QUAL ERA O COMBINADO?

Lucca Tartaglia
ano II: ensaio
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10 min readMay 18, 2020

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Na última sexta-feira, dia 15 de maio de 2020, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, em entrevista ao Expresso CNN, programa da CNN Brasil, mostrou indignação ao ser questionado, pela jornalista Monalisa Perrone, sobre a saída do ministro da Saúde, Nelson Teich, com menos de 30 dias no cargo. Weintraud, surpreendido pela pergunta — uma vez que fora convocado, a princípio, para falar sobre o ENEM 2020 — , salientou: “quando a gente combina uma coisa, a gente não deve descumprir isso previamente, a palavra tem que ser honrada”. Qual era o combinado?

Harari, em 21 lições para o século XXI, defende que os humanos “pensam em forma de narrativas e não de fatos, números ou equações, e”, para a maioria de nós, “quanto mais simples a narrativa, melhor”. O ministro acredita na educação que defende, na leitura que faz do Brasil e dos brasileiros. Vale ressaltar, também, que o ministro, ocupando a cadeira que ocupa, persegue uma educação ideal ao levar em conta o seu próprio ideal de educação — que, ao meu ver, muito se aproxima de um adestramento, de uma domesticação que reforça as bases e os resquícios de uma estrutura nacional classista, pouco compreendida em profundidade, e colabora para a sua recomposição, manutenção e fortalecimento, criando gatilhos de permissão e bloqueio que se aproximam de um sistema velado de castas. Aliás, muitas outras pessoas comungam da perspectiva acolhida pelo ministro — veja, se ainda não viu, a trilogia “Pátria Educadora”, da produtora gaúcha Brasil Paralelo.

Os adeptos dessa visão de mundo (ou melhor, desse conjunto de visões que compõem uma cosmovisão complexa da realidade) fazem o que fazem e creem no que creem porque são maus? O que é o mal? Adolf Eichmann, tenente-coronel a serviço do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, permitiu que crueldades inomináveis fossem levadas a cabo, contribuiu para que atos horríveis ganhassem corpo e cooperou para a “solução final” que, sob camadas e camadas de um “discurso higienizado”, levaria ao Holocausto. Por causar mau a milhões de pessoas, favorecendo e consentindo ações que visavam o mal de tantos seres humanos, Eichmann era mau? São os feitos e as consequências dos feitos que determinam a “malignidade” ou a “bondade” de alguém ou podemos dizer, doutro modo, que há pessoas essencialmente más e boas em essência ou as duas coisas? O que é ser mau? O tenente-coronel, ao cumprir com as suas obrigações, era um burocrata, “ele nunca ficava sabendo nada além do necessário para realizar um trabalho específico, limitado”, e seguia, religiosamente, as “regras de linguagem” estabelecidas. De acordo com Hannah Arendt, no seu livro Eichmann em Jerusalém — Um relato sobre a banalidade do mal,

o efeito direto desse sistema de linguagem não era deixar as pessoas ignorantes daquilo que estavam fazendo, mas impedi-las de equacionar isso com seu antigo e “normal” conhecimento do que era assassinato e mentira. A grande sensibilidade de Eichmann para palavras-chave e frases de efeito, combinada com sua incapacidade de discurso comum, o tornava, é claro, um paciente ideal para as “regras de linguagem”.

A partir das mais variadas justificações, das mais elaboradas justificativas, através de alguns eufemismos e de arranjos hiperbólicos, de banalizações e sensacionalismos, de quais desumanidades seriamos e somos capazes? Atados a um viés de confirmação, quantas atrocidades e abusos podemos cometer? O que é “normal” quando a norma é outra? Seria a alcunha de “monstro”, por exemplo — dada sempre a outrem –, uma forma de negar as perversidades de que o ser humano é capaz na busca por uma verdade ou na defesa de uma ideia? Chamar alguém de “monstro” ou de “louco”, ao contrário do que, geralmente, pensamos, seria um abrandamento, uma suavização para não encararmos o fato de que o mais comum dos homens, o mais ordinário e medíocre entre nós, pode ser capaz de coisas abomináveis em determinadas ocasiões?

Poderíamos, ainda, levantar a hipótese de que o “homem comum” ou “normal” — comum a qual comunidade e normal de acordo com quais normas? –, não possui educação formal suficiente, por exemplo, para compreender o panorama total que escapa à parte vivenciada por ele — como já ouvi, em certas ocasiões, daqueles que confundem a educação formal tecnicista baseada no paradigma da instrução, ainda com traços rijos da sua herança prussiana e secular, com uma educação integral (não digo “libertadora”, pois “educação libertadora” é uma redundância, um pleonasmo, assim como “pessoa difícil” — e, se não é, deveria ser). Bom, para esses, os que resumem “ignorância” a “falta de educação formal”, cabe lembrar que Heidegger apoiou o nazismo, Sartre — ao contrário de Albert Camus, que defendia um socialismo pacífico, advogou a favor da violência revolucionária e, no Brasil, atualmente, algumas cabeças pensantes, para lutar a “guerra cultural” — e falo de ambos “os lados” — , já se tornaram mais enrijecidas, endureceram, ainda que não tenham pedido a ternura, fazendo “vista grossa” e optando por uma cegueira seletiva quando convém — nomes que, antes “disso tudo”, caminhavam com seriedade para uma interpretação menos afetada (porque menos tomada pelos afetos) da história, da cultura e da sociedade brasileira. Os lulistas, os seguidores do lulopetismo, os intelectuais neoiluministas de “terra brasilis”, os peruqueiros, os conservadores reacionários à brasileira, os comunistas clássicos, os liberais modernos, os poetas municipais, estaduais e federais, os “cidadãos de bem” e de bens, os “bolsomínions”, os coxinhas e os mortadelas, os negacionistas, que negam o que foi confirmado e afirmam o que já foi negado, enfim, toda essa gente — que é gente como a gente –, acredita que faz o quê? Mais ainda, o que faz por acreditar no que acredita? Somos animais racionais, sim, mas a nossa racionalidade é patológica — a nossa razão pertence à lógica do pathos, dos afetos, das paixões, mas essa conversa fica para outra hora, porque, agora, é preciso voltar à questão: qual era o combinado? De fato, “quando a gente combina uma coisa, a gente não deve descumprir isso previamente” e, depois de tudo acertado, “seria bom seguir o roteirinho que tinha sido combinado”. Em 1948, após a II Guerra Mundial, com a Declaração Universal do Direito Humanas da qual o Brasil foi signatário — ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações –, o combinado não era que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, são dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”?

Quarenta anos depois, em 1988, com a redemocratização e a Constituição promulgada, o combinado não era defender, como princípio fundamental da república, a dignidade da pessoa humana? Naquela ocasião, a ideia não era que fossemos todos iguais perante a lei, à maneira da Declaração de 48, com direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade? O combinado não era que, entre os direitos sociais, estariam a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados? Na Lei De Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a LDB, retificada em 1996, não estava combinado que, tendo em vista que a função precípua da educação, de um modo geral, e do Ensino Médio — última etapa da Educação Básica — em particular, vai além da formação profissional, e atinge a construção da cidadania, é preciso oferecer aos nossos jovens novas perspectivas culturais para que possam expandir seus horizontes e dotá-los de autonomia intelectual, assegurando-lhes o acesso ao conhecimento historicamente acumulado e à produção coletiva de novos conhecimentos, sem perder de vista que a educação também é, em grande medida, uma chave para o exercício dos demais direitos sociais? Em 2014, com o PNE (Plano Nacional de Educação), não combinamos que as metas, para a década seguinte, seriam orientadas para enfrentar as barreiras para o acesso e a permanência; as desigualdades educacionais em cada território com foco nas especificidades de sua população; a formação para o trabalho, identificando as potencialidades das dinâmicas locais; e o exercício da cidadania? Entre 2017 e 2018, com as versões homologadas por Mendonça Filho e Rossieli Soares da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) — prevista na Constituição de 1988, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, e no Plano Nacional de Educação, de 2014 –, o combinado não era a promoção de uma educação integral e desenvolvimento pleno dos estudantes, voltada ao acolhimento com respeito às diferenças e sem discriminação e preconceitos? De acordo com o mesmo documento, não estava certo que, a partir do compromisso com a educação integral, as questões centrais do processo educativo seriam: o que aprender, para que aprender, como ensinar, como promover redes de aprendizagem colaborativa e como avaliar o aprendizado?

Agora, em 2020 — e também no ano passado –, mesmo entre os apoiadores do atual presidente, que foi eleito, democraticamente, pela maioria dos brasileiros — o que é sintomático, pois o bolsonarismo, enquanto fenômeno, é muito maior que o próprio Jair Messias Bolsonaro (inclusive, está caminhando para a emancipação) –, o combinado não era evitar, a qualquer custo, a nomeação de líderes do “centrão” no Congresso Nacional (Senado e Câmara)? Além disso, sancionar o fundão eleitoral, mudar a COAF para o Banco Central, indicar o filho para ocupar o cargo de embaixador, colocar o Aras na PGR e o André Mendonça na AGU, demitir o Sérgio Moro, um dos “superministros”… era tudo parte do combinado? Por não entender sobre saúde, economia e tantas outras coisas, não era para se valer dos melhores especialistas e técnicos, ouvindo as recomendações no que diz respeito a cada área? Quanto à ID Estudantil, a carteira estudantil digital e gratuita do MEC, ficou combinado que só valeria até a MP perder a validade — o que aconteceu no dia 16 de fevereiro de 2020 –, uma vez que o tema não entrou em votação no Congresso? Tudo bem, quem já tinha feito poderá usar até o fim do ano, mas não era isso que estava previamente combinado, certo?

Seria bom, às vezes — para variar –, seguir o “roteirinho” (do Ministério da Saúde, da Organização Mundial de Saúde, das autoridades competentes), atendendo a alguns combinados prévios que “a gente não deve[ria] descumprir isso previamente”, como aqueles da Constituição Federal, do ECA, da LDB, do PNE, da BNCC e de tantos outros “documentos norteadores”. Afinal de contas, ficou acertado, ou melhor, combinado na Carta Magna, no Título IV, Capítulo II, Seção III, Art. 85, que o presidente não deveria atentar contra: I — a existência da União; II — o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; III — o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; IV — a segurança interna do País; V — a probidade na administração; VI — a lei orçamentária; VII — o cumprimento das leis e das decisões judiciais. Será que o combinado, nesse momento, é aguardar até que a lista esteja completa ou, com o aumento das contaminações e o colapso eminente de vários setores, esperar “uma guerra civil”, deixando que o vírus faça “um trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil”? Vão morrer alguns inocentes, mas tudo bem, não é? “Em toda guerra morrem inocentes”. Talvez, desde que leve uns 30 mil junto, o presidente fique até satisfeito por “fazer a passagem”.

Com tanta informação descompassada, com as orientações atravessadas e a disritmia entre os membros da federação, com as Fake News, as polarizações e as muitas crises em curso, o efeito Weintraub, mais ágil e contagioso que o Sars-cov-2, o agente causador da Covid-19, acomete o país e não há quem saiba, de forma inequívoca, o que foi ou está combinado. Os números continuam crescendo — agora, enquanto escrevo esse parágrafo, são 15.633 mortes confirmadas, a despeito da pesada subnotificação, de acordo com o Ministério da Saúde –, a evolução nos gráficos espanta, a letalidade já chegou a 6,7%, o monitoramento dos casos de Covid-19 por município e a chegada do vírus no interior do país apontam um “prolongamento” preocupante, mas o autor de Sapiens está certo, não pensamos em forma “de fatos, números ou equações”, mas de narrativas, “e quanto mais simples a narrativa, melhor”. Quem sabe, se acreditarmos, com bastante convicção, e seguirmos a golpes de frases feitas e palavras-chave (“eu sou messias, mas não faço milagre”; eu não tenho que me preocupar com as mortes, “não sou coveiro”; “todos nós vamos morrer um dia”; é só uma “gripezinha”; a “cloroquina” é a solução; não passa de um “resfriadinho”; é tudo “histeria”; “o vírus é igual uma chuva, ele vem, você vai se molhar, não vai se afogar. Em alguns casos, lamentavelmente, haverá afogamento”; “já está indo embora essa questão do vírus”, etc), adotando um vocabulário específico e rígido para falarmos sobre as mortes, as coisas não melhorem? O efeito direto desse sistema de linguagem não é deixar as pessoas ignorantes daquilo que está acontecendo e do que estão fazendo, mas impedi-las de equacionar isso tudo com seu antigo e “normal” conhecimento do que era assassinato, por omissão, e mentira.

Façamos assim: vamos aguardar mais um ou dois meses, não sejamos precipitados, em agosto, se o quadro geral for precário ou essa confusão ainda estiver por aqui, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, está aberto ao diálogo e a gente discute o que fazer com o ENEM 2020, todo mundo junto, como uma democracia, como um povo, verdadeiramente, democrático.

Combinado?

Referências bibliográficas

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém — Um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia dos Letτas, 1999, p. 101.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília: Assembleia Federal, 2016.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente: lei federal número 8.069, de 1990. Rio de Janeiro: CEDECA, 2017.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: lei federal número 9.394, de 1996. Brasília: Senado Federal, 2018.

BRASIL. Plano Nacional de Educação. Brasília: MEC/SASE, 2014. Disponível em: https://cutt.ly/IyRVY9B. Acesso em: 16 mai. 2020.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: Ensino Médio. Brasília: MEC, 2018. Disponível em: https://cutt.ly/VyRVZK8. Acesso em: 16. mai. 2020.

HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século XXI. Trad. Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 21.

ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanas. Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris. 10 dez. 1948. Disponível em: https://cutt.ly/eyRV6XQ. Acesso em: 16 mai. 2020.

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Lucca Tartaglia
ano II: ensaio

Escrevinhador e colaborador das revistas FORPROLL, Contemporartes e Ano I: Ensaios.