Fernando Teixeira
ano II: ensaio
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8 min readFeb 15, 2020

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Em 2015 e 2019, duas barragens de minério, pertencentes à Vale (no caso de Mariana, vale lembrar que Vale e Samarco operavam na região em um esquema de joint venture), se romperam em Minas Gerais. Nas duas ocasiões, a lama escorreu por vales e campinas, bosques e ruas — soterrou casas e pessoas, efetivamente cobrindo de marrom um pedaço verde que era, até então, dois dos poucos refúgios da Mata Atlântica no estado.

No começo dos anos 2000, época em que se passa o livro Bleeding Edge, surgiu o movimento filosófico que veio a ser conhecido como aceleracionismo. Acadêmicos e filósofos (k-punk, Nick Land etc), majoritariamente de língua inglesa, de diversas orientações políticas, debruçaram-se em seus blogs — mídia que começava a se popularizar — sobre as questões mais prementes de seu tempo. Esses pensadores — influenciados pro Freud, Derrida, Joy Division, Blade Runner e pela cultura rave — chegaram à conclusão de que o destino do homem é a aniquilação através do capitalismo. Entre os aceleracionistas de hoje (um grupo heterogêneo, que tem desde neofeudalistas de extrema-direita a afrofuturistas), a grande questão é se tal aniquilação seria, de fato, algo tão ruim, uma vez que é, para alguns deles, inevitável.

In philosophical terms, the deep problem of acceleration is transcendental. It describes an absolute horizon — and one that is closing in. Thinking takes time, and accelerationism suggests we’re running out of time to think that through, if we haven’t already. No contemporary dilemma is being entertained realistically until it is also acknowledged that the opportunity for doing so is fast collapsing.

Em termos filosóficos, o problema no cerne do aceleracionismo é de ordem transcendental. Ele descreve um horizonte absoluto — do qual nos aproximamos cada vez mais. Pensar leva tempo, e aceleracionsimo sugere que nosso tempo para pensar com cuidado está acabando, se é que já não acabou. Nenhum dilema contemporâneo está sendo contemplado de forma realista até que reconheçamos que a oportunidade de se pensar está rapidamente se esgotando.

Assim Nick Land, um dos progenitores do termo e uma figura complexa e detestável, define o aceleracionismo. Trata-se um tema amplo — uma escola de pensamento que tem muito com comum com a literatura de Thomas Pynchon, no sentido em que partilha com esta uma preocupação essencial: as consequências de um futuro à mercê dos desvarios do capitalismo tardio.

Em Bleeding Edge, romance de 2013, o autor norte-americano Thomas Pynchon situa seus personagens entre dois acontecimentos que mudariam, para sempre, o curso da História: o primeiro estouro da bolha da internet, em 2000, e o ataque às Torres Gêmeas, no fatídico onze de setembro de 2001. Dois eventos que parecem completamente sem relação entre si adquirem, na prosa paranoica de Pynchon, o feitio de sintomas indeléveis do que estava por vir: a completa desintegração da privacidade em nome de um grande projeto de Estado voltado para a vigilância constante de todo e qualquer cidadão do planeta.

O tema parece feito sob medida para o autor. Em 2013, já tínhamos todos uma boa noção do controle exercido pela internet na vida dos cidadãos, americanos ou não, e potencializado pelos dispositivos móveis. Situados em um passado que, aos olhos de quem cresceu com a internet, parece distante, os personagens de Pynchon discutem esse inegável futuro o tempo todo, antecipando o que para o leitor já é o presente. Munido dessa presciência, cabe a um personagem menor (o pai da protagonista) declarar aquilo que, para nós, é óbvio: não é que a internet, originalmente uma invenção do exército americano, tenha deixado de ser uma ferramenta de guerra — a questão é que ela agora se tornou, de fato, uma arma.

A tendência quando se fala de distopias — e distopia é uma palavra apropriada para os nossos tempos — é recorrer a 1984, porque ao menos no romance de Orwell há um vilão definido: o Estado totalitário, representado na figura do Grande Irmão. O tipo de iconografia que agrada a gregos e troianos, stalinistas e trotskistas e hitleristas. Mas Pynchon é o autor que mais se aproximou do horror existencial que caracteriza a distopia atual. Seus romances (o primeiro, V., foi publicado em 1963; ao todo, ele publicou oito) são picarescos, dotados de humor surreal e personagens de nomes bizarros. São comédias sobre o fim dos tempos, em suas mais variadas e delirantes formas: o bombardeio de Londres pelos nazistas durante a Blitz, o fim amargo do sonho hippie, o brutal colonialismo europeu. São também partes de uma grande obra única que traz como tema as abruptas mudanças do século XX e a Paranoia, que na forma pynchoniana flerta com o absurdo, com o pueril, com o inimaginável, mas também com verdades tão insólitas que só podem ser compreendidas por meio da ficção.

Para o teórico marxista Fredric Jameson, uma das marcas da pós-modernidade, na qual ele situa Pynchon, é o pastiche. Diferentemente da sátira ou da paródia, o pastiche não tem nenhuma obrigação de referir-se a um objeto específico. Porém, Jameson conclui que justamente essa inexistência de um alvo faz dos textos paródias “brancas”, mais preocupados com a forma do que com a mensagem.

No caso de Pynchon, o pastiche é justamente a mensagem. Mais de que uma opção estética, as tramas rocambolescas são a marca de um mundo tomado pela entropia, mundo este em que mesmo a mais picaresca das conspirações representa o atual estado disfuncional de um sistema econômico regido por regras arcanas e personagens obscuras.

Pynchon em momento algum dá razão às famigeradas conspirações sobre o 11 de setembro (que foi uma trama do governo, que Bush sabia e nada fez etc), mas tampouco as silencia — não porque partilhe dessas ideias, mas porque é capaz de compreender as razões de algumas pessoas levarem tais absurdos a sério.

John Barth, acadêmico e autor norte-americano, precursor de Pynchon, analisa em seu texto The Literature of Exhaustion a obra do Jorge Luis Borges , em especial a prevalência de um tema muito caro ao autor argentino — a contaminação da realidade pela ficção. No célebre conto Tlon, Uqbar, Orbis Tertius, a descoberta de uma enciclopédia de um mundo fictício acaba por infiltrar-se na realidade, alterando de modo permanente aquilo que se percebe como História. De modo semelhante, as narrativas de Pynchon, e de outros autores pós-modernos americanos, como Don Delillo (em Libra, o autor reimagina a história do assassinato de Kennedy do ponto de vista de Lee Harvey Oswald ao mesmo tempo em que valida a famosa teoria conspiratória de que o assassinato do presidente teria sido obra da CIA), se valem de premissas semelhantes, partindo dos interstícios da História para criar ficções que desestabilizam a própria noção do real.

As próprias políticas intervencionistas praticadas pelos EUA se prestam a todo tipo de questionamento: durante vinte anos, de 1970 a 1989, a Agência Central de Inteligência Americana (CIA), forneceu armas e equipamentos aos mujahideen opositores ao regime pró-soviético do Afeganistão. Incapazes de prever as consequências desse ato, os EUA acabaram por fomentar, de forma indireta, o radicalismo islâmico que mais tarde seria responsável pelo maior atentado terrorista em solo americano.

O que os aceleracionistas e Pynchon compreendem — e intelectuais de velha água como Jameson ignoram — é o papel da cultura pop nessa contaminação da realidade — Rambo 3, lançado durante os anos Nixon, terminava originalmente com a seguinte homenagem:

Substância moldável que é, o discurso pop em relação ao islamismo tornou-se completamente outro após o ataque às Torres Gêmeas. Desde então, árabes e persas passaram a ser retratados na ficção norte-americana como vilões, tomando o lugar que um dia fora dos russos e chineses na imaginação popular e preparando terreno para a segunda incursão dos EUA no Oriente Médio, desta vez como uma nova cruzada contra o terrorismo. A violência discursiva mantém, desta forma, uma estreita relação com a violência prática — esta permanece à espreita, enquanto ao discurso cabe por fomentar um processo de metástase que, em sua forma derradeira, termina por ser sempre definitivo e fatal.

Em 2016, Donald J. Trump, até então conhecido como um astro de um reality show e empresário do ramo imobiliário tornou-se presidente da maior nação do planeta. Eleito, não apesar — mas justamente por conta de — sua personalidade abrasiva, grosseira e arrogante. No Brasil, Jair Bolsonaro, um deputado de atuação inexpressiva na política, mas de grande apelo popular nas redes sociais, chegou ao cargo máximo do país graças a uma estratégia bastante semelhante. É ainda mais fácil manufaturar personalidade na era da internet, em que a curadoria é constante a verdade frequentemente obscurecida pelo excesso de informação.

O poder na era das megacorporações reside justamente na inimputabilidade dos poderosos, pois os reais detentores do poder também são detentores da realidade — ou da forma como eles querem que se perceba a realidade. Numa demonstração da brutalidade do raciocínio predominante em uma empresa do porte da Vale, vários funcionários foram processados por crime doloso, pois ignoraram os repetidos avisos de um possível acidente na região. Mas não há punição tangível ou desfecho satisfatório: Multas são pagas, ações despencam, conselhos de diretores são substituídos. Mas a verdade é que ainda é possível assistir às propagandas frequentes em que a Vale se desculpa com a população em geral, e é certo que dentro de alguns anos o incidente será apenas uma memória vaga, uma mancha na reputação da empresa. Afinal, é possível punir pessoas. Mas aquilo que não se quer que perguntemos é se é possível punir uma corporação.

Enquanto isso, somos distraídos pelo fascismo covarde de figuras políticas cujo plano de governo se resume a preservar, de forma bufa e escandalosa, os privilégios dessas oligopólios. Quão mais ofensivo o novo disparate do Bolsonaro, mais fácil é ignorar o real problema subjacente, como a perda de direitos trabalhistas; quanto pior for o tuíte do presidente norte-americano, mais difícil fica focar em questões mais prementes, como rápido crescimento da desigualdade entre os americanos.

Brumadinho, o 11 de setembro e a chegada ao poder de políticos cuja ideologia reflete os piores impulsos da sociedade tem em seu cerne a ânsia pela autoaniquilição — sintoma de uma sociedade adoecida pelo Capitalismo levado às suas últimas consequências.

Trata-se da vitória da ficção pela realidade, da substituição da História por narrativas criadas em comitê e aprovada por shareholders. Mudam-se os crimes, mas os vilões permanecem os mesmos: intocados pelo poder público e ocultos sob diversas camadas de ofuscação, que compreende lobbyistas e think tanks.

O que autores como Pynchon e o filósofo Mark Fisher oferecem é um contraponto à narrativa oficial. Para os aceleracionistas, futuro e presente se entrelaçam, sem que se possa distinguir onde começa um e termina o outro. Estamos sendo encobertos pelo agora, que nos sufoca feito um lamaçal violento e nos carrega, feito um rio de lama, a um futuro possivelmente desastroso.

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