Entrevista com Antônio Xerxenesky

ano II: ensaio
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6 min readDec 7, 2021

Uma tristeza Infinita, de Antônio Xerxenesky, é um romance que percorre diversos caminhos narrativos, bifurcações literárias, até convergir em um único ponto: em que pé estamos agora, no ano de 2021, diante das tribulações da vida cotidiana e das atribuições que nos foram legadas pelos muitos ciclos de violência, física e intelectual, que nos encurralam, feito uma fera na selva, com desconcertante frequência?

Embora situada na Suíça pós-segunda guerra e ainda que retrate a vida de um fictício psicanalista francês, a obra não deixa de dialogar, em momento algum, com o Brasil de agora.

Trata-se de um romance deliberado e que permite — tanto aos personagens quanto ao leitor — frequentes deliberações. Ao falar sobre o trauma daqueles que viram de perto as atrocidades do grande conflito mundial e os esforços de Nicolas, o protagonista, para lidar simultaneamente tanto com os seus próprios demônios como os que atormentam seus pacientes, somos levados a considerar nosso papel em um mundo assombrado pelo anjo da história — tal qual no ensaio de Walter Benjamin — e a reconsiderar o presente através do bárbaro prisma do passado.

Nesta entrevista com o autor, falamos sobre o romance de ideias, a decisão de escrever sobre a Europa do pós-Guerra e como a obra se relaciona com o Brasil dos dias de hoje.

ensaio: Durante o seu mestrado você trabalhou com a obra de dois escritores, Roberto Bolaño e Enrique Vila-Matas e suas correspondentes abordagens da literatura rumo a si mesma como a metaficção, metaliteratura e metalinguagem. De uma forma semelhante você também abordou sobre o tema da autoficção em um texto chamado “Algumas notas perdidas demais sobre autoficção” no qual se pergunta sobre a validade de tal conceito. Como você vê hoje a importância que essas definições têm ou tiveram na literatura contemporânea?

Antonio Xerxenesky: Que memória fraca a minha — não me lembro deste texto, nem do que eu argumentava naquele momento. O que posso dizer é que esses conceitos que tanto me interessavam no passado — da metaficção à autoficção — parecem ter perdido espaço no cenário contemporâneo. A metaficção, por exemplo, parece um delírio acadêmico diante do cenário caótico político e ambiental que se abate no mundo; já a autoficção foi substituída por narrativas que incorporam vivências de escritores fora do centro branco, hétero etc.

Tenho a impressão de que a literatura contemporânea nunca foi tão plural, abrindo espaço para vozes “periféricas” (em relação ao “centro” metafórico que descrevi acima) com perspectivas contrahegemônicas. Ao mesmo tempo, autores de um realismo mais tradicional estão se abrindo para experimentos de gênero, pois parece que apenas a imaginação pode dar conta do colapso que estamos vivendo. Um exemplo: os dois contos finais de Deus das avencas, de Daniel Galera, que parece ser uma resposta do autor à crise do tipo de realismo escrito pela perspectiva de um escritor que está nesse “centro”.

Uma Tristeza Infinita (2021), o novo romance de Antônio Xerxenesky lançado pela Companhia das Letras

ensaio: Em Uma Tristeza Infinita, você aborda o momento histórico atual através de um personagem distante — tanto no tempo quanto no espaço — da realidade brasileira. Você acredita que esse distanciamento permite a você ter uma perspectiva do, digamos assim, agora, sem cair na autoficção?

AX: Sim, sem dúvida. É curioso comparar meu livro com, por exemplo, O reino, de Emmanuel Carrère, que alterna trechos que se passam dois mil anos atrás com momentos da vida do próprio autor, revelando sua pesquisa e intenções ao escrever o livro. É a maneira de Carrère mostrar como aquela discussão sobre as origens do cristianismo importa até hoje. Uma tristeza infinita, por sua vez, oculta o “eu”; o Antônio brasileiro do século XXI se esfumaça ao mesmo tempo que dissemina na linguagem. Qualquer bom leitor vai conseguir pensar o hoje a partir do romance situado nos anos 1950. Meu livro não é um romance histórico, assim como o de Carrère tampouco o é. São maneiras contemporâneas de sabotar o romance histórico.

ensaio: A estrutura de Uma Tristeza Infinita remete aos romances de Robert Walser — citado textualmente — mas as digressões acerca de tópicos diversos (psicanálise, a omissão diante da barbárie, a fundação do CERN) lembram os livros de Sebald. No fim, tive a genuína impressão de que poderia descrever seu livro como um “romance de ideias”. O que acha do termo? Foi esta, de fato, a sua intenção com esse livro?

AX: Sim. Exatamente. Foi essa minha intenção. O romance de ideias é um formato incrível que foi infelizmente descontinuado. Nesse sentido, auxiliou-me muito o livro The Novel-Essay, do teórico Stefano Ercolino. Mais do que Sebald, bebi da fonte de Musil e Broch, duas paixões recentes. Gosto da polifonia de ideias conflitantes que ambos os narradores expõem em seus romances.

ensaio: Você fala nos agradecimentos sobre como, durante sua residência na Suiça, viu-se incapaz de escrever sobre o Brasil. De volta ao Brasil, você escreveu sobre um psicanalista francês autoexilado no interior da Suiça. Um movimento semelhante me parece que é o que você realiza na dinâmica entre Brasil e Estados Unidos apresentada em F. Dito isso, como você lida com a etiqueta “literatura brasileira” na sua obra literária? Ou, indo ainda mais longe, você se considera um escritor latino-americano?

AX: A questão de identidade me interessa cada vez mais, e me parece que as teorias mais estabelecidas sobre o assunto não estão dando conta das mudanças pelas quais o conceito de identidade tem passado. Pouco importa eu me definir como “literatura brasileira” ou como “escritor latino-americano”; minha identidade é perpassada pela visão do outro. Eu serei como os outros me definirem, embora também tenha um papel (menor) na construção ativa de uma identidade. Sou brasileiro. Não tenho passaporte de nenhum outro lugar. Moro no Brasil, por bem ou por mal. Tenho hábitos brasileiros — tomo banho diariamente, como pão na chapa e arroz com feijão, ouço Jorge Ben, pulo carnaval. Leio muita literatura brasileira e latino-americana. Situar minhas tramas fora do país não altera isso.

Quando estive na França para o lançamento de F, pude conversar com os leitores e ver que, apesar de boa parte da trama transcorrer em Paris, o livro oferecia claramente uma visão de alguém de fora. Eu era, em alguma medida, uma criatura exótica. E aceito isso de bom grado. Não quero fingir que sou europeu.

Antonio Xerxenesky fotografado por Renato Parada.

ensaio: Ao final do romance, tive a impressão de que o protagonista Nicolas encontra conforto na ideia de ser quem é — no caso dele, a longa bagagem de ser judeu, de ter — por necessidade — ocultado quem realmente era durante a ocupação nazista na França. Conforto, enfim, no fato de que a sobrevivência é uma forma de resistência. Não com fatalismo, mas de forma — ouso dizer — esperançosa. Diante do fato de que seu romance, por remoto que possa parecer, dialoga de perto com a atual situação do Brasil, qual a opinião do autor Antônio a respeito da atitude de Nicolas?

AX: Não sei se concordo com a visão de que a mera sobrevivência é uma forma de resistência. Acho que o meu livro mostrou que entre a resistência ativa e violenta (juntar-se à guerrilha) e o colaboracionismo escancarado existem infinitos tons de cinza, e cada personagem se encontra em um diferente ponto do espectro. Acredito que o “acerto de contas” de Nicolas vem de encarar os erros do passado e pensar que é capaz de mudar. No judaísmo, há um conceito intrigante e complexo chamado teshuvah, às vezes traduzido como arrependimento, às vezes como retorno. Algumas linhagens definem o ato de teshuvah como o retorno mental ao momento em que cometemos um erro e, já que não podemos mudar o passado, fazemos uma mudança em nós mesmos para não repetirmos o equívoco. Foi a atitude de Nicolas, de certa forma. Ele sabe que o fascismo sempre retorna; a questão é: que atitude tomar ao saber disso?

Quanto à minha opinião, não me resta escolha além da esperança. Tenho um filho de 1 ano e 8 meses. Preciso imaginar que há salvação para o país, que o Brasil não ficará eternamente com uma maioria de habitantes apoiando um projeto genocida. É preciso guardar a crença na possibilidade revolucionária de que um mundo mais justo é possível.

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