Elena Ferrante e o léxico do precipício

Série: Elena Ferrante

ano II: ensaio
ano II: ensaio
7 min readAug 9, 2021

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Quando uma das editoras da revista Ensaio perguntou se eu poderia escrever um texto articulando Elena Ferrante e a minha formação em psicanálise, ela não sabia, mas estava fazendo uma relação até então inédita para mim. Escrevo e falo bastante sobre Elena Ferrante e psicanálise, mas pouco ou quase nada sobre o quanto Elena Ferrante afetou (e segue afetando) o fazer da clínica, enlaçando os estudos e a prática de maneira que vou ensaiar, aqui, escrever os primeiros passos sobre o tema.

Talvez seja interessante começar falando da relação da literatura com a psicanálise e como eu chego nesta última por uma via literária. Desde o seu surgimento, a psicanálise é tecida com a literatura. As afirmações de Freud sobre o poeta saber, antes do psicanalista, o que se descobre com a clínica são famosas, assim como os textos em que ele retira da literatura o material para elaborar conceitos que, até hoje, são muito caros à sua invenção. Particularmente, gosto muito da resposta que Freud dá em uma entrevista para o escritor italiano Giovanni Papini na qual ele fala, em poucas palavras, que a psicanálise é a reunião das três grandes escolas literárias do século XIX.

Em todos os países onde a psicanálise tem penetrado, tenho sido melhor compreendido pelos escritores e artistas. Meus livros, de fato, se parecem mais a tratados de imaginação que a tratados de patologia (…) Eu tenho podido cumprir meu destino por uma via indireta e realizar meu sonho: seguir sendo um homem de letras mesmo que sob a aparência de um médico. Em todo grande cientista está o gérmen da fantasia, mas nenhum propõe, como eu, traduzir a teorias científicas a inspiração que a Literatura moderna oferece. Na Psicanálise, o senhor encontrará reunidas, mesmo que transformadas em jargão científico, as três grandes escolas literárias do século XIX: Heine, Zola e Mallarmé estão reunidas em minha obra sob o patrocínio do meu velho mestre Goethe.

O meu percurso em psicanálise começa por um caminho literário quando, em uma conversa, uma amiga sugere que eu leia Luto e Melancolia, um ensaio freudiano de 1917, como se fosse literatura. Na época eu entendi muito pouco do texto, mas algo na escrita ali me capturou. Como acontecia com alguns escritores e escritoras que me são caros — Virginia Woolf, Clarice Lispector, Guimarães Rosa -, havia algo ali que me instigava a saber mais. Eu comecei a ler sem sistematização alguns textos de Freud que me chamavam a atenção pelo título, até que decido dar um passo maior e largar a graduação que fazia em administração para iniciar psicologia. Para praticar a psicanálise não é necessário ser psicóloga, mas eu pensei que seria interessante. Não me enganei, além da experiência clínica dos estágios, na faculdade eu comecei minha análise pessoal e descobri que seria possível pesquisar academicamente literatura e psicanálise. Posso dizer que aqui se dá o início da formação que, para Freud, deve se sustentar em um tripé: estudo teórico, a análise pessoal e a supervisão dos casos clínicos. Um início que não vislumbra um fim, uma vez que o psicanalista está sempre em formação ou (de)formação, como sustenta Dominique Fingermann.

No meu caso, o estudo teórico sempre esteve atrelado à leitura do texto literário, ou seja, uma formação em psicanálise implicada com a literatura, como sugere Shoshana Felman. Nesse trajeto, meu encontro com Elena Ferrante se dá como algo que não consegui deixar apenas como movimento de leitura. Já tinha começado um mestrado em psicanálise quando sou fisgada por um trecho do início do quarto volume da tetralogia napolitana, História da menina perdida, em que Lila afirma: não se narra um apagamento. Como um refrão, essa frase me acompanhou até o fim do livro, e algo ali me capturou de maneira que precisei fazer um trabalho de escrita para articular e testemunhar a experiência de leitura. Um trabalho que não se restringiu à escrita da dissertação, mas também aconteceu na escrita da minha análise pessoal e da clínica, trabalho que segue acontecendo. O psicanalista Jacques Lacan diz que a literatura é uma acomodação de restos e nisso ela se avizinha ao trabalho do psicanalista, uma vez que é ao redor do resto, da falta e da equivocidade da fala do analisante que acontece o trabalho de análise.

Da minha história com esse encontro eu sigo para pensar brevemente em articulações amplificadas entre Elena Ferrante e psicanálise. A autora conta na coletânea de ensaios, cartas e tésseras, Frantumaglia: os caminhos de uma escritora (2017) que o título do seu primeiro livro L’amore molesto (1992) deriva do texto de Freud Sobre a sexualidade feminina (1931), mais especificamente da afirmação que o psicanalista faz, que o pai é o rival incômodo (rivale molesto), na relação da mãe com a filha. Em um primeiro momento, se cogitou a hipótese de que o título do romance fosse uma referência direta a esse trecho, mas Ferrante diz que a centralidade da imago paterna não era o objetivo, então faria mais sentido trabalhar com o amor incômodo, “o amor exclusivo da mãe, o único grande e tremendo amor original, a matriz inextinguível de todos os amores” (p. 130). Nesse trecho, a escritora nos dá uma indicação preciosa: Freud, mesmo tendo inventado algo revolucionário e radical para a sua época, ainda permanecia escrevendo sob o ponto de vista único do masculino. Ferrante nos propõe um giro em seus livros ao priorizar a perspectiva de mulheres que escrevem e produzem narrativas com o intuito de mostrar o que das narrativas femininas ainda carece de inscrição simbólica na cultura. Como afirma Enrica Maria Ferrara (2016), a linguagem escrita fornece às narradoras uma grade epistemológica para controlar o caos e a deriva da identidade do sujeito feminino.

Em outro momento ainda em Frantumaglia, Elena Ferrante ressalta que a psicanálise fez parte de seus interesses de pesquisa no decorrer da vida. Conta que leu bastante Freud, um pouco de Jung e Lacan, foi uma leitora apaixonada de Melanie Klein e Luce Irigaray, acompanhou as diferentes linhas do pensamento feminino que surgiram na segunda metade do século XX. Apesar de ter lido bastante teoria, Ferrante espera que essas leituras não tenham atrapalhado a construção de seus livros, uma vez que a literatura não deve se restringir à aplicação da teoria na ficção. Mas costurando com a noção de uma psicanálise implicada com a literatura, o caminho inverso pode ser percorrido e, assim como Freud e Lacan já haviam pensado, a literatura pode ser ferramenta para avançar teoricamente na psicanálise. Em seu livro A inútil paixão do ser: figurações do narrador moderno, Flavia Trocoli (2015) nos diz que a psicanálise não pode oferecer-se como um saber que explica o literário, por isso ela se apaga como conteúdo para se tornar um lugar de onde se lê, uma posição de leitura, e assim fazer surgir aquilo que é mais próprio dos dois campos: o inconsciente como saber que não-se-sabe exposto em ato no texto. A psicanálise desaparece enquanto conteúdo explícito porque é esse movimento que possibilita a aparição do texto literário segundo suas próprias leis, que regem o ponto de impasse-do-sentido. Guardadas as devidas proporções, podemos aproximar a posição de leitura da psicanálise diante do texto literário à posição do analista ao escutar o analisante. O psicanalista se apaga enquanto pessoa com suas próprias questões para fazer surgir o inconsciente do sujeito.

Esse é um fio importante para perseguir e pensar uma relação entre Elena Ferrante e psicanálise que comecei a esboçar aqui. Para finalizar o texto e começar a conversa, quero resgatar um trecho de Frantumaglia no qual Ferrante fala da escrita e pensar em como ele se parece com outros trechos em que a autora fala da experiência psicanalítica. No primeiro, respondendo a uma pergunta sobre a sua escrita parecer privada e sem endereçamento, ela diz: “Não, acho que não. Escrevo para que meus livros sejam lidos. Mas, enquanto escrevo, não é isso que conta — importa apenas encontrar a energia para cavar fundo a história que estou contando. O único momento da minha vida em que não me deixo impressionar por ninguém é quando procuro encontrar as palavras para ir além da superfície de um gesto óbvio, de uma forma banal” (p. 84). Depois, Ferrante afirma que após ter lido Freud acredita que ele sabia, mais do que seus seguidores, que a “psicanálise é o léxico do precipício” (p. 129); também diz que a psicanálise é um estímulo enorme para quem quer escavar dentro de si mesma da qual já não podemos mais prescindir (p.131). Parece que Elena Ferrante aproxima aqui a psicanálise do ato de escrita; apesar de afirmar em alguns textos que nunca fez análise, Ferrante parece ter a noção de que o que se faz numa análise é uma reescrita da história pessoal de cada um.

A noção de que Freud sabia mais do que seus seguidores que a psicanálise é o léxico do precipício aponta para uma ideia muito potente de que os psicanalistas não podem se furtar a olhar além da superfície da teoria, atentar o tempo inteiro para os riscos de uma captura imaginária que engessa a leitura e não permite avanços. Algo crucial para a formação em psicanálise é poder estudar a teoria atenta às perturbações do seu tempo, provocando diálogos, observando as lacunas e os pontos-cegos. É isso que produz movimento e, nesse sentido, podemos torcer a observação de Elena Ferrante e tomar a psicanálise e o léxico do precipício como um horizonte.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Mauro Cordeiro. A experiência de Freud: escrita e invenção da psicanálise. Dissertação disponível em: Microsoft Word — PaginasIniciais.doc (ufmg.br)

LACAN, Jacques. Outros Escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

FERRARA, Enrica Maria. Performative Realism and Post-Humanism in The Days of Abandonment. In The Works of Elena Ferrante: Reconfiguring the Margins, org.

Grace Russo Bullaro e Stephanie Love. New York: Palgrave Macmillan, 2016

FERRANTE, Elena. Frantumaglia: os caminhos de uma escritora. Tradução de Marcello Lino. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2017.

FINGERMANN, Dominique. A (de)formação do psicanalista: as condições do ato psicanalítico. São Paulo: Editora Escuta, 2016.

TROCOLI, Flavia. A inútil paixão do ser: figurações do narrador moderno. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2015.

Tatianne Santos Dantas é psicanalista, mestre em Psicanálise: Clínica e Cultura pela UFRGS e doutoranda em Estudos Literários pela UFS. Está sempre arriscando uns passos na escrita e tem ensaios, contos e poemas publicados em antologias e páginas literárias. Pode ser encontrada no sue Instagram.

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