JANTAR EM FAMÍLIA
Na escuridão,
o homem tateava as paredes da caverna, sussurrando, de quando em quando, o nome do pai. Há poucos dias, despertara com uma sensação estranha e tomara consciência, atônito, depois de alguns minutos, de que podia, a despeito de uma dor excruciante, mover o pescoço para os lados e que o rosto não tinha mais a textura de antes,
áspera, dura, estática, fria,
mas flácida e morna, um tanto frágil,
com alguns fios espalhados pela superfície.
Tentou acordar a família, mas todos dormiam
e profundamente
dormiam
e ninguém respondeu.
Conferiu, percorrendo a pele, o cordão que saia do estômago, estava suspenso, e os gestos — agora podia notar — não faziam mais nenhum barulho. Era difícil entender, mesmo depois da fuga, o porquê de tudo aquilo, por qual razão virara, naquele momento, as costas para o mundo, seguindo, temeroso e assustado, na direção oposta. Quem havia colocado as correntes e quando e para quê?
Eu nasci aqui. Ele pensou.
O jovem nascera na caverna, mas
e os pais dos seus pais e, antes disso,
os avós dos avós dos seus pais?
Aqueles que, durante o dia e pela noite a dentro, vigiavam o maquinário, por que estavam lá? O escuro parecia mais intenso e tudo havia desaparecido quando, por fim,
o pai respondeu.
Aqui, Filho! Ele disse
surpreso
e pensou que rapaz não podia mais ver.
Estamos aqui. O que aconteceu com o seu rosto? O irmão e a mãe responderam e o pai, novamente, respondeu e, com alguma dificuldade, o jovem alcançou, de mãos abertas, o rosto da criança e tocou, pelos orifícios da máscara, os olhinhos e a boca do irmão.
Por que você ficou em silêncio? Nós chamamos e gritamos e você desapareceu. O jovem, confuso, não sabia como explicar o inexplicável e começou a contar, da melhor forma que pode, o que havia descoberto.
Porém
– porque, depois da luz, estava cego –
não percebera que o medo crescia na família, que os pais, ao ver o caminhar desalinhado, livre dos limites impostos pelas amarras de sempre, e a feição desfigurada sem a carapaça de ferro, estavam receosos e apreensivos,
e que o irmão, preso num misto de agitação e ansiedade, começava a chorar baixinho por sob a casca sólida que cobria boa parte da cabeça.
E a história cresceu e cresceu
o espanto
E tudo começou a se alargar
até que, do silêncio costumeiro, nasceu um berro sem amparo — que não, que não, bradava o pai, enquanto a mãe murmurava uma sentença quase inaudita. Assustado e percebendo que o irmão chorava, aproximou-se para vê-lo e, num impulso, repetiu o movimento que havia aprendido há pouco, entrelaçando os braços nas costas do menino e deitando, sobre o ombro diminuto, que já sustentava o peso dos grilhões, a sua cabeça descoberta.
Sentiu as feições do pai se contorcerem nos berros
e, no burburinho da mãe, as entranhas darem um nó.
A criança, perdida e aflita,
inquieta na magreza da sua idade,
para a surpresa do jovem, arrancou,
com os dentes ainda pequeninos,
um generoso pedaço do irmão.
Somou-se ao rumorejo das vozes o susto daquela bocada e, num ato de loucura e delírio, entre soluços e gritos, engasgos e lágrimas, devoraram cada pedaço de cada membro, esticando as correntes até o limite, ferindo e dilacerando, numa ebulição repentina, cheia de som e de fúria,
a própria carne.
Por muitas vezes,
regurgitaram e voltaram a engolir e a vomitar,
morderam e cuspiram e tornaram a morder, por muitas vezes,
até não sobrar mais nada, até que tudo regressasse ao silêncio e, no meio do que se apagava, apenas o ruído e o eco dos elos de ferro
aparecessem
na escuridão.