Tingiu de lilás a bandeira nacional: Manhã Cinzenta, de Olney São Paulo

Por Amanda Lopes de Freitas

ano II: ensaio
ano II: ensaio
7 min readJul 26, 2021

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Gloria a Dios
En las alturas
Y en la tierra
Paz a los hombres
Que aman el Señor

(Misa Criolla, Ariel Ramirez, 1964)

Em muitos dos aforismos de Friedrich Nietzsche, encontramos a música como causa e a dança como consequência. A dança é a representação da guerra-resistência, da luta em seu viés de celebração da vida que transvalora todos os valores, vencendo a morte e a destruição do corpo. Corpo reinante quando dança! Se há um Deus, para Nietzsche é um Deus dançarino. É desse modo que se inicia o filme Manhã Cinzenta (1968), documentário em curta-metragem dirigido pelo cineasta brasileiro Olney São Paulo, cujo roteiro advém de seu conto homônimo. O filme pode ser lido como signo alegórico dos regimes totalitários a partir da criação de um país fictício da América Latina.

Cena do interrogatório de Aurelina em Manhã Cinzenta (1968)

É proibido proibir! O curta é iniciado com uma jovem militante que dança em uma sala — a que poderia ser uma sala de aula — junto de seus companheiros militantes que, em oposição, mantém-se fixados em seus assentos, amedrontados, preocupados e perplexos diante do contexto de guerra militarista que se apresenta simultaneamente através da sobreposição de cenas históricas reais. Aos poucos, tais jovens se deixam embriagar pelo fluxo movimento da jovem, ora mexendo os pés, ora inclinando sutilmente seus corpos como “aceitação” da revolução intima apresentada pela jovem-bailarina. Sentem-se intimados a dançar, porém resistem à força do baile delirante e sucumbem ao medo da repressão que é detalhada por meio das imagens concomitantes.

Em seguida, o filme nos mostra a moça e seu namorado caminhando para uma espécie de passeata, na qual o jovem protagonista lidera um comício: palanque, notícias, imagens sobrepostas, jornalistas especulativos, ouve-se o dizer “… estão voltados contra o povo”. Neste momento, chegam policiais que prendem ambos os protagonistas conduzindo-os ao cárcere a fim de interrogá-los e torturá-los tanto por militares quanto por uma estranha máquina robótica, um cérebro eletrônico. Um diálogo se estabelece no veículo que leva os jovens para o destino-morte: “[…] — Vocês foram muito adiante, atravessaram pela rede estabelecida os ditames da ordem e de concupiscência”. Sendo esse o enredo do curta-metragem, o que sucede a seguir é um caleidoscópio de imagens de guerra, dança-guerra, interrogatórios, tortura e morte. Mesclam-se canções populares com hinos de ode à pátria, demarcando a oposição entre ordem, máquina despótica e homem multiplicidade, máquina desejante: — Não podemos confiar em todos, é preciso cuidado! (fala da jovem protagonista, 7:03).

Manhã Cinzenta traz como tema central os golpes militares e guerras ocorridas na década de sessenta. Em 1969, a obra de Olney São Paulo foi exibida durante um voo sequestrado pela organização MR-8 (movimento revolucionário oito de outubro) que fora deslocado para Cuba, sendo apresentado como “um filme de um patriota brasileiro”. No voo, havia um cineclubista, membro da Federação Carioca de Cineclubistas, presidida então por Sílvio Tendler. Olney foi posteriormente acusado de ligação com os revolucionários que sequestraram o avião, uma vez que a cópia fílmica chegara à cúpula militar brasileira. O cineasta foi preso e torturado, porém absolvido em treze de janeiro de 1972 pelo Superior Tribunal Militar das acusações de subversão; contudo, as marcas causadas pelo feito foram permanentes: Olney São Paulo entrou em profunda depressão, falecendo aos 41 anos, em 1978, devido a um câncer de pulmão, sequela adquirida pelas torturas sofridas. As cópias do filme, que recebeu inúmeras homenagens e premiações, foram destruídas; exceto duas, guardadas por mais de vinte e cinco anos pela Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, pelo seu diretor na época Cosme Alves Netto.

Além da ditadura militar que assolava o Brasil desde abril de 1964, responsável pelos atos institucionais que colocaram em vigor a censura, perseguição política, suspensão dos direitos constitucionais, da democracia como um todo e a repressão àqueles que eram contra a ditadura militarista, vivia-se no mundo um contexto caótico: A luta armada nos países latino-americanos e no continente africano pelo direito à descolonização; a Primavera de Praga na antiga Checoslováquia; a guerra do Vietnã iniciada em 1959 a 1975; o assassinato de Martin Luther King em 68, ano também em que se deu a Revolução de Maio, movimento iniciado por estudantes insatisfeitos contra o sistema educacional francês e que se espalhou pela França naquele momento. É neste nublado período em que é lançado o texto O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia (1972), por Gilles Deleuze e Félix Guattari. De acordo com Rafael Trindade, articulista do site “Razão Inadequada”, a obra buscou compreender o porquê a revolução de maio de 68 falhara. Em linhas gerais, trata-se de um texto político contra o monopólio do desejo pelo viés psicanalítico, procurando outras formas de entendimento para o assunto. Em lugar do desejo neurótico, Deleuze e Guattari propõem o modelo do “esquizofrênico” como aquele que resiste a um Édipo — ditador. Não se trata, porém, de uma crítica à evolução da psicanálise, mas sim dessa em seu fundamento freudiano.

Fotografia de Olney São Paulo

- É preciso ser forte, a fraqueza desespera (fala da protagonista, 8:35). Em Manhã Cinzenta pode se afirmar que a protagonista fílmica, a jovem dançarina, possui esse espírito esquizofrênico revolucionário, uma vez que não aceita a ordem e moral estabelecidas, lutando (ou dançando) até a morte por aquilo que acredita. Após a prisão do casal protagonista, monta-se uma tríade formada por ambos junto a um militar que lhes interroga. Em uma cena paralela, lê-se a manchete: “Correio da manhã: …horas de gás lacrimogêneo para reprimir os estudantes”. Tem-se um close nas mãos dos jovens torturados, mãos que ao mesmo tempo são signo de luta e de resistência e em seguida se escuta um grito de horror: “– E seus amigos, onde estão? / — Todos mortos.” (11:48).

Em um segundo espaço, outros militantes discutem sobre a importância de se fazer algo reacionário e urgente, mas temem o massacre coletivo. Um militar recrimina: “– O povo não sabe pensar, o povo nunca soube pensar… nós que conduziremos o povo…” / “… para a morte” (contesta a protagonista presa em interrogatório). Tem-se neste momento a visão da máquina cerebral responsável por auxiliar nos interrogatórios: “– A menina não tem sangue judeu (diz algum militar) / — Sangue judeu? O que é sangue judeu?” — responde a máquina — cérebro. Nota-se neste momento uma alusão ao holocausto e a noção de que não existe razão para a reprodução da tortura daquilo que chamamos, de acordo com Deleuze e Guattari, máquina de guerra: se há o desejo de vida, também há o desejo de morte e de violência, deslocado de qualquer razão natural, mas configurando-se como fluxo de morte, desejo violência promovido pelo capitalismo.

A esquizofrenia “lírica” é também um produto da máquina despótica, mas como resistência a esta ordem, o que no filme Manhã Cinzenta é simbolizado pela figura da jovem, que após sua morte descobrimos chamar-se Aurelina. A jovem, interrogada por seu capataz e pela máquina cerebral, é questionada sobre a subversão da ordem que será o motivo da sua condenação. Com serenidade responde aos inquisidores: “– A lei? O que é a lei?” (17:11). Há claramente uma intertextualidade com o interrogatório feito a Cristo por Pilatos, além de outros símbolos que aproximam o texto fílmico de uma paixão imanente vivida pela protagonista. Antes da cena dita acima, em close um militante faz um desabafo:

“– Maria, Maria, incendiaram Maria com querosene e o menino virando presunto dentro de Maria.” (11:57). Em seguida, ouve-se em off: “- Viva a ressurreição das elites!”. Pode-se contrapor um paralelo entre a imagem da mulher e menino mortos em oposição ao termo ressurreição que é dito logo em seguida. Do ponto de vista alegórico, temos a paixão de muitas Marias, muitos meninos-homens que foram impedidos de viver.

A estudante/operária é por fim assassinada. Uma companheira de luta declama: “A vitima da primeira guerra, A guerra de Abel e Caim, A guerra da fome e do desespero […] Tingiu de lilás a bandeira nacional” (20:18). O namorado da jovem também é fuzilado logo em sequência e a película termina com cenas em flashback da jovem Aurelina dançando, reforçando a dança como signo da resistência e da guerra.

Manhã Cinzenta é um filme sobre desejo e dialoga com a filosofia deleuziana e guattariana nos seguintes pontos: não há julgamento moral do desejo; o desejo de violência provocado pela máquina despótica traz em oposição o desejo pela vida e pela resistência, provocados pelo mesmo contexto capitalista, no qual é preciso “estar atento e forte”. Há uma “des-dogmatização” desse desejo que no filme é construído por fatores sociais, o que nos leva à compreensão da noção de Esquizoanálise e da crítica feita pelos autores às teorias iniciais de Freud e Lacan. Por fim, a figura feminina que se destaca pode ser interpretada como signo da esquizofrenia lírica, resistindo, lutando, dançando, afirmando a vida, embora por fim sucumba ao seu destino de morte: “… Señor, ten pena de nosotros”. (Misa Criolla — Ariel Ramírez).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo. Rio de Janeiro: Editora 34, 1972/2010.

Manhã cinzenta — memórias da ditadura. Disponível em: < memoriasdaditadura.org.br/filmografia/manha-cinzenta/>. Último acesso em 07 mai 2019.

Manhã cinzenta: o filme que condenou o cineasta. In: Site Causa Operária. Disponível em: < https://www.causaoperaria.org.br/acervo/blog/2017/11/30/manha-cinzenta-o-filme-que-condenou-um-cineasta/#.XNIBHhRKjIU>. Último acesso em 07 mai 2019.

O Anti-Édipo. In: Razão Inadequada. Disponível em: <https://razaoinadequada.com/2013/05/19/o-anti-edipo/> .Última visita em: 07 mai

Amanda Lopes de Freitas é Doutoranda em Literatura, Cultura e Tecnologia pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens do CEFET/MG, com estágio doutoral na Universidad de Murcia e Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Viçosa. Paulistana que vive em Minas, com espírito hispânico, é Professora, Bailarina, Corintiana e muito interessada nas relações entre Literatura, Filosofia e Sagrado.

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