Poemas de cadernos antigos

Laura Redfern Navarro
ano II: ensaio
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4 min readJul 21, 2020

Nos últimos dias, enquanto tirava as caixas da mudança que ainda não foram totalmente esvaziadas do meu quarto, encontrei um caderno de poesia que datava do ano de 2019. Não fazia muito tempo, mas eu havia mudado radicalmente desde então. Meus escritos, naquela época, eram menos expostos, mais secretivos. Às vezes sinto falta desse movimento de manter o que lapido a mim durante um certo período de tempo. Como uma flor em maturação. Em pandemia, porém, choco-me — é impossível não estar em contato durante vinte e quatro horas ao dia.

A minha poesia, à época, era recheada de ecos e silêncios que, apesar de eu ter achado muito astutos até então, hoje em dia eles parecem ter mudado o significado. Gosto dos cadernos porque eles nos acompanham mesmo que seus escritos, não. E também porque a voz permanece a mesma. A caligrafia muda. É interessante observar o movimento e ler aquelas coisas em voz alta, coisas que às vezes são obras primas e em outras, são ridículas.

Costumo achar que, antigamente, eu escrevia melhor. Não melhor, mas de forma mais pura e mais intimista, com menos refinamento e mais originalidade. Acho que é balela. Em 2019, eu ainda não tinha feito da poesia um modo de viver, apenas o mantinha como desabafo. Isto é, apesar de ser uma autora publicada desde já. As minhas contradições começam na raiz. Mas a verdade é que eu escrevia com o coração, era uma mulher desprovida de referências, alguém adentrando um campo de girassóis sem conhecer Orides Fontela, por exemplo.

Acabo pensando que as falhas sempre vão e vêm, que estamos destinados a escrever e a criticar. Eu vejo muito isso em Sylvia Plath, uma grande poeta que, em seus diários, revelava uma insegurança que transbordava. Hoje, acho que escrevo bem, e quero revisar os poemas malditos-simbolistas da Laura de cabelos cor de vinho tinto (sim, eu tinha os cabelos dessa cor) com os olhos ácidos de quem leu Maya Angelou, Sophia de Mello Breyner Andersen, Clarice Lispector e Matilde Campilho. Mas, ao mesmo tempo, como quem sente falta de fazer anotações como se estivesse montada num cavalo prestes a cair. Como se eu fosse Amy Winehouse com menos de um quinto de seu talento enquanto escrevia Back to Black, mais precisamente.

Fiz uma pequena seleção com base nos que mais me chamaram a atenção, e aí está. Voa, poema!

GÉLIDO (7/7/2019)

O vento se esgueira, uivando

dias que parecem durar

a eternidade, nuvens brancas

cor da paz? Silêncio

sem pombas

ao céu

.

o vento gélido conduz

pequenos lapsos bucólicos invernais

cheiro de grama

gosma infértil

.

a menina sardenta

sai de dentro do armário

amanhece, pequenos flocos

do céu

que caem, devo apanhá-los

aos poucos

SEM TÍTULO (14/7/2019)

Viajo

Milhares de milhas

verde à minha frente

tempo que se passou

uma lâmpada para ser rebobinada

que percorre os vincos do cérebro

tortura

aos poucos

neurose da atualidade

ÁGUA VIVA (7/8/2019, com edição do Rafael Tahan)

Mover as mãos sob o espelho

da beleza angustiante

gelada ou

histérica? Não:

a ponto de queimar alguém

ou de se queimar

questão de retroatividade

.

É preciso tolher as lentes

polir a fim de tatear o mundo

com maior facilidade

NARCISO (20/6/2019)

O homem que caça borboletas

também as esfola no asfalto

Desgosto do lago

que reflete ondas de si

e não a si próprio

é preciso destruir o que há de belo

no mundo

TAROT (5/10/2019)

Para Anna Clara de Vitto

.

O incenso aceso incendiado de

fumaça azul oblíqua e dissimulada

-azul que não se come

se aspira

cheiro do ópio-

.

Tiro as cartas com duas

facas em minhas mãos

que sangram o sangue de

todas as minhas indecisas veias

loucas para tomar partido

.

A Morte, ou a fuga

uma grande piada, diriam

vou atirar os meus Enamorados

ao mar e à indócil densa

água das garrafas de vodka

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Laura Redfern Navarro
ano II: ensaio

2000. Aquariana, poeta e jornalista. Escrevo sobre livros, mulheres e escrita criativa. Sou autora de "O Corpo de Laura" (2023), projeto vencedor do ProAC 2022.