Porque eu não leio literatura (contemporânea) brasileira

ano II: ensaio
ano II: ensaio
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4 min readApr 26, 2021

Suponho que você, leitor (um leitor antenado à nossa literatura e que, inclusive, possa muito bem se sentir parte dela), possa ter chegado nesse texto com sangue nos olhos a fim de esmiuçar os meus argumentos e tentar me diminuir em algum comentário no twitter pela afirmação que dá título a esse texto. Eu gostaria, leitor, que você tenha um pouco de calma agora (respire fundo) e entenda que esse texto, polêmico por natureza, não parte de um lugar reacionário e tradicionalista a la Harold Bloom ou George Steiner. Não. O lugar do qual me ponho a escrever essa diatribe vem de quem foi a FLIPs, Bienais do Livro (de São Paulo e do Rio), conheceu outros escritores, leu outros escritores (relevou os seu defeitos, exaltou as qualidades), dialogou com revistas, publicou e de quem, algum dia, amou ingenuamente isso que acreditei ser uma comunidade.

Com a experiência dos anos, contudo, essa ilusão de comunidade - sustentada pela noção de uma literatura de qualidade e determinada a “matar o Pai” com uma produção nova, refrescante e ousada dos contemporâneos - foi se desvanecendo quanto mais conhecia o backstage e as aporias dessa instituição que chamamos de Literatura Brasileira.

Mas o que seria a Literatura Brasileira?

Em Formação da literatura brasileira, originalmente publicado em 1959, o crítico Antonio Candido define um de seus conceitos mais propagados através das letras nacionais quando “concebe a literatura como integração de autores, obras e público em um sistema articulado e não mais como uma pluralidade aleatória — ainda que cronologicamente próxima — de autores e obras, concebidos como independentes de uma articulação visível em um sistema”. O problema desse sistema idealizado por Candido é que, na prática, ele segue regras muito mais complexas do que o emérito professor supôs no sentido que o prestígio comercial, racismo estrutural, e o bom e velho complexo de vira-lata que temos presente hoje acabam por erigir, no melhor dos casos, um sistema manco e, no pior, um mecanismo perpetuador de um imaginário da classe média do sudeste (e, quiçá, podemos dizer paulista) que pouco sai da zona de conforto e dificilmente cria alguma uma obra digna de interesse.

Quanto aos leitores: é preciso dizer que o brasileiro não lê literatura brasileira. Se você já passou por uma vitrine de uma livraria nos últimos anos é muito possível que você tenha se deparado com vários livros nacionais de não-ficção como biografias de políticos, casos sobre a justiça ou injustiça brasileira ou mesmo com a obra de pseudo-filósofos lado a lado com o novo lançamento de um poeta americano/europeu recém premiado com um Nobel, o romance policial de uma eminente escritor nórdico ou uma obra de cunho político de alguma escritora inglesa enquanto os escritores brasileiros — e especialmente os contemporâneos — acabam relegados a lugar muito menos prestigioso da livraria, isso quando eles estão dentro dela. Em outras palavras, ainda que tenhamos leitores no país (ainda que não tão numerosos como esperamos), a maior parte desse grupo ou não lê brasileiros — escancarando que o complexo de vira-lata nunca saiu de moda — ou está mais interessado na fofoca midiática do momento e, com isso, completamente indiferente ao que geralmente entendemos como literatura.

Quanto as obras: o QI é o grande determinante se um livro é publicado e lido no Brasil, afinal, como você já deve ter notado, editoras grandes como a Companhia das Letras ou a Record, por exemplo, não estão abertas a ler originais de qualquer pessoa (talentosa ou não) interessada em entrar nesse mundo sem algum tipo de aprovação prévia. E o padrão dos escritores que tem acesso a tais editoras é muito bem definido faz anos: homem, branco de classe média, talvez formado em comunicação ou com algum sobrenome familiar e um entusiasmo pela sua viagem ao exterior.

Desapontador, certo? Mas a coisa fica ainda pior quando você percebe que esse mesmo comportamento é reproduzido em editoras, livrarias e revistas médias ou pequenas ditas “independentes” que, talvez com maior desprezo, também não se dão ao trabalho de acolher os escritores, lendo o que estes escrevem ou, no mínimo, respondendo a um e-mail.

Quanto aos escritores: o objetivo central dos contemporâneos (e talvez desde sempre) não parece ir além do que conceder alguma “dignidade” cultural aos filhos do empresariado local. Fechados num ciclo vicioso de QI das editoras e (re)afirmados pela vasta experiência de uma classe média atrasada, esses escritores acabam por produzir uma literatura brasileira contemporânea que parece fazer somente o mínimo para imprimir alguma qualidade a sua produção — padronizada à estética europeia de 20 anos atrás — sem coragem a experimentar e ousar. Afinal, por que tentar escrever algo além do convencional quando essa mediocridade continua a ser premiada pelo Jabuti ou o prêmio São Paulo? Isso que, novamente, tal lógica é levada ainda mais a baixo quando se chega em autores menores ou principiantes, ávidos a serem lidos mas nunca a de fato lerem, barulhentos quanto ao velho e empoeirado cânone na mesma medida que virulentos à críticas de suas escritas juvenis, ressentidos com o brilho do filho do dono do mercado, mas querendo o brilho do filho do dono do mercado.

Isso tudo não significa que eu não acredite no potencial que a literatura brasileira poderia vir a apresentar, motivo pelo qual sigo escrevendo os meus livros e, ocasionalmente (sob um forte filtro) dialogando com meus pares. Mas a ilusão de uma comunidade que eu tinha anos atrás já não é mais possível. “O sistema é foda, parceiro” e a sua sustentação enquanto tal apenas torna inviável que algum dia eu volte a aplaudir a mediocridade nacional.

Fábio Alves, nascido em Ribeirão Preto, é formado em Letras pela UNESP e possui mestrado em educação pela mesma instituição. Autor de O conde que voa (2016) e Quando os olhos se fecham (2018), ambos pela editora Interlagos, Fábio atualmente prepara uma seleção de contos sobre o título Breve a sair ainda esse ano.

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