Elena Ferrante e os meus dias de abandono

Série: Elena Ferrante

ano II: ensaio
ano II: ensaio
3 min readAug 13, 2021

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Ao me preparar para escrever sobre Elena Ferrante, num dia cinzento e olhando para as janelas do meu apartamento com os respingos de uma chuva introvertida, comecei a me lembrar de algumas escritoras que tiveram uma importância na minha vida. Todas elas surgiram em momentos em que precisei de um alento, um consolo, um aconselhamento em momentos difíceis, ou ainda, quando precisava de uma camaradagem que me auxiliasse a lidar com as flutuações e incertezas de uma mulher de vinte e poucos anos que vivia em outra cidade, nos anos de universidade, arremessada, boquiaberta, para a tal vida adulta.

Virginia Woolf, Iris Murdoch, Anne Sexton, Sylvia Plath, Inês Pedrosa, Marguerite Duras, Isabel Allende, Florbela Espanca, Clarice Lispector: ei-las. Cada uma surgiu em um tempo específico da minha vida. Não me lembro de fato, quais foram os motivos. Elas nunca chegaram inteiras, minhas experiências com elas sempre foram uma espécie de fratura, não li todas as suas obras, não realizei pesquisas sobre nenhuma delas. Eu queria aprendê-las assim, na nudez e na crueza das suas escrituras, sem análises acadêmicas, sem camisas de força. Pensando em tudo isso, agora, nos meus quarenta e numa quarentena, consigo compreender os motivos da minha escolha e fascínio por estas mulheres.

Digo logo, assim, de pronto: elas são falíveis, elas são imperfeitas, elas sofrem, são angustiadas, mostram-se perdidas e sem rumo. E assumem tudo isso para si mesmas, e para seu leitor. Juntam todos os cacos, os restos dos dias, as coisas que deram errado, o amor que não aconteceu, a comida que ficou salgada demais, a cama vazia do lado esquerdo, as tardes calorentas, as madrugadas insones, todos os modelos de mulheres trincados. São todas Medeias, cada uma a seu modo. Sangram, mostram a carne viva, gozam e lamentam. Em todo este desastre que é estar vivo, elas me mostraram que todos os arranhões podem ser belos, todos os desvios, uma possibilidade de paisagem, todas as dores, um crescimento delicado e forte.

Não falo aqui de pulsões masoquistas, ou de romantismos bobos. A totalidade do viver, com todos os seus percalços, aí reside a força da literatura destas mulheres, Ferrante incluída. Elas me mostraram esta força, gritando, surda, dentro do meu silêncio. Tornei uma mulher que passou a abraçar os porquês sem resposta. Tornei-me amante dos incômodos. Percebi-me inteira ao abraçar todos os meus fragmentos.

E Ferrante, claro, antes que este texto acabe (vocês já tiveram a impressão de o texto, às vezes, adquire vida própria?). Digo os porquês. Porque ela mostra as mulheres como caleidoscópios, instigantes a cada gesto, robustas a cada tropeço, cada vez mais inteiras em cada desabamento. Porque ela me chama a atenção para o fato de que um laço em fita de cetim é tão bruto quanto a delicadeza de um nó cego numa corda tosca. Ferrante não me deixa repousar em nenhum estereótipo. Ela não me permite descansar. Ela pega na minha mão e me lembra da imprevisibilidade dos afetos, da fluidez dos gostares. Ao virar-me do avesso, escancara minha superfície. A sua obra fala dos esquecimentos, dos distanciamentos, daqueles que se amam e se esquecem justamente porque se amam, e está tudo bem, assim do jeito que é, assim do jeito que está.

A obra de Ferrante, para mim? É vida que segue. Como lutei — e ainda tenho minhas resistências, admito — para negar este fato em mim! Mas a vida, sim, ela segue. Tenho de lidar com isso.

E está tudo bem assim, do jeito que está.

Vanessa Beatriz Bortulucce é historiadora da imagem, da arte e da cultura. Graduada em História pela Universidade Estadual de Campinas (1997), Mestra em História da Arte e da Cultura pela Universidade Estadual de Campinas (2000) e Doutora em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (2005). Atualmente é docente no Centro Universitário Assunção (UNIFAI) e no Museu de Arte Sacra de São Paulo. Pode ser encontrada em seu Instagram.

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