Repartindo o espelho: a linguagem é estrangeira — um ensaio sobre Alejandra Pizarnik
Por Laura Redfern Navarro
Quantas pessoas cabem dentro da sua imagem no espelho? Quantas línguas conseguem definir o vazio? Quais palavras são nossas? Qual é o limite entre o vazio e a expressão? Esses — e outros — são alguns questionamentos que a poesia lacônica da argentina Alejandra Pizarnik (1936–1972) nos suscita. A sensação é a de uma tentativa de se apreender, num exercício que prioriza a concisão, o eu e os eus que fogem, se duplicam; se repartem; se descolam, sobretudo.
Publicada no Brasil pela primeira vez em 2018 pela Relicário Edições, para o português brasileiro foram traduzidos os livros Árvore de Diana (1962) e Os Trabalhos e as Noites (1965), ambos por Davis Diniz. As edições preservam a poesia escrita no original, trazendo a possibilidade de uma leitura bilíngue. Além disso, os livros acompanham um aparato crítico cuidadoso, que conta com análises das poetas Marília Garcia e Ana Martins Marques e com uma reflexão crítica do tradutor acerca do exercício de se traduzir a enigmática poeta argentina.
Para falar da poesia de Pizarnik, entretanto, é necessário recuperar sua biografia. Filha de imigrantes judeus-russos que fogem para a Argentina em meio à perseguição aos judeus, Flora Pizarnik nasce em 29 de abril de 1936, em Avellaneda, região metropolitana de Buenos Aires. Exilada em sua essência, Flora passa a assinar, já em seu primeiro livro, La tierra más ajena (1955), como Alejandra Pizarnik, nome que utiliza para o resto da vida.
Considerada a última poeta maldita da América, Alejandra nunca se encaixou em lugar nenhum; tentou estudar filosofia, letras e jornalismo, sem conclusão, além de ser uma mulher de aparência andrógina para os padrões da época. Os dilemas de sua própria indefinição e de suas ausências e lutos particulares, que permearam o seu fazer poético, também foram, em grande parte, a razão de seu adoecimento psíquico. Aos 36 anos, em 1972, Pizarnik comete suicídio.
Apesar de seu sofrimento, porém, é difícil elencar Pizarnik a partir da figura clássica da escritora suicida, que invariavelmente vai traçar uma trajetória com pretensões geniais, mas que nunca as concebe de fato. Alejandra Pizarnik foi uma mulher que escreveu sobre o trauma, sobre a dor e sobre a ausência procurando, acima de tudo, a Vida. Em seus poemas, com poucos versos e vocabulário reduzido, se vê uma necessidade de deixar o poema falar por si; de dar vida à própria Criação. Isso se revela de forma nítida e crua no poema que abre o livro Árvore de Diana (p. 17):
“1.
Eu dei o salto de mim à alba
Eu deixei meu corpo junto à luz
e cantei a tristeza do que nasce”
Na sua apresentação para o livro, Marília Garcia diz que “esse movimento na direção da alvorada — da aurora — da alvura do papel — não deixa de me conduzir à linguagem: um salto dado na direção do risco da escrita, o pulo de quem escreve para o dentro/fora do vazio, do experimento, do porvir”. Pode-se dizer, assim, que a proposta estilística da autora se molda de maneira precisa numa instabilidade, isto é, naquilo que vacila.
Parece, portanto, que Alejandra Pizarnik se lança rumo à definição em meio a um caos de maneira sutil, como se expusesse um corpo atravessado pela linguagem; que, estilhaçado, se reconfigura. Assim, o uso das palavras que se repetem ao longo de seus poemas nos dois livros — pássaro, espelho, narciso, entre outros — ao mesmo tempo em que evocam uma identidade fortemente estabelecida, expressam um tom melancólico, de um eu-lírico que sofre ante às próprias limitações.
Apesar de se calcar fundo nas ausências do próprio eu, Alejandra não está tentando somente falar do que a atravessa, mas reorganizar um sujeito nebuloso dentro de um universo simbólico, que traz corpo e voz para a impossibilidade do dizer. Essa tentativa se mostra fortuita quando o vocabulário reduzido se revela enquanto possibilidade de brincar e subverter a linguagem — algo que já se expressa em Árvore de Diana a partir de seu título, definido por Octávio Paz em seu prólogo como “(A árvore de Diana é) transparente e não dá sombra. Nasce nas terras ressecadas da América. A hostilidade do clima, a inclemência dos discursos e a gritaria, a opacidade geral das espécies pensantes, suas vizinhas, por um fenômeno de compensação bem conhecido, estimulam as propriedades luminosas da planta”.
Logo, a poesia de Alejandra Pizarnik é aquela que se nutre do adoecido e do traumático para se estabelecer, imponente, desafiando uma ordem. Se pensarmos poesia enquanto algo que parte de um lugar, temos uma escrita que procura incessantemente esse lugar, ou, ainda, que insurge de um espaço estrangeiro.
“18.
como um poema ciente
do silêncio das coisas
falas para não ver-me”
(p. 51)
Já em Os Trabalhos e as Noites, cujo título já indica uma brincadeira com o título clássico de Hesíodo, Os Trabalhos e os Dias, evidenciando seu tom obscuro, Pizarnik passa a desenvolver de forma mais madura a poética estabelecida em Árvore de Diana. Aqui, a concisão se aguça — não há mais, por exemplo, a poesia em prosa presente no primeiro livro; e os poemas passam a ter títulos que embaralham sua compreensão, propondo uma leitura deslocada. Um bom exemplo é o poema Invocações (p. 95):
“Invocações
Insiste em teu abraço
redobra a tua fúria
cria um espaço de injúrias
entre mim e o espelho
cria um canto de leprosa
entre mim e a que me creio”
Neste poema, o deslocamento do sentido acaba sendo mais evidente do que o próprio texto: há uma invocação, uma fala que se dirige a um outro. Esse Outro, porém, se molda como o Eu, que se mostra irresoluto, mas ainda dotado da própria voz. Trata-se, assim, de um eu-lírico que se mantém potente dentro da própria frustração, com um caráter autocentrado que, na realidade, está à deriva, ou em busca de si mesmo.
Esse experimento de concretizar um eu-lírico é um aspecto que, para além dos poemas, define a autora em sua biografia. Afinal, o conflito da língua espanhola em detrimento de suas raízes eslavas se estabelece muito claramente, como pontua o tradutor Davis Diniz em seu texto crítico Pizarnik Traduzida: “a obra da poeta de Avellaneda, de raízes eslavas e dicção poética às vezes afrancesada, quero dizer, absolutamente argentina em cada um de seus conflitos linguísticos e supranacionais, é toda ela um canto contra o silêncio (e a partir dele) (…)”.
Assim, conclui-se, a obra de Pizarnik nasce da tentativa de se alinhar o conflito de ser duas no exílio: Flora e Alejandra, a que é e a que se crê, que se misturam, se confundem, se embaralham. Ainda se mantém, porém, uma distância imensurável entre as duas: e, nela, uma ausência. E é nesse espaço que se concebe a necessidade do dizer que busca se concretizar na poesia da autora, mas que não se sustenta de fato — vai além.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PIZARNIK, Alejandra. Árvore de Diana. Trad. Davis Diniz. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2018.
_____________. Os Trabalhos e as Noites. Trad. Davis Diniz. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2018.
Laura Redfern Navarro é poeta e estudante de jornalismo. Toca o projeto literário independente matryoshkabooks, focado na divulgação de poesia brasileira contemporânea feita por mulheres. Participa da equipe de poetas da FaziaPoesia. É autora do livro Matryoshka (2020, Desconcertos).