O leme da leitura
Por Andreas Chamorro
O mestre escolhe o discípulo, mas o livro não escolhe seus leitores, (…)
Do culto dos livrosO que denuncio em nossa cultura é a monstruosa hipertrofia de algumas possibilidades humanas (a razão, por exemplo) em detrimento de outras, menos definíveis por estarem situadas justamente à margem da órbita racional.
Julio Cortázar, de uma carta a Graciela de Sola, 7 de janeiro de 1964
Na Bienal do ano de 2023, um booktuber, cujo nome não me foi dito, tropeçou no pé de uma mesa que exibia uma centena de livros: três dezenas ali eram livros escrito por youtubers, uma dezena de auto-ajuda, duas de biografias não autorizadas, e cinco de literatura herdada dos anos das memórias. Alessandra, fidedigna da descrição anterior, sentada em um banco próximo do ocorrido, lia um ensaio de Sílvio Romero. Seu olhar fixou-se imediatamente no adolescente caído, ela me disse. Por empatia, curiosidade ou um ímpeto altruísta, acabou ajudando o booktuber a se levantar; foi neste exato momento que o cotovelo deste, num movimento mal calculado, esbarrou num box da História da Literatura Ocidental de Carpeaux. Os volumes em cores sortidas se espalharam pelo carpete. Alessandra também ajudou o desastrado a juntar os livros; disse-me que a vendedora dardejou o booktuber com um olhar tão inflamado que jurava que poderia ler os xingamentos em sua tez. Assim que Alessandra pegou o quinto volume do chão, um bilhete em papel pautado escorregou em suas mãos. Exibia a seguinte informação: No stand da Cia das Letras, dentro do sexto exemplar de Mutações da literatura no século XXI de Leyla Perrone-Moisés encontrará um manuscrito.
Quando Alessandra me contou esta anedota, na tarde de 23 de abril deste ano, eu a acusei de estar zombando; afirmei o teor borgeano de sua aventura e, sinceramente, acabei não acreditando. Contudo, Alessandra sacou o manuscrito da pasta.
Transcrevo-o literalmente:
Quero contar como salvei a leitura em meu país, mas, primeiro devo apresentar a vocês a grande figura de Araripe, meu melhor amigo. Sem ele não teria chegado ao cume da lucidez literária.
Conheci Araripe por volta de 2008, quando fui a primeira vez no Theatro. Esta instituição fundada em 4 de fevereiro de 2005 chamava a atenção a cada dia; o motivo era compreensível: toda semana, atores de diversas idades subiam ao palco e apresentavam curtos solilóquios. A despeito da exposição, eram confiantes desde o início. Ademais, a plateia jamais era vista; do palco, os atores apenas veriam espectros nas poltronas, como se estivessem a falar para o vazio. No fim de cada uma das apresentações, os espectadores, se vontade fosse, poderiam escrever alguns comentários em pequenos cartões e jogar em direção ao palco, dessa forma, os atores confirmariam a qualidade ou não de suas apresentações. Quando me interessei pela apresentação de Araripe, os atores ainda eram pobres solitários que usavam da oportunidade para se comunicar de alguma maneira, os que mais lotavam o Theatro eram os comediantes — ainda hoje se escuta falar de Felipe Neto, dizem as más línguas que ele se tornara uma pessoa poderosa -, e foi precisamente por este motivo que me interessei por Araripe, ele falava sobre livros em seus solilóquios.
No início, talvez pela timidez, Araripe era efêmero, mostrava três ou quatro livros que havia lido e comentava brevemente. Nos dois anos que se seguiram, o interesse por suas ponderações aumentou drasticamente. Araripe ainda não conseguia lotar o Theatro mas, para alguém que falava de literatura, o número denotava algo que estava para acontecer. Algumas décadas antes do Theatro ser inaugurado, este tipo de público (como eu e aquelas centenas de pessoas) consumiam as falas dos conhecidos críticos literários; como as apresentações do Theatro cresciam, tal público tratou de ir atrás daqueles que falavam sobre livros. Os ponteiros acertaram em cheio, e graças à essa procura, Araripe se tornou o leme da leitura.
Em junho de 2012, Araripe se viu em uma primeira rusga. Nesses tempos, os atores já não eram os mesmos: o Theatro agora os compensava financeiramente, pois, nos interlúdios, alguns representantes comerciais apresentavam propagandas. Os atores já não eram mais denominados dessa maneira, agora chamávamos-os de entusiastas. Todos os dias, era possível assistir a um solilóquio sob praticamente qualquer signo: maquiagem, cabelos, fofocas, brigas, quedas, notícias, gatos, rios, ponto-morto, colinas, piscinas, manufaturas, artesanatos, culinária vegana, culinária para bonecas, cópias de outras culinárias, galáxias, teoria da relatividade, mentiras, musicalidade, qualidade de timbre, histórias de terror, filosofia, experimentos, acidentes de automóveis, bebidas alcóolicas, saúde, tarô, neófitos em milhares de crenças, até mesmo aulas de como ser um bom entusiasta. A grande maioria desses “novos famosos” recebiam produtos para que pudessem exibir no momento do palco — geralmente o público ia atrás do produto divulgado. Neste ano também, algumas editoras começaram a enviar livros para Araripe, na esperança de que este fizesse um comentário animado a respeito da obra. Naquele mês, porém, nosso amigo fizera um comentário negativo a respeito de uma tradução. O público rachara ao meio: uns depreciavam a atitude, outros (eu incluso) acabaram se admirando de Araripe por conta de sua sinceridade.
Então veio o momento em que os discípulos de Araripe surgiram. Nos cinco anos seguintes, centenas de entusiastas literários foram nascendo, e o público cada vez mais se distanciava dos livros de qualidade. Araripe sempre enxergara a literatura como a enologia, ora, aquele que estava acostumado com um vinho chileno ou francês, não perderia tempo experimentando um vinho de mesa; ele compartilhara a tal analogia comigo numa conversa que tivemos na biblioteca, afirmou ter lido num conto perdido de Borges. Eu mesmo prefiro a analogia do jogo: aquele que lê boa literatura é como um jogador de xadrez, ele até sabe que existe a dama mas por quê jogaria? Sabendo da facilidade do processo.
Araripe se tornou um lobo solitário, por mais que sua platéia continuava das maiores, os outros entusiastas não gostavam: reclamavam de livros cujos parágrafos duravam dez páginas, em seus solilóquios, objetificavam o livro, não seguiam uma coesão na hora de escolher suas leituras, apenas liam e guardavam de volta à estante, a releitura era rara. Comportamentos esses que se resolveriam com uma leitura de Schoupenhauer ou Calvino.
Minha primeira conversa com Araripe se deu em 2016, num café. Eu me apresentei e revelei que escrevia, Araripe desabafou algumas angústias a cerca do entusiasmo literário: “Eu percebi que a coisa era séria quando passei numa livraria e Ulisses estava sendo exibido na vitrine. Eu havia comentado essa obra no Theatro algumas semanas antes. Foi nesse dia que percebi minha responsabilidade, as pessoas procuravam o que eu recomendava.” Aproveitei o ensejo e também confessei que meu intuito como escritor era combater os neo-entusiastas, principalmente aqueles insossos e os que se vendiam. Contei-lhe a história de um entusiasta que acabara sendo publicado por conta da fama; a obra, escrita por um ghostwriter.
No fim do dia, enquanto flanávamos em um parque, eu e Araripe decidimos fazer um pacto. De minha parte, escreveria romances e ensaios à guisa de tentar salvar a leitura de qualidade, enquanto Araripe usaria de sua influência para criar um movimento literário divulgando estes meus escritos. De fato, nos anos seguintes conseguimos muita coisa. Nos aproximávamos do centenário da Semana de Arte Moderna, portanto, seria entendível uma réplica daqueles que não concordavam com a banalização da literatura (uma vez, um crítico literário publicou um artigo em A Estilha, tentando abrir um debate saudável sobre o assunto “entusiastas”; foi recebido com críticas escatológicas sem nenhum tipo de argumento). Surgiu então o retroatavismo, movimento iniciado por mim cujas características se davam pelo prezar da estética, a abordagem de temas contemporâneos usando de técnicas (atavismo) que aprendemos com a leitura de nossos precursores, a redação de obras cuja releitura seria estritamente necessária, dentre outras. Ricardo Hiago, autor de um romance satírico disse uma vez: “Estamos produzindo estas obras para que os grandes escritores do século XXI apareçam. Desde os anos de chumbo ouvimos o boato de que a cultura no Brasil explodiria e, até agora, não vimos nada. Onde estará o Guimarães Rosa deste século? Aposto que está entre os retroatavistas.”
Conseguimos alguma coisa e, associo tal eficiência ao movimento contrário que fizemos. Antes do retroatavismo surgir, a literatura nacional que mais lida era literatura engajada, o mais certo era que nós também escrevêssemos com teor político (vide o ultraísmo da década de 20, na Argentina), isso até aconteceu, afinal, a partir do momento em que falaríamos do contemporâneo através do jeito dos antigos (que nem era tão antigo, qualquer fluxo de consciência em minha década não seria novidade), não escaparíamos dos problemas políticos, todavia, envernizamos tais motes com literatura de qualidade, por vezes complexa, por vezes poética, por vezes hermética. Desta forma, conquistamos os leitores engajados que somente dependiam dos palatáveis e mastigados romances contemporâneos escritos por entusiastas e, fizemos com que seus pensamentos transformassem-se em pensamentos críticos; no ofício da escrita também obtivemos sucesso: as réplicas. Quando Ulisses fora publicado, tivemos uma réplica impressionante: Mrs. Dalloway. O fenômeno se repetiu graças aos escritores do retroatavismo; os mais herméticos entre nós tiveram réplicas vindas de escritores do lado oposto, mas que também estavam escrevendo de maneira belíssima.
Agora, refletindo sobre estas minhas reminiscências, me veio à mente o fato de que sem a ajuda de Araripe, eu e os retroatavistas nada teríamos conseguido. Os tempos modernos haviam arrancado o crítico literário do leme da leitura, substituindo-o pelo entusiasta literário; isso aumentou o burburinho, a comunidade literária não seguia uma mesma voz. Somente quando Araripe se conscientizou de seu poder foi que conseguiu girar o leme numa direção que fomentasse o pensamento crítico, despertando a intelectualidade necessária no país cuja leitura era a última das atividades.
Meu nome Andreas Chamorro, paulistano e um praticante do lema pessoano: “Navegar é preciso.” O que sei fazer é literatura, ademais, para mim, a literatura é a Babel das disciplinas; sendo literatura a única coisa que sei fazer, então, eu saberei fazer tudo pois ela contém todas as horas. Literário demais? Pois bem, avante ao currículo. Para um escritor, homem de humanas, tabagista como eu é fácil de se adivinhar: sou professor de inglês há onze anos, nestes tempos de pandemia venho dando aulas particulares pelo Zoom e traduzindo para a renda ser mais ainda aprazível.