JANELA
Sentado à mesa,
o pai enviou para o filho, que marcou a irmã, que mandou para o namorado — o vizinho compartilhou com a vizinha, que mostrou para o marido e printou para o cunhado — a mãe, muito preocupada e cautelosa, perguntou no grupo das mães preocupadas e cautelosas: quem será?
Não demorou até que todos, apressadamente, por detrás das cortinas, constatassem que, de fato, era mesmo ali, ao pé de casa, que a confusão acontecia.
A gente liga para a polícia? Ninguém vai aparecer. Eles acharam que ninguém apareceria. A gente liga? Alguém já ligou, com certeza. Eles pensaram que alguém, certamente, já teria ligado.
Na certa, já ligaram!
O rebuliço cresceu e a gritaria, feito enxurrada, tomou cada parte da rua, como se a medida do berro e da sua raiva desse o tom, como se tudo que é som no mundo fizesse um silêncio profundo e a voz da mulher encorpada viesse,
de repente, do nada,
cobrindo, feito um clarão,
a calmaria costumeira da noite.
Isso que acabou de passar na sua história, está mesmo acontecendo, bonequinha? “Story”, mãe, ninguém chama de “história”. Está sim, tia, a moça furou a dona três vezes e saiu correndo. Jesus, Maria, José! Então, pois é, chamaram a ambulância. Já ligaram? O rapaz aqui do lado falou que sim. O sargento é primo da minha madrinha, galera, ninguém avisou sobre a ocorrência.
Pedindo por socorro, a mulher gritava — Acode! Ela dizia — e o chamado já lembrava um gargarejo e o berro, de pouco a pouco, já surdo, imitava um bocejo largo e agonizante, um clamor abafado que, no instante seguinte, parou.
O alarido sumiu e dois homens passaram pela calçada. Olharam, fotografaram, filmaram e disseram, apontando para uma sacada:
eles não fizeram nada!
Talvez, pelo avançado da hora, esperaram um pouco, mas foram embora com um conhecido que viera conferir o desfecho da balbúrdia.
Credo, gente, acabei de receber a filmagem, que coisa horrorosa. Recebi um áudio, parece que a moça está viva, o dono da padaria estava de carro, viu a perna mexendo. O dono da padaria viu — ou pensou ter visto — , pela janela do carro, um ou dois espasmos na perna. O corpo ainda está na porta?
Não sei, vou olhar.
Nenhum sinal de movimento, não se movia, e a multidão que, lá fora, nascia registrava o que a mulher não fazia deitada de bruços no vermelho encarnado. Alguns choravam, outras xingavam; alguns lamentavam e cantavam orações dos mais diversos tipos; outros, ao telefone, aflitos, repassavam o acontecido — enquanto alguns reprovavam a conduta dos outros e outros julgavam como indecorosas e, até mesmo, cruéis as atitudes de alguns.
Tiraram o corpo?
Espera, esqueci.
Menina, apaga isso da sua “história” (risos). Só dura 24 horas, tia, só fica mais tempo se for destaque. Parece que já levaram. Tem foto? A sobrinha da minha patroa mandou, ela trabalha no hospital. Chegou lá? Ainda não.
O pessoal do Movimento de União e Respeito aos Direitos Elementares da Rua e a SAB (Sociedade de Amigos do Bairro) soltaram uma nota de repúdio contra o senhor que, olhando pelo basculante, apareceu em algumas das fotos e, no fim das contas, não fez nada. Covarde! Afirmou, energicamente, o pai. O filho curtiu o comentário e a irmã do filho curtiu e comentou: #absurdo #desumano #horrorizada #maisatitude #cancelado.
Depois do jantar,
o pai lamentou, mais uma vez, no grupo da família, pela postagem com a foto da mulher, um corpo estirado no chão, coberto de sangue, com os olhos fixos no teto, e curtiu, na rede, os comentários anteriores, enquanto consultava, em outra janela, o resultado dos últimos jogos e as novidades da política nacional.