O problema da literatura como sistema

Por Lucca Tartaglia

ano II: ensaio
ano II: ensaio
8 min readMay 6, 2021

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Este vago, estreito — e brevíssimo –, ensaio é o início formal de uma longa conversa, que começou há muitos anos, acerca do “problema da literatura como sistema”. Antes de qualquer coisa, talvez seja preciso esclarecer, na medida do impossível, o que digo quando falo (ou escrevo) “problema”. Não quero, com a escolha da palavra, desabonar qualquer linha de pensamento, nem definir um autor ou uma obra como alguém ou algo a ser combatido a qualquer custo, mas, sim, levantar um ponto de reflexão, algo sobre o qual se possa ponderar, questionar, problematizar. De acordo com o Dicionário de Filosofia — e acato tal definição –, “problema” pode ser entendido, de maneira geral, como “qualquer situação que inclua a possibilidade de uma alternativa”. Não é mais do que isso, pois, o que tentamos estabelecer: um caminho alternativo. Em uma época como a nossa, não custa muito entrar em detalhes para evitar tropeços antes mesmo do embarque, não é? Bom, quanto à “literatura como sistema” — para certos grupos, será uma ponte clara –, refiro-me ao conceito de Antonio Candido — um dos maiores nomes da crítica nacional –, em Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, publicado, pela primeira vez, no ano de 1959. Não intenciono, de maneira nenhuma, invalidar ou depreciar a visão desse que foi e tem sido — por querência ou a despeito da vontade –, um “norte” no meu processo formativo — pois, nessa matéria, quase tudo depende do ponto de vista –, mas “espero mostrar a viabilidade” da minha perspectiva — ou, pelo menos, começar a fazer isso. Portanto, o que apresento aqui é uma crítica, mas é também uma homenagem — as duas coisas podem conviver muito bem juntas.

Antonio Candido. Fonte: ComCiência — Revista eletrônica de jornalismo científico.

Convém salientar, logo de saída, o que Candido defende como sendo, no contexto de seu referido livro, a “literatura propriamente dita”:

(…) um sistema de obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas dominantes duma fase. Estes denominadores comuns são, além de características internas, (língua, temas, imagens), certos elementos de natureza social e psíquica, embora literariamente organizados, que se manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto orgânico da civilização. Entre eles se distinguem: a existência de um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive; um mecanismo transmissor, (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns a outros. O conjunto dos três elementos dá lugar a um tipo de comunicação inter-humana, a literatura, que aparece sob este ângulo como sistema simbólico, por meio do qual as veleidades mais profundas do indivíduo se transformam em elementos de contato entre os homens, e de interpretação das diferentes esferas da realidade. (CANDIDO, 2000, p. 23)

Vale dizer que o conceito candidiano — fechado, stricto sensu, nas especificidades da obra e de raiz eurocêntrica –, pensa a “literatura” presa à littera, à letra escrita. O próprio uspiano, em “O direito a literatura”, apontará para uma ideia mais abrangente — uma ideia que, inclusive, favorece o que pretendemos apontar:

Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis de produção escrita das grandes civilizações. (CANDIDO, 2011, p. 176)

Reside, na “ampliação” do conceito, a pista — para dizer o mínimo –, de que a “literatura” surgiu muito antes de aparecer, ou seja, de que — sem perder de vista o caráter não-universal da experiência estética e a variação contextual (espaciotemporal) do que consideramos ou não arte –, muitos nomes foram dados às diferentes manifestações do que, provavelmente, é um fenômeno humano. Por isso — ou melhor, também por isso –, chamo de literatura, nessa conversa rápida, fazendo coro, mais ou menos, com Candido, um conjunto “de obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas dominantes duma fase”, pertencentes a culturas ágrafas ou gráficas, que tenham adotado ou não um sistema de escrita. No que se refere à definição dos “denominadores comuns”, precisamos nos perguntar: comuns à qual comunidade ou a quais comunidades? Comuns entre os membros de qual “unidade comum”? A respeito das “características internas” (língua, temas, imagens), o Brasil, atualmente, de acordo com o censo de 2010 do IBGE — depois de seculares guerras e do extermínio em massa –, conta com “274 línguas indígenas faladas por indivíduos pertencentes a 305 etnias diferentes” — (IBGE, online) todas com culturas diferentes, ricas em suas tramas e leituras do mundo . Sem falar das línguas de matriz africana em território brasileiro e as produções orais que frutificaram das muitas experiências ligadas à escravização e (re)existência, como o quicongo, o quimbundo e o umbundo. De qual língua estamos falando? Os temas e as imagens, os “elementos de natureza social e psíquica”, o imaginário sociodiscursivo, ligam-se a qual ideia e/ou a qual parcela da sociedade? Organização literária dada a tudo isso atende a quais parâmetros estéticos? Agrada ou desagrada a quem? Devemos levantar essas questões e, observando os “denominadores” que se “manifestam historicamente” e que fazem “da literatura aspecto orgânico da civilização”, voltar os olhos para os aspectos orgânicos da barbárie, uma vez que, pensando a partir de Edgar Morin, a “barbárie não é apenas um elemento que acompanha a civilização, ela é uma de suas partes integrantes. A civilização produz barbárie, e, principalmente, ela produz conquista e dominação” (MORIN, 2009, p. 17). A centralidade do “sistema literário” reconhecido como “literatura brasileira” inaugurou e segue inaugurando fronteiras. A “mitogênese” da nossa literatura, alicerçada pelo conceito candidiano, contribuiu e contribui, fortemente, para definir as produções que são/ serão marginalizadas e as que permanecem/ permanecerão para além das margens.

Brasil. Fonte: Wikipédia, a enciclopédia livre.

O Brasil, em suas profundas, variadas e profícuas complexidades (social, cultural, histórica, econômica, etc), carrega e carregou, desde há muitos anos, “um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel”, que são e foram ignorados; “um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive”, que ficam e ficaram à sombra; “um mecanismo transmissor, (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos)”, ameaçado, muitas vezes, de extinção. O desaparecimento de alguns “sistemas literários”, por inanição — por terem sido privados de elementos vitais à manutenção de sua “existência” –, deixados à deriva revelam verdadeiros epstemicídios — uma vez que consideramos a literatura (e as artes de maneira geral) como uma forma de conhecimento do mundo. A “comunicação inter-humana”, que se estabelece através dos “denominadores comuns”, é também, sob outra perspectiva, uma demonstração da violência inter-humana, do apagamento, do silenciamento de certos grupos que não têm como “comuns”, em suas comunidades, tais “denominadores”. Essa “comunicação”, enquanto “sistema simbólico” e “de interpretação das diferentes esferas da realidade”, tem os pés fincados num solo específico que não deve ser ignorado quando refletimos acerca da literatura brasileira e, tanto mais, quando pensamos a respeito da literatura brasileira moderna e contemporânea. Ainda no capítulo sobre a “Literatura como sistema”, Candido aponta:

Quando a atividade dos escritores de um dado período se integra em tal sistema, ocorre outro elemento decisivo: a formação da continuidade literária — espécie de transmissão da tocha entre corredores, que assegura no tempo o movimento conjunto, definindo os lineamentos de um todo. É uma tradição, no sentido completo do termo, isto é, transmissão de algo entre os homens, e o conjunto de elementos transmitidos, formando padrões que se impõem ao pensamento ou ao comportamento, e aos quais somos obrigados a nos referir, para aceitar ou rejeitar. Sem esta tradição não há literatura, como fenômeno de civilização. (CANDIDO, 2000, p. 24)

Na mesma linha, quando a atividade dos escritores — e deixamos, nessa lida, de considerar produções não escritas –, não se integra em tal “sistema”, vinculando-se a outro “sistema” ou a uma rede, “ocorre outro elemento decisivo”, que não é apenas importante, mas determinante: a instauração da descontinuidade literária. Na pista de corrida, apenas os corredores de uma raia têm permissão para seguir e as demais tochas, caídas pelo caminho, sem ninguém que as conduza, sem um portador, terminam por apagar, por serem consumidas pelo tempo. Os atletas da raia eleita, assegurando “no tempo o movimento conjunto”, definem “os lineamentos de um todo” parcial.

Raia única. Fonte: sites.google.com.

Com as outras raias abandonadas, o matagal toma conta e, depois de algum tempo, aquilo, que, no fundo, é parte, parece, à vista, tudo. O que morre nesse processo, vítima da barbárie, da violação, é uma tradição, “no sentido completo do tempo”, pois cessa uma “transmissão de algo entre os homens”. “Sem esta tradição não há literatura”, nem como “fenômeno de civilização”, nem como fenômeno humano. Com tudo isso, volto a dizer, não queremos desencorajar a leitura da obra ou de um livro específico do gigante — gigantesco –, Antonio Candido, mas apontar um “problema”, uma via outra, um caminho eletivo, voluntário, mas — a meu ver –, necessário. Não fosse pela Formação da literatura brasileira, sabe-se lá o que discutiríamos hoje. Não se trata, portanto, de reduzir ou apagar esse marco da história da crítica literatura no Brasil, mas de acender o pavio da problemática para enriquecer e ascender a discussão.

Para finalizar, antes que o “vago, estreito e brevíssimo” se torne qualquer outra coisa, deixo aqui mais um ponto para seguirmos refletindo depois das palavras. Candido, em sua interpretação, afirma que “é com os chamados árcades mineiros, as últimas academias e certos intelectuais ilustrados, que surgem homens de letras formando conjuntos orgânicos e manifestando em graus variáveis a vontade de fazer literatura brasileira. Tais homens foram considerados fundadores pelos que os sucederam, estabelecendo-se deste modo uma tradição contínua de estilos, temas, formas ou preocupações” (CANDIDO, 2000, p. 24–25). Reflitamos: quem eram esses “homens de letras” e quem eram os homens, os sucessores, que consideraram esses “homens de letras” como fundadores? Para mais informações, leiam a Formação de Antonio Candido.

REFERÊNCIAS:

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2000.

CANDIDO, Antonio. “O direito à literatura”. In: ______. Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011.

MORIN, Edgar. Cultura e barbárie europeias. Trad. Daniela Cerdeira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.

IBGE. Estudos especiais: o Brasil Indígena — língua falada. Disponível em: https://indigenas.ibge.gov.br/estudos-especiais-3/o-brasil-indigena/lingua-falada#:~:text=Os%20resultados%20do%20Censo%202010,estimativas%20iniciais%20feitas%20pela%20FUNAI. Acesso em: 13 abr. 2021.

A princípio, Lucca Tartaglia é professor, graduado em Letras, pela Universidade Federal de Viçosa, mestre em Estudos literários, pela mesma instituição, e doutor em Letras Vernáculas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atua como co-editor e colaborador das revistas FORPROLL, Contemporartes e ano II.

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