2019 que logo se espalhariam pela América Latina, pandemia global em 2020 e 2021.
Escrito por um autor preto de fora do círculo sudestino habitual da literatura brasileira, Torto Arado, lançado em 2019, trazia em suas páginas uma premissa um tanto quanto sumida das letras nacionais no mar de eus que dominava o mercado editorial: a romance social.
Ao narrar a trajetória de vida das irmãs Belonísia e Bibiana — assim como, em um escopo maior, toda a trajetória da família Chapéu Grande — nas suas nuances religiosas, sociais e políticas, o romance de Itamar Vieira Junior parecia resgatar uma tradição literária, da qual fizeram parte Jorge Amado, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz ou Guimarães Rosa, canônica, mesmo que sob o estigmatizado rótulo de “regionalista”. Essa filiação, contudo, não parece ter impedido que Torto Arado se tornasse meteoricamente uma celeuma nacional ao ressonar — num Brasil pós-apocalíptico, desempregado, faminto — entre um público leitor ávido por esperança e justiça social.
Neste sentido, em 2018, antes mesmo de ser lançado, o romance já ganharia o prêmio Leya de romance em Portugal. “Trata-se de um sucesso raro no mercado editorial do país, cujas edições raramente ultrapassam a tiragem de 5 mil cópias”, escreve João Batista Jr., em seu texto “O livro que voou nas redes”, ao anunciar que, em fevereiro, Torto Arado “atingiu a marca de 70 mil exemplares vendidos, entre versões física e digital. Lançado em agosto de 2019, metade das vendas se concentrou nos últimos três meses: o livro vendeu 45 mil exemplares entre novembro, dezembro e janeiro.” Em março, Bolivar Torres reportaria nO Globo que o livro já havia passado das 100 mil unidades vendidas.
Colaborou para o fenômeno explosivo do romance, sem dúvidas, o fato de que Torto Arado conseguiria um raro feito ao ganhar tanto o prêmio Oceanos como o Jabuti em 2020.
Como Torto Arado muda a história da literatura?
A verdade é que, considerando que Torto Arado foi lançado há um par de anos, parece um tanto quanto surreal responder a questão que titula esse ensaio (desculpe, leitor, pela quebra de expectativas) ou mesmo tentar compreender como um único livro, sozinho, pode mudar o curso da história da literatura.
Mais interessante, me parece, é analisarmos — como a literatura do eu — Torto Arado não pela sua qualidade (que tem, principalmente se consideramos ser o primeiro romance do autor, ainda que possa e deva ser criticado), mas como um fenômeno editorial e, como tal, o que este fenômeno parece indicar enquanto demanda por uma mudança não apenas na história literária, mas na história da sociedade brasileira.
Sob esta perspectiva, acredito que o sucesso de um livro como Torto Arado demonstra que a quebra do pacto civilizatório, que possuíamos até recentemente, reacendeu o interesse do público brasileiro por abordagens literárias que tenham como elemento central a vida social e historicamente experienciada (Erfahren), eclipsando o eu “universalizado” e atemporal que tanto se cultivou nas últimas décadas.
Com efeito, se o leitor me permite o exercício de futurologia, presumo ser possível afirmar que o sucesso de Torto Arado dá inicio a uma tendência incontornável para os próximos anos a ser refletida numa nova onda de autores e publicações que explorem as lutas, apreensões e anseios de um Brasil democrático estruturalmente frágil sob a flâmula verde e amarela.
O que será, então, da literatura do eu?
Como um admirador de Barthes, gostaria de poder anunciar a morte da literatura do eu. Porém, como admirador de Barthes, sei como declarações guilhotinescas como essa tendem a terminar. Ao menos no Brasil, contudo, parece inevitável afirmar que, para o bem ou para o mal, a mingua da literatura do eu já está em curso.
Terá essa nova moda editorial um futuro brilhante? Será ela tão longeva quanto a anterior? Nos fornecerá uma literatura de qualidade? Soterrará por completo, nas páginas da história literária, os louros da literatura do eu? Resistirá ao tempo o encanto de Torto Arado?
Só o tempo dirá.
Diego Perez é doutorando em Letras Neolatinas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, editor-chefe da revista ano II: ensaio, curador da MAGzine e autor dos zines “Viçosa” (2020) e “Ideiafixa” (2021). Também pode ser encontrado em seu Instagram.