Game Over

Série: sobre Princípios e Fins

ano II: ensaio
ano II: ensaio
13 min readJan 26, 2021

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Um freeze-frame — pouco mais de uma fotografia que, quando rotacionada, revelava o lento desenrolar da cena: uma mulher atraente, de joelhos; uma bala que atinge seu rosto, despedaçando-se contra sua pele; no lugar de simples braços humanos, lâminas se projetam à altura dos pulsos. Com essa simples imagem, a então pouco conhecida desenvolvedora polonesa CD Projekt RED acendeu o longo pavio que consumiu a mente de milhões de entusiastas dos jogos eletrônicos e que, 8 anos depois, explodiria de forma desastrosa no lançamento do jogo Cyberpunk 2077.

Frame/trailer de Cyberpunk 2077.

Em retrospecto, havia sinais de que algo não estava certo: o jogo foi adiado pelo menos 4 vezes e relatos da insatisfação dos desenvolvedores com as condições de emprego começaram a pipocar nas redes (conhecida como crunch, a prática consiste no encorajamento, quando não obrigatoriedade, de longas jornadas de trabalho). A empresa focou no marketing à custa do trabalho, exaurindo os funcionários e lançando um jogo que, embora não seja absolutamente horrível, não estava terminado.

A reação da imprensa e da indústria foi rápida e exemplar: a Sony impossibilitou a compra do jogo na sua plataforma online, a Playstore. Conglomerados midiáticos cobriram a situação humilhante de uma empresa de videogames polonesa como se fosse a derrocada de uma multinacional.

O arquiteto da ascensão do Donald Trump, Steve Bannon, financiou e foi, por um breve período CEO da IGE, companhia dedicada a pagar jogadores chineses de World of Warcraft um dólar por dia de trabalho em troca de horas em frente a um computador, obtendo moeda virtual e itens raros que eram posteriormente revendidos para jogadores americanos e europeus por dinheiro real. Sua aventura no mundo dos games chegou ao fim quando milhares de jogadores, incapazes ou desinteressados em pagar por tais itens raros, formaram, via fóruns e redes sociais um grupo de queixosos substancial o suficiente, a ponto de conseguir representação legal que levou a desenvolvedora de World of Warcraft a tomar medidas contra a prática. A companhia fechou as portas e depois reestruturou-se.

Pouco depois de sua aventura no mundo dos jogos, Steve Bannon, um homem com longa carreira nas finanças, assumiu o posto de editor no site conservador Breitbart News. Munido de uma epifania, a de que jovens insatisfeitos possuíam considerável força — capaz de falir uma empreitada multimilionária — resolveu transformar o Breitbart News, de pequeno site conservador a parte integrante do discurso corrente nas redes sociais. Homem certo na hora certa, Bannon surfou, via jornalistas de caráter dúbio, como Milo Yiannopoulos, na onda de um escândalo manufaturado, ostensivamente envolvendo a ética dos jornalistas e veículos dedicados aos videogames, mas sub-repticiamente uma inventiva do público-alvo tradicional (parêntese desnecessário, mas lá vai: branco, homem, hetero) contra os novos parâmetros do entretenimento, parâmetros estes que clamavam por maior e melhor representatividade de minorias, fatia de mercado que ganhava rapidamente espaço no mundo dos jogos e questionava a falta de diversidade de pessoas de cor e LGBTQ dentre os protagonistas dos games.

Vendo uma oportunidade de politizar e lucrar em cima de uma parcela de homens insatisfeitos com as condições de vida que lhes foi legada pela crise de 2008, Bannon essencialmente aspergiu gasolina sobre o fogo e, junto a outras figuras do que viria ser chamado histericamente de alt-right, criou uma nova geração de conservadores paranoicos.

Os EUA têm uma longa tradição de racismo e xenofobia, e o papel desses jovens, moldados pela cultura da internet, foi algumas vezes exagerado pela mídia. Mas a participação destes na ascensão de Trump ao poder é indiscutível, se levarmos em consideração que, através da difusão de memes e de seu discurso bastante vocal na internet, eles serviram como propagadores de uma ideologia que rapidamente penetraria a consciência coletiva da população, dentro e fora dos Estados Unidos.

Cyberpunk 2077 foi anunciado em 2012 e lançado no final de um ano bastante atípico: 2020, o ano da peste. Nesse período de 8 anos, a CD Projekt Red lançou The Witcher 3, para muitos, um marco na indústria de jogos e um modelo exemplar de como tratar os consumidores. O jogo recebeu conteúdo extra gratuito e expansões pagas a preços acessíveis que excederam expectativas.

Clientes devidamente fidelizados, a companhia passou os próximos anos em uma enorme campanha de marketing para seu próximo jogo. Situado em um futuro alternativo, reminiscente das obras de William Gibson e Neal Stephenson, o jogo lida com multicorporações que suplantaram o governo e coloca o jogador no papel de um mercenário que se vê em rota de colisão com um poderoso conglomerado japonês.

Os temas de anticapitalismo, predominância da internet, ubiquidade da propaganda e da desigualdade de classes são inerentes ao gênero — bem como o fetiche pelo Japão que, à época em que os textos fundadores do cyberpunk foram escritos (Neuromancer, Snow Crash), despontava como uma superpotência global, antes da crise financeira dos anos 90 que devastou o país.

Em uma reunião, um dos desenvolvedores do jogo Cyberpunk questionou os supervisores se não soava hipócrita que estivessem trabalhando em um jogo sobre as práticas nefastas do capitalismo enquanto eles, os desenvolvedores, eram obrigados a trabalhar por mais de 12 horas, seis dias por semana, em um produto que parecia ainda longe de estar pronto para o lançamento.

Parafraseando Mark Fisher, o sistema capitalista permite críticas ao própria sistema em doses controladas, uma saudável e homeopática mea culpa embutida no entretenimento que consumimos, e que nos permite a ilusão de rebelar contra a pantagruélica realidade que nos engole do conforto das nossas poltronas.

Ademais, trata-se de propaganda. O fajuto bom-mocismo da empresa — que tinha dito que não obrigaria os trabalhadores a praticarem o famigerado crunch (e depois, quando relatos de crunch surgiram na mídia justificou-se dizendo que prática comum na indústria) — serviu para blindar a companhia contra os ataques da crítica. Os diatribes preconceituosos contra pessoas trans no twitter, obra de uma equipe de relações públicas bastante esperta, mantiveram o jogo nas boas graças do público-alvo tradicional mencionado anteriormente. Ao mesmo tempo, a qualidade de The Witcher 3 fez muita gente de fora da bolha reacionária criticar, mas desconsiderar tais eventos como se fossem pecadilhos.

Propaganda: Trump, amparado por seus asseclas e seus defensores na internet, destrinchou as regras de etiqueta da política americana sem repercussão real por quatro anos. Bannon, de editor de tabloide de extrema-direira, passou a estrategista-chefe do presidente. Após o protesto neonazista em Charlottesville, Trump recusou-se a culpar os supremacistas brancos pela violência, citando que havia gente decente em ambos os lados (o outro lado formado por pessoas que discordavam dos neonazistas). A culpa recaiu sobre Bannon, que foi encorajado a se demitir. Em agosto de 2020, foi condenado por fraude bancária e lavagem de dinheiro. Recebeu o perdão presidencial no último dia de seu ex-chefe no poder.

Enquanto o longo e excruciante processo eleitoral ainda tramitava, contudo, a possível saída de Trump galvanizou o país. Tecnocratas do Vale do Silício e os grandes jornais passaram a agir de forma abertamente panfletária, recusando-se a cobrir escândalos envolvendo o filho do rival democrata. Glenn Greenwald saiu do Intercept alegando interferência editorial. O Washington Post (pertencente a Jeff Bezos, dono da Amazon) deletou e, após reclamações, restituiu, linhas que pintavam a possível vice-presidente de forma nada glamurosa.

Tal pragmatismo se devia, claro, à necessidade da saída de Trump, mas as medidas tomadas se assemelham a de um grupo de jovens radicalizados, não pelo anonimato de fóruns de internet, mas pela bolha do Twitter e da cobertura incessante da mídia, uma realidade alternativa na qual Biden surgia como a saída ideal, o impoluto mensageiro de uma paz há muito perdida.

Enquanto isso, o público fiel a Trump negava a realidade de outro modo: questionando o resultado eleitoral e, por fim, invadindo o Capitólio para evitar que o simples procedimento de reconhecimento da vitória de Biden por parte do congresso se concretizasse.

Sem plano, sem ideias e motivados pelas mais burras das razões, marcharam feito aldeões em um filme de terror dos anos 30. No lugar de rastelos e foices, celulares e armas.

A reação mundial foi de choque. Como se a própria democracia houvesse sido violada de alguma forma.

Trump, como lhe é de costume, falhou em condenar veementemente esses ataques absurdos. Massacrado pela mídia e condenado até mesmo por seus colegas de partido, foi punido de forma exemplar sendo banido de todas as redes sociais, sua plataforma preferida para disparar asneiras.

Saiu humilhado e o mundo comemorou.

Mas, como sempre, tudo não passa de propaganda.

Há algo de admirável em como o discurso místico-fascista de Bannon adentrou a mídia. O canal Fox News, conservador, um dos maiores do Estados Unidos, reverbera até hoje a retórica ambivalente e perniciosa capitaneada pelo Breitbart. Ao mesmo tempo, outros canais que compõem o lucraram em cima do pavor do americano liberal diante da ameaça do fascismo, ocuparam-se em dar um verniz diplomático no histórico nada honroso do novo presidente em relação a minorias (a saber, Biden trabalhou com segregacionistas e foi um dos arquitetos da Crime Bill de 94, lei que endureceu a pena contra crimes como posse de drogas e indiretamente atingiu as minorias do país).

O Monopólio da Mídia (2018), de Ben H. Bagdikian.

A mídia americana é composta por um oligopólio. Grandes emissoras compartilham membros de conselhos executivos, interesses e joint ventures. Funcionam como um cartel, conforme alertou Ben H. Bagdikian em O Monopólio da Mídia (publicado no Brasil pela Veneta em 2018). À época da publicação da obra, nos anos 80, Bagdikian não tinha como antecipar o poder e a influência das redes sociais, mas sua teoria de que a concentração da informação na mão de poucos conglomerados permanece muitíssimo relevante.

Por exemplo: a guinada da Fox à extrema-direita alarma, mas cabe lembrar que, por mais absurda que possam ser as opiniões de seus âncoras, o grupo, uma subdivisão do conglomerado Fox (cujas propriedades intelectuais relativas à entretenimento foram vendidas à Disney) permanece firmemente alinhado às regras do mercado. Portanto, é possível a assistir noticiários neutros e também programas de opinião em que um imbecil qualquer desafia as regras do bom-senso repetindo uma retórica ambígua que, claro, se revela racista ao menor escrutínio, em um único canal.

De forma semelhante, embora demais canais como a CNN e a MSNBC tenham se oposto firmemente a Trump, ambas são parte de grupos maiores, que ocasionalmente recebiam convidados com agendas alinhadas à do presidente e tiveram papel fundamental em sedimentar sua candidatura com incessantes coberturas de seus comícios.

Bagdikian afirmou nos anos 80 que a mídia (leia-se: tv, cinema, jornais e rádio) foi responsável pela guinada à direita da política americana. Processo semelhante ocorreu devido às novas formas de se consumir informação. As redes sociais e o Youtube, com seus sofisticados algoritmos, tornaram o marketing capaz de antecipar e oferecer a cada cidadão exatamente o que eles queriam, ao mesmo tempo em que confiava a seus usuários o poder de criar conteúdo. Na teoria, bastante democrático. Na prática, permitiu que absolutamente qualquer um dissesse o que bem entendesse. Isso incluí pessoas radicalizadas pela mídia tradicional décadas atrás, mas que agora viam uma oportunidade para irem ainda mais longe em seu discurso. O poder na mão desses poucos, novos, conglomerados tornou-os cúmplices, quando não responsáveis, por uma nova guinada: desta vez, à extrema-direita.

Nem sempre, conforme argumenta Bagdikian, essas alianças insalubres são conscientemente decididas pelo conselho-diretor de uma companhia. Na maior parte das vezes, as razões são puramente financeiras. Os interesses econômicos suplantam a índole.

As redes sociais de Trump foram, ao longo dos anos, fonte de uma espécie de entretenimento perverso para os piores tipos de gente. Sua presença gerava tráfego. Quando ele disse que os manifestantes do Black Lives Matter deveriam ser recebidos a tiros, sua conta não foi banida; quando ele replicou ideias fascistas e perigosas, sua conta não foi banida; quando ele aventou ameaças de guerra nuclear contra a Coréia do Norte, sua conta tampouco foi banida.

Somente quando seus eleitores agiram contra o establishment, o que fortuitamente coincidiu com sua iminente saída do poder, é que os CEO das mídias sociais (Jack Dorset, Twitter; Mark Zuckerberg, Facebook) resolveram tomar medidas drásticas e bani-lo.

Conta suspensa de Donald Trump no Twitter.

A derrota de Trump se deve a inúmeros fatores: arrisco dizer que sua completa incapacidade de agir de forma racional quando necessário foi integral para que ele perdesse credibilidade entre os endinheirados. Bannon cortejou os americanos pobres — vítimas da crise cíclica e inerente ao capitalismo tardio — com uma retórica populista, simultaneamente capaz de seduzir os que acreditam no Sonho Americano e de agradar os investidores, a quem sempre interessou uma população fidedigna, caninamente leal a um ideal intangível e a um objetivo inalcançável.

Trump, por sua vez, nunca apresentou planos concretos para revigorar o país: em vez disso, prometeu fazer a América Grande de Novo. Simples assim. Falhou duplamente: por ser ruim para os negócios (afinal, quem, em sã consciência, apostaria em mais 4 anos de escândalos?) e por não entregar ao público o que ele queria.

Consigo ver daqui a sobrancelha contraída do leitor que se pergunta: o que diabos um jogo de videogame tem a ver com todo esse papo de política?

Explico:

Trump foi, por quatro anos, o vilão nababesco contra qual todas as vozes sãs, em uníssono, vociferaram. Sua derrota não se deve apenas a causas tangíveis, como sua inépcia ao lidar com a pandemia, mas também a questões mais subjetivas, como sua inabilidade de manter o bico fechado. Por gerações, presidentes americanos praticaram a mesma política imperialista e racista. A patológica necessidade de falar as maiores besteiras em momentos impróprios e a incapacidade de engolir em seco e condenar veementemente os crimes mais abjetos foi o motivo de sua derrocada. Trump foi, simplesmente, ruim para os negócios. Ao final de 2020, sua saída já era mais antecipada que o lançamento de Cyberpunk 2077, mas ambos acontecimentos, menos de um mês à parte, mostraram-se profundamente anticlimáticos.

Biden, afinal,não significa uma ruptura de poder com o sistema eleitoral lunático que legou ao mundo a presidência de um apresentador de reality show psicótico, amparado por neonazistas e suprematistas brancos. De fato, o presidente recém-empossado significa uma retomada.

Tela de “Game Over” em Super Mario Bros.

Outrora, quando se exauria o número de tentativas em, por exemplo Super Mario Bros, era game over. A opção era voltar do começo.

Hoje em dias, os jogos são muito maiores e sofisticados. Donde a ideia é que, em caso de fracasso, se possa recomeçar de onde parou: a morte é uma chance de tentar de novo, infinitamente. A depender do jogo — como é o caso em Cyberpunk, retornar ao último ponto de salvamento significa que uma escolha equivocada, feita horas atrás, ficará marcada em seu personagem até o final. É possível começar do zero, mas, convenhamos, em um jogo de cerca de 30 horas, tal opção é inconveniente. A morte não é um recomeço, mas uma retomada.

Embora Biden tenha acenado positivamente para a esquerda, aprovando algumas pautas essenciais em relação a leis trabalhistas, ele persiste na ideia de que democratizar o ridiculamente ineficaz sistema de saúde americano, que prioriza as seguradoras, seria caro demais. Tampouco apoia o movimento para desmilitarizar ou diminuir os gastos com a letal polícia norte-americana. Um de seus embaixadores já advertiu à imprensa que o atual presidente reconhecerá Juan Guaidó como líder da Venezuela.

Mais do mesmo.

Um dos pontos de contenda entre os cliente insatisfeitos com o jogo Cyberpunk tem menos a ver com sua horrível performance e bugs abundantes: muitos apontaram que o jogo era mais do mesmo, um clone de Grand Theft Auto com nova roupagem e pior qualidade. Promessas não foram cumpridas e, em toda parte, em vários pontos do vasto mapa da fictícia Night City, local onde transcorre o jogo, é possível ver exatamente onde a companhia resolveu cortar gastos.

Em defesa do Biden, devo dizer que, diferente da produtora polonesa ele jamais prometeu aquilo que sabia ser incapaz de cumprir. Jamais disse que imporia mudanças radicais ou que enfrentaria os problemas prementes da violência policial ou do racismo sistêmico.

O conluio das emissoras liberais para tornar Biden mais palatável funcionou em partes. Ainda que o partido Democrata tenha perdido terreno entre negros e latinos, foi alçado à maioria no congresso e no senado. Biden foi, claro, eleito.

Mas fica cada dia mais evidente que nada além de um reset salvará o império americano de seu ciclo de decadência.

Afinal, não se trata apenas de uma questão de pequenos defeitos ou bugs: a questão é saber quais elementos desejados pelos eleitores serão enfim implementados e se o corte de gastos será feito às suas custas.

A CD Projekt Red prometeu, ao melhor estilo neoliberal, melhorias paulatinas para seu jogo de modo a recuperar a confiança dos fregueses. Até a data de publicação deste texto, o jogo permanece um exemplo de marketing eficiente e de design incompetente. Muitos já abandonaram o barco.

Biden, um neoliberal exemplar, subjugado por lobistas e marketeiros, provavelmente agirá de forma semelhante, de acordo com a típica agenda política democrata: lentas melhorias. Tal como ocorreu com Trump, ele conta com panfleteiros gratuitos, que comemoram a chegada da primeira mulher negra à Casa Branca, Kamala Harris (esse último ponto — como a política identitária está sendo usada para novamente popularizar e normalizar ideias perniciosas merece um texto à parte, com muitas citações de Stuart Hall) e, aparentemente, o fim de tudo que havia de ruim na América de Trump.

O marketing tem funcionado, mas o problema no design persiste: resta saber, agora, se já não é tarde demais para mudanças incrementais. Ou se já é game over.

Fernando Teixeira é mestre em Literatura pela Universidade Federal de Viçosa e criador da Aedo Serviços Editoriais. Contista e ensaísta ocasional, foca seu tempo ocioso na leitura e o não-ocioso na tradução e docência.

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