Convidado para ouvir

Um ensaio sobre a obra de Eucanaã Ferraz

ano II: ensaio
ano II: ensaio
10 min readOct 28, 2020

--

Heloísa Buarque de Hollanda, no texto introdutório d’Esses poetas — uma antologia dos anos 90 (1998), salienta que o critério principal e fundacional do trabalhofoi o de reunir autores que começaram a publicar formalmente a partir de 1990” (BUARQUE, 1998, np). A década marcada pela queda do muro de Berlim, pelo impacto da AIDS e pela globalização, trazia também, como plano de fundo, drásticas e profundas mudanças no “mercado cultural”, atadas a um processo cada vez mais intenso de massificação, quebra dos paradigmas nacionais/nacionalizantes e “personalização”, especialização na produção, na distribuição e no consumo de serviços e produtos. Ainda de acordo com Hollanda:

O poeta 90, nesse quadro, move-se com segurança. É a vez do poeta letrado que vai investir sobretudo na recuperação do prestígio e da expertise no trabalho formal e técnico com a literatura. Seu perfil é o de um profissional culto, que preza a crítica, tem formação superior e que atua, com desenvoltura, no jornalismo e no ensaio acadêmico marcando assim uma diferença com a geração anterior, a geração marginal, antiestablishment por convicção.

A despeito de um certo “neoconformismo político-literário”, de um posicionamento quase reverencial com “relação ao establishment crítico” — que podem/devem ser contestados e problematizados –, e de uma produção que não se interessava por “antigas querelas” (são mesmo “coisa do passado”?) entre engajados e não-engajados, que procurava “escapar do atrito, circular sem oposições, liberar canais institucionais e da mídia, neutralizar as possíveis resistências da crítica”, as gerações de 90 (a organizadora distingue três) não deixavam “entrever mais, com clareza, nem seus modelos nem uma linhagem literária coerente, nem mesmo um elenco explícito de referências como no paideuma concretista. São poetas que se situam através da identificação com outros poetas ou estilos ou do pertencimento à uma família literária eletiva” (BUARQUE, 1998, np). Os agentes e atores que compõem a cena, frequentemente, mencionam, direta ou indiretamente, empenhados na procura pela própria voz, a sua filiação, “suas tribos ou famílias poéticas”, assumindo a descendência modernista (ou modernistas), assimilando a engenhosidade, a educação pela pedra de João Cabral, seguindo com as experiências concretistas e desenvolvendo recursos da poesia de 70 (mais especificamente, da chamada “poesia marginal”). Desse contexto multiforme, plurifacetado e movediço, surge a obra — ou o princípio–, de Eucanaã Ferraz.

Retrato de Eucanaã Ferraz, o poeta.
Fonte: Companhia das Letras

Ligado mais — parece-nos — a uma escrita que “adere pacífica e ‘tecnicamente’ à volta das formas clássicas e modernas da poesia” e compondo, também, o acervo dos poetas publicados na “antologia dos anos 90”, Ferraz publica seu Livro primeiro, em edição do autor, no ano de 1990 e Martelo, pela Sette Letras (7Letras), em 1997. Os dois livros compõem uma fase ou ciclo da poética ferraziana que chamaremos, no âmbito deste curto elucidário, de “Aprendiz” (1990–1999).

Vale destacar, antes de continuarmos, que o presente aglomerado de linhas não se pretende um texto de apresentação, de análise ou mesmo um ensaio. O intuito é quase pessoal. Uma criança me disse, certa vez, que nunca ouviu falar sobre alguém que falasse sozinho, já tinha falado, ela mesma, consigo, mas não era capaz de falar sozinha. Sozinho? Não. Ela me disse. Aqui, eu assumo para mim o discurso daquele menino e falo comigo à procura de uma síntese, mas convido quem se interessar, convido para ouvir o falatório, porque — não prefiro, mas vou –, pensar em voz alta.

Nomeei a primeira década — uma vez que, em 2020, o Livro primeiro fez trinta anos –, de “ciclo do Aprendiz”, porque a influência de Drummond e João Cabral (com algum dedo de Manuel Bandeira) se faz muito presente. No segundo livro, o “fazer poética” — o trabalho com a palavra –, ocupa um largo espaço, enquanto, no primeiro, quase não aparece de maneira declarada. No primeiro, temos um poema como “18.05.61”, que dialoga, sem rodeios, em um prosaísmo irmanado, com “Infância”, de Carlos Drummond, por exemplo, publicado em Alguma poesia (1930), seu livro de estreia.

18.05.61

Nasci num lugar pobre
onde o hospital era longe
onde era longe a estrada
e os anjos não conheciam

Nasci mês de maio
azul de tardes vazias
de pai José
mãe Maria

Batizaram-me: Terra Prometida
- terra pobre
onde a felicidade passa longe
mas daqui eu a vejo
e todo meu corpo brilha

No segundo, Martelo, o labor de João Cabral e um certo intimismo de Bandeira estão presentes, por mais que, a meu ver, a luz diurna ou a poética solar própria de uma tradição cabralina fale mais alto que o lume noturno e quase residual bandeiriano. De qualquer forma, chamo de “ciclo do aprendiz” porque, nesse momento inicial, o poeta parece ainda conviver, à beira dos mestres, com os instrumentos e com os materiais do ofício, assume algumas técnicas de expressão, constrói seus próprios objetos de linguagem a partir da desconstrução, reconstrução e destruição de constructos, observa o gesto exato que compõe o canto dos rouxinóis, das árvores e de outros animais.

Ao segundo ciclo, dei o nome de “Oficial” (2000–2009), porque, com a publicação de Desassombro — em Portugal, no ano de 2001, pela Quasi Edições, e no Brasil, em 2002, pela Sette Letras –, de Rua do Mundo — pela Companhia das Letras, em 2004, e pela Quasi, em 2007 –, e de Cinemática — pela Companhia das Letras, em 2008, e pela Quasi, em 2009, e considerando, também, as traduções de Michael Kegler (que apontam para o processo de internacionalização da obra), o aprendiz é “promovido” ao posto de oficial, um “lugar intermediário” dentro do ofício e da oficina. Começa, durante esse período, a convivência (para não dizer “influência”) de um “novo mestre”, Vinicius de Moraes, que ressoará, de maneira mais vibrante, ainda que tímida, em alguns poemas do terceiro ciclo.

Em Desassombro, há de fato um esclarecimento, um movimento que une a força expressiva e o trabalho com a técnica dos dois primeiros livros, um passo para fora da sombra, da forma projetada dos “mentores”. O alumbramento se confirma e a luz, em Rua do Mundo, abre a paisagem, deixando encandecer aspectos de um projeto poético em rica maturação e construção, um projeto de polis, um projeto — até certo ponto –, político (mas não seguiremos por aí). O cuidado, quase plástico, com o verbo poliédrico ganha tonos, uma luminescência própria, e procura, em Cinemática, a criação e/ou catalogação do próprio cosmos, a organização e organicidade das cenas ao redor, mas deixando a iluminação em fluxo, apresentando seus recortes como num filme montado com zelo e rigor. Os poemas, mais narrativos e propondo uma espécie de fonossemântica interna, inauguram a passagem para o terceiro e — até aqui –, último ciclo, “Mestre de ofício”.

Como leitor, encontro em Sentimental e Escuta (há também o Trenitalia, mas ficará, por enquanto, de fora) — publicados, respectivamente, pela Companhia das Letras, em 2012 e 2015 –, a consumação de um ciclo maior, do período que abraça e abarca os dois ciclos anteriores (aprendiz e oficial). Na escolha do título, há uma posição frente ao mundo, um lugar que flerta, muito diretamente, com o Romantismo, não apenas enquanto escola literária, mas como uma cosmovisão, uma visão de mundo, que contraria, de maneira radical, certas formas de ler, interpretar e compreender as realidades a partir, principalmente, das revoluções industriais.

Utilizo a palavra “Romantismo” a partir de uma noção mais ampla do fenômeno, trabalhada por Michael Löwy, em Revolta e melancolia, e, dessa forma, considero que “o romantismo representa uma crítica da modernidade, isto é, da civilização capitalista, em nome de valores e ideais do passado (pré-capitalista, pré-moderno)” (LÖWY, 2015, p. 38–39).

Descordo de algumas linhas críticas que veem, nos poemas ou na escolha do título, uma ruptura e uma mudança profunda nos códigos, porque creio — ou, melhor, também eu creio –, que não se trata de inocência, ou da escolha de um caminho mais inocente, não se trada de um afastamento da palavra mínima ou mesmo da renúncia, em certa medida, de um labor minucioso, como aquele de Martelo, mas de trabalhar o coração a marteladas, esculpi-lo, dar a ele a potência máxima e um refinamento (im)possível. Em outras palavras, trata-se — acho eu –, de uma via declarada, de uma escolha radical. Escuta, por sua vez, não me parece mais do que uma continuação de Sentimental, são “relatos editados”, por assim dizer, colhidos a partir desse caminho, do caminho deliberado e conscientemente anunciado de um “romântico”.

Fonte: Companhia das Letras (YouTube) | “Esta placa”, em Escuta

Principia, no aparente retorno à sombra, a um assombro novo, uma nova fase? Começa, com a escuta sentimental, um novo movimento, um gesto que ressignifica e amplia o percurso até aqui apresentado? No poema “Vem”, publicado em Sentimental, o homem que desejou — porque “quis” –, o “espinho extremo” nos dá sinal de que a “via escolhida” pode não ser apenas uma impressão de leitura:

Porque os dias quebravam contra sua cara,
porque trocara as horas por nada,
quis o espinho extremo.

Mas, sobre encontrá-lo, ninguém
nem nada respondia. Saberia reconhecê-lo
em meio a tudo? Algum sinal?

Um cisne gravado na testa? Talvez
bastasse, à distância, atentar
nos modos de dobrar

ou desfazer as frases, um lenço, que
talvez ali, no levar água à boca, moeda
à bolsa, banal, vislumbrasse

um rasto, imaginava, mesmo sem saber
(não saberia nunca?) o que fosse
aquilo que faria do acaso

o certo,
até que se manifestasse numa forma
inadiável, que figuraria o fruto de

uma longa matemática. Porque seria assim,
poderia ver na matéria mínima a sua fábrica,
o incêndio

que sobreviria contra a indiferença dos seus dias.
Mas as ruas são compridas, era preciso
estar mais perto para perceber, e

logo baralhava unhas, vozes, cabelos
à maneira de uma teia aos pedaços que
o fazia adolescente como um pombo

tonto. Mesmo sem vestígios, farejava.
Em meio à palha das palavras, farejava.
O que as costelas dos viadutos escondiam?

Becos, praças, ruas, paisagens que lhe subiam
à boca enchendo-o de inocência e desejo.
Era mais seguro não querer. Mas

envenenara-se com o anseio de que
a cidade desaguasse em alguém, não fosse tão-só
pedras de seus olhos se ferirem. Mais seguro

era cegar as vontades. Cerrados, os olhos
calariam o teatro excessivo dos gestos. Talvez
dormisse. Mas a insônia vinha branca

e ácida e alta. Houve uma vez um comandante
prussiano, recostado ao fundo da poltrona,
cavando com as esporas de sua bota o mármore

da lareira, lembrava-se, era mais fácil
deixar a solidão crescer no vento, vir ao quadril,
lembrava-se do conto enquanto seus olhos

erravam pelas avenidas, esperança em pêlo, juízo
em vão, fome de um relance, um fio. Suave,
se ainda soubesse, era beber sem supor alguém

após o drinque, gastar-se só, sem presumir
um abraço à saída do cinema, à saída de
sábado. Mas ele sacrificaria qualquer ponderação

para persistir no engano de seguir
à própria sorte por mundos que semelhavam
estacionamentos abarrotados de frases moles,

blogs, celulares, fazer amigos, impressionar pessoas,
dicionários como se fósforos para queimar o tempo,
o tédio, saudades de quando não vagava devastado

pela espera (pela espora, dizia o conto)
de uma lâmpada após o labirinto,
por aquela presença tão-só pressentida,

mas que talvez por adivinhada ardia ainda mais.
Tudo (um exagero) escarnecia dele, sequioso de que
regressasse quem nem mesmo houvera, Ulisses

ou o filho pródigo caminhando sobre o mar
etílico, turbulento. Canções de amor
foram o seu veneno,

todas à roda da mesma víscera,
da mesma válvula sentimental,
podia senti-la,

sem amores nem romances, sangue
e bomba apenas, como no peito de um bicho,
que é só um bicho. Então, exausto,

sem nenhum grito, deitou-se
sobre a pedra escura da rua, ou da escarpa
mais alta, ou da lua mais miserável e suja.

Esteve ali, parado, manso,
talvez por anos, sem que nada pedisse
ou pretendesse. E era só uma noite

entre as noites, quando despertou agitado
(deve ter sido assim) pela visão de uns lábios,
vinham acesos, na direção dos seus.

No ano de 2016, Poesia: 1990–2016 foi publicado em Portugal, pela Imprensa Nacional/ Casa da moeda. Pelo relativo silêncio dos últimos quatro anos e considerando o poema inédito que o poeta concedeu — como um presente –, para a Ano I: Ensaio, OS GREGOS, um novo livro está sendo gestado, uma nova obra está em fermentação. Cabe lembrar, também, que só passamos correndo pelos volumes de poemas, deixando de lado muita leitura (quase) obrigatória, como Letra só, Para que é que serve uma canção como essa?, com letras de Caetano e Adriana Calcanhotto, Poemas da Iara, Bicho de sete cabeças e outros seres fantásticos, água sim, Cada coisa, outras obras organizadas por Ferraz, etc.

O que apresento para vocês nada mais é do que algumas notas, a busca por uma síntese improvável, a leitura dos poemas de um antigo professor, de um antigo — veja só –, Mestre de Ofício. Em 2016, fui aluno do Prof. Eucanaã Ferraz e comecei a esboçar o esboço do que só agora pude, com alguns desvios e cortes e retalhos, apresentar — naquela época, as “fases” ainda não tinham títulos e muitas outras coisas seguiam com nomes provisórios. Hoje, porém, pergunto-me se não seria essa uma jornada comum aos poetas, aos artistas de maneira geral?

Os “ciclos” — aprendiz, oficial, mestre de ofício –, não representam, a despeito dos nomes que tenham, fases e/ou etapas do processo de quem termina por questionar:

– Voa?

REFERÊNCIAS

HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Introdução. In: Esses poetas: uma antologia dos anos 90. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1998.

LOWY, Michael. Revolta e melancolia: o romantismo na contracorrente da modernidade. Trad. Nair Fonseca. São Paulo: Boitempo, 2015.

FERRAZ, Eucanaã. Livro primeiro. Rio de Janeiro: Edição do autor, 1990.

______. Martelo. Rio de Janeiro: Editora Sette Letras, 1997.

______. Desassombro. Rio de Janeiro: Editora Sette Letras, 2002.

______. Rua do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

______. Cinemateca. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

______. Sentimental. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

______. Escuta. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

SITE OFICIAL: https://eucanaaferraz.com.br/

A princípio, Lucca Tartaglia é professor, graduado em Letras, pela Universidade Federal de Viçosa, mestre em Estudos literários, pela mesma instituição, e doutor em Letras Vernáculas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atua como co-editor e colaborador das revistas FORPROLL, Contemporartes e ano I.

--

--