NÃO MÃE

Por Carla Guerson

ano II: ensaio
ano II: ensaio
3 min readNov 26, 2021

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Fui eu doutor, fui eu sim. Sou eu a moça que ta nesse vídeo. Fui eu quem botou o menino na bolsa e levou pra lá.

Se eu tenho vergonha? Eu tenho vergonha, claro que eu tenho. Eu tô arrependida sim. Mas agora num tem mais jeito.

Não é isso não, isso que você tá dizendo aí. Que não amo meu filho. Eu tenho quatro filho, doutor, e eu amo muito eles. Na verdade eu tenho cinco né. Eu tive. Eu não sei esse, acho que não pode mais ser meu filho, o doutor não vai deixar, agora não mais. Mas eu amo meus 4 filho e eu cuido deles e alimento eles e não falta nada praqueles menino. Eu não sou má pessoa não, eu cuido dos meus filho direitinho.

O que que eu tava pensando, eu acho que eu não tava pensando é nada. Eu não sabia o que fazer, eu só fui lá e fiz. Eu não podia ter mais um menino pra criar, eu não sabia como chegar em casa, como contar pra gente da minha casa que ia ter mais uma boca. Como que eu ia chegar em casa com mais um menino? Eu não sabia. Eu não pensei em nada.

Ninguém sabia não, que eu tava grávida. Eu não contei pra ninguém. Eu sabia sim, uai, claro que eu sabia. Eu não pensava nisso, mas eu sabia sim, eu só não sabia como ia ser na hora que nascesse. Ele tinha acabado de nascer na hora que eu pus ele na bolsa. Que hospital? Não teve hospital. Eu tive o menino na casa da patroa, eu tava lá quando ele nasceu, ninguém viu, eu tava sozinha. Ele nasceu e eu nem olhei, eu fiquei sem saber o que fazer, eu botei o menino no peito até parar de chorar, cortei o cordão com a tesoura que tinha no banheiro. Depois enrolei ele na toalha e coloquei na bolsa. Não tava com roupinha porque ele não tinha roupinha, doutor, ele não era pra ser.

Eu já tinha tirado as trompa. Eu não queria mais ter bebê. Eu já tenho quatro filhos, doutor, o senhor sabe o que é isso? E sou mãe solteira. Eu tinha tirado as trompa, não tenho como criar mais um, eu só sabia que eu não podia mais ter filho, então eu não sei como foi que aconteceu, mas aconteceu. Não contei pro pai, porque não tem pai, é um homi que eu conheci na rua, não vai querer criar filho que não era pra ser. Eu sou mulher, né, eu não tive como escolher.

Eu não tenho nada pra dizer em minha defesa não. Como é que vou dizer alguma coisa? Eu fiz errado, como é que uma mãe faz uma coisa dessa com um filho? Como é que uma mãe pode largar um filho dentro de uma sacola? Não pode. Eu sei que não pode. Eu sei que eu tô errada, não precisa me dizer. Tô arrependida, é claro. Eu sei que não tem volta, mas eu tô arrependida.

Foi um impulso, foi algo que eu tive nesse momento de nervoso, de angústia, de muito choro. Chegou a hora do menino nascer e eu não tinha pensado em nada ainda. Se eu pudesse eu voltava atrás, com certeza. O que eu tiver que pagar, eu vou pagar pra justiça, eu sei que eu vou.

Isso que esse pessoal tá falando, que eu não tenho coração, que joguei fora meu bebê, não é nada disso não, eu não quis fazer isso. Eu não sou um monstro, seu doutor. Eu deixei na rua porque passa gente ali toda hora, eu queria que alguém achasse ele. Eu não queria matar meu filho. Eu só não sabia o que fazer.

Eu não sei por que eu fiz isso. Não sei o que deu em mim. Eu só sei que não tem coisa no mundo mais importante que mãe, que o sentimento que mãe tem pelo filho, não é?

Meu nome é Carla Guerson, sou feminista, escritora, geminiana, mãe, leitora compulsiva e uma apaixonada por histórias e estórias. Gosto de conversar, de ler e de escrever, não necessariamente nessa ordem. Desde a infância me encontro tecendo narrativas que se misturam à minha própria vida e daqueles me cercam. Sou apaixonada pela narrativa e acredito que a literatura há de nos salvar, enquanto humanidade. Enquanto houver palavra, há esperança.

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A revista literária ano II: ensaio se apresenta como o meio de expressão de um coletivo de escritores, críticos e poetas que se utiliza das bases ambíguas, experimentais e críticas da linguagem ensaística a fim de ensaiar com a palavra literária.