POÇA
Está decidido — vociferou a mulher. Durante semanas, a poça, que antes era só um pingo, pouco mais que uma gota, foi ganhando corpo, transformou-se num lago e, depois, num pequeno mar, que cobria boa parte do cômodo. Era a primeira vez que, durante a noite, um broto d’água surgia entre o sofá e a estante, crescendo, volumoso e ágil, até engolir o pó do chão e tocar a beira dos rodapés.
Com a decisão tomada, secaram tudo e, por um largo tempo, dia após dia, os olhos procuraram por qualquer vestígio daquele oceano estreito,
mas nada aconteceu.
Os meses empilharam o tempo sobre o tempo e o andaime das horas, enquanto subia, encarregou-se de apagar a lembrança das contas e correspondências, como embarcações menores, boiando na poça.
Até que, numa bela manhã de domingo,
uma gota.
Não há mal — o homem disse — sendo coisa pouca, basta um lenço e pronto. No domingo seguinte, uma lagoa havia se formado. Secaram. Dois dias depois, um brejo. Secaram. Mais alguns dias,
a gota.
Voltaram a secar e se juntaram, mais uma vez, para pensar sobre o que seria feito. Que faremos agora? Eles pensavam acerca do que seria a melhor solução. O que podemos fazer? Um balde — disse a mulher — vamos usar um balde. Assim foi que, estando todos de acordo, colocaram sobre o centro dos problemas, de onde sempre surgia o aguaceiro, um lustroso e robusto balde preto.
Aguardaram.
Agora, parecia definitivo. Parece que não teremos mais problemas — disse o homem — e o trote dos afazeres cresceu, os compromissos se alargaram e o infortúnio da poça, de novo, caiu no esquecimento.
Foi um estranho familiar que, sentado no sofá, percebeu que o recipiente já estava no limite.
(Um desses estrangeiros, meio aparentados, que vêm e vão, que surgem no vão das horas, num susto, e veem, nas coisas de agora, por não terem visto, desde sempre, as coisas de antes, o que nos parece invisível)
Aquele balde vai transbordar — ele disse — e todos olharam…
Afinal, passado algum tempo, o balde havia se tornado parte integrante da mobília, ficara, como o restante das coisas, diluído na inteireza do cômodo, desaparecendo na função que exercia, na sua própria utilidade. O que faremos agora? O homem cochichou.
(Sobre o que deveria ser feito?
Sobre o que deveriam fazer.)
O que devemos fazer? O estranho, com um ar pensativo e confuso, sugeriu que olhassem o teto. Vocês já tentaram concertar aquela falha no telhado? Sugeriu que chamassem alguém. Eu conheço um sujeito que pode arrumar isso. O homem, espantado, voltou-se para a mulher
e a mulher, com a vista invertida, dobrada ao meio, com os olhos presos ao fundo, olhou desconfiada para o garoto
e olhou para o garoto sem ver o garoto
e o garoto, repetindo a movimentação, olhou a para o cão que dormia.
O estranho aguardava. O homem, ensimesmado, aguardava. O garoto aguardava e o cão, indiferente, dormia enquanto a mulher tentava, inquieta e reticente, processar aquela sensação incômoda. Por que ele apontou o furo no teto? Ela se questionava sobre o porquê de o estranho apontar o furo no teto. Seria uma espécie de retardo, de atraso mental? Ela cogitou, em silêncio, que o homem devia ser louco, lerdo, as duas coisas ou algo mais. Ele deve ter algum problema — ela pensou. Por que o estranho apontou o furo no teto? Que relação a mente alienada e maníaca do estrangeiro criava entre um balde transbordando e um buraco no telhado?
O cão espreguiçou-se,
o garoto, atraído pelo espicho, acariciou a barriga do animal e
os dois homens, desconcertados com a largura da pausa, entreolharam-se, moveram as sobrancelhas, como se renovassem um cumprimento antigo, e regressaram à posição inicial.
Como quem ressurge após o mergulho, à maneira dos que regressam de uma grande viagem, a mulher, voltando-se para o homem, sorriu.
Vou buscar outro balde!