JANTAR EM FAMÍLIA

Lucca Tartaglia
ano II: ensaio
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3 min readApr 27, 2020

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Na escuridão,

o homem tateava as paredes da caverna, sussurrando, de quando em quando, o nome do pai. Há poucos dias, despertara com uma sensação estranha e tomara consciência, atônito, depois de alguns minutos, de que podia, a despeito de uma dor excruciante, mover o pescoço para os lados e que o rosto não tinha mais a textura de antes,

áspera, dura, estática, fria,

mas flácida e morna, um tanto frágil,

com alguns fios espalhados pela superfície.

Tentou acordar a família, mas todos dormiam

e profundamente

dormiam

e ninguém respondeu.

Conferiu, percorrendo a pele, o cordão que saia do estômago, estava suspenso, e os gestos — agora podia notar — não faziam mais nenhum barulho. Era difícil entender, mesmo depois da fuga, o porquê de tudo aquilo, por qual razão virara, naquele momento, as costas para o mundo, seguindo, temeroso e assustado, na direção oposta. Quem havia colocado as correntes e quando e para quê?

Eu nasci aqui. Ele pensou.

O jovem nascera na caverna, mas

e os pais dos seus pais e, antes disso,

os avós dos avós dos seus pais?

Aqueles que, durante o dia e pela noite a dentro, vigiavam o maquinário, por que estavam lá? O escuro parecia mais intenso e tudo havia desaparecido quando, por fim,

o pai respondeu.

Aqui, Filho! Ele disse

surpreso

e pensou que rapaz não podia mais ver.

Estamos aqui. O que aconteceu com o seu rosto? O irmão e a mãe responderam e o pai, novamente, respondeu e, com alguma dificuldade, o jovem alcançou, de mãos abertas, o rosto da criança e tocou, pelos orifícios da máscara, os olhinhos e a boca do irmão.

Por que você ficou em silêncio? Nós chamamos e gritamos e você desapareceu. O jovem, confuso, não sabia como explicar o inexplicável e começou a contar, da melhor forma que pode, o que havia descoberto.

Porém

– porque, depois da luz, estava cego –

não percebera que o medo crescia na família, que os pais, ao ver o caminhar desalinhado, livre dos limites impostos pelas amarras de sempre, e a feição desfigurada sem a carapaça de ferro, estavam receosos e apreensivos,

e que o irmão, preso num misto de agitação e ansiedade, começava a chorar baixinho por sob a casca sólida que cobria boa parte da cabeça.

E a história cresceu e cresceu

o espanto

E tudo começou a se alargar

até que, do silêncio costumeiro, nasceu um berro sem amparo — que não, que não, bradava o pai, enquanto a mãe murmurava uma sentença quase inaudita. Assustado e percebendo que o irmão chorava, aproximou-se para vê-lo e, num impulso, repetiu o movimento que havia aprendido há pouco, entrelaçando os braços nas costas do menino e deitando, sobre o ombro diminuto, que já sustentava o peso dos grilhões, a sua cabeça descoberta.

Sentiu as feições do pai se contorcerem nos berros

e, no burburinho da mãe, as entranhas darem um nó.

A criança, perdida e aflita,

inquieta na magreza da sua idade,

para a surpresa do jovem, arrancou,

com os dentes ainda pequeninos,

um generoso pedaço do irmão.

Somou-se ao rumorejo das vozes o susto daquela bocada e, num ato de loucura e delírio, entre soluços e gritos, engasgos e lágrimas, devoraram cada pedaço de cada membro, esticando as correntes até o limite, ferindo e dilacerando, numa ebulição repentina, cheia de som e de fúria,

a própria carne.

Por muitas vezes,

regurgitaram e voltaram a engolir e a vomitar,

morderam e cuspiram e tornaram a morder, por muitas vezes,

até não sobrar mais nada, até que tudo regressasse ao silêncio e, no meio do que se apagava, apenas o ruído e o eco dos elos de ferro

aparecessem

na escuridão.

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Lucca Tartaglia
ano II: ensaio

Escrevinhador e colaborador das revistas FORPROLL, Contemporartes e Ano I: Ensaios.