Uma mulher das quebradas

Ana Resende Quadros
ano II: ensaio
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13 min readFeb 7, 2020

Ano I: Ensaios entrevista Heloísa Buarque de Hollanda

Professora, ensaísta, escritora, crítica literária. Que Heloísa Buarque de Hollanda é uma mulher extraordinária não há dúvidas. Apesar de viver uma relação de amor e ódio com academia, ela se tornou professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro e é responsável pelo projeto “Universidade das Quebradas” que aproxima a periferia do meio acadêmico. Aos 80 anos ela está prestes a lançar uma antologia de poemas escritos por mulheres, uma espécie de releitura dos 26 Poetas Hoje, sua obra mais célebre, publicada originalmente em 1976. No dia 6 de novembro de 2019 ela recebeu a Ano I: Ensaios para uma conversa sobre literatura e sociedade.

Pergunta (P): Como você definiria hoje a importância da literatura?

Heloísa Buarque de Hollanda (HB): Eu acho que ela virou um recurso, pelo menos para as periferias e para as feministas, que são as áreas que eu trabalho. É claramente um recurso político, um recurso ativista da maior importância. Você tem hoje nas periferias os saraus, nos quais as pessoas realmente ganham um desempenho muito maior de leitura, aprendem a escrever poesia, aprendem a editar, a fazer livros independentes, acabam nas editoras, são traduzidos. Eles têm toda uma carreira formatada a partir de um desejo de crescimento educativo. Não é bem como no caso da literatura de classe média, que é uma satisfação cultural, pessoal. A outra é social mesmo, o que eu acho bem importante. Não que ela fale de temas sociais, mas ela vai criar esse indivíduo e vai expor também os problemas raciais, de misoginia, de machismo. Essas temáticas aparecem muito nos saraus e nos slams. Você tem isso na periferia com muita clareza: a literatura é um recurso de educação, de ascensão, de formação. Pode ser a crônica de uma região também, a história de um lugar que é contada e recontada, que você observa mais na prosa. É muito difícil encontrar uma coisa muito abstrata, desvinculada das pessoas e do lugar em que essas pessoas estão se expressando. Na literatura feminista você vê muito isso. É uma nova linguagem e uma nova temática, são temas de mulheres que você vê que só podem ter sido escritos por mulheres. Antes você via um estilo de mulher, uma percepção de mulher, um olhar de mulher, mas nunca se falava de aborto, de parto, de menstruação. Os assuntos “brabos” nunca são falados na poesia. Esses assuntos não eram considerados líricos há cinco anos e hoje se tornam líricos.

P: E você acredita que a literatura nas periferias e a literatura feminista pode ser considerada uma poesia política?

HB: Não, de jeito nenhum. Na periferia está mais frequentemente conectado. Como na periferia a meta cultural é sempre ganhar visibilidade, eles falam do que comove, falam do estado deles, do território deles, da escravidão, do racismo, de temas que são pautas políticas. Mas no caso da poesia feminista não. São poesias mais focadas em falar, e falar divinamente, das situações pelas quais as mulheres passam.

P: E você acha que ainda existe um monopólio do eixo Rio-São Paulo, que uma poesia feita nesses lugares alcança mais visibilidades do que as feitas nos outros estados?

HB: Certamente. Sempre foi assim. A vida toda eu adoro fazer antologia de poesias. Eu sou fissurada por poesia e adoro divulgar os poetas que estão aparecendo. Eu observo que sempre teve uma injustiça absurda [com os poetas de outras regiões]. Mas isso acontece porque a poesia viaja pouco. Ela não tem mercado. É muito mais fácil você achar um romance escrito no Rio Grande do Norte do que um livro de poemas. O livro de poemas não tem nem na livraria do Rio Grande do Norte. Os livreiros não gostam de ter poesia. Agora está melhorando, porque a poesia está em alta, mas, a princípio, no espaço da livraria eles preferem colocar uma coisa mais vendável. Então as poesias são de difícil distribuição, o que dificulta a descoberta. Eu sei porque mandam para mim, se não me mandarem eu não vou conhecer. Eu não sei se a internet é capaz de suprir isso.

P: Nas livrarias observamos uma presença massiva de livros internacionais, tanto de prosa quanto de poesia. O que poderia ser feito para divulgar melhor a literatura brasileira?

HB: É preciso fazer uma política pública. Não tem outro jeito. Tem que dar isenção de pagamento para a literatura brasileira. Foi o que aconteceu com o cinema brasileiro, estabeleceram uma regra de que tantos dias por ano tinham que exibir filmes brasileiros. Tem que estabelecer uma política, porque o livro estrangeiro já vem barato, porque ele já vem editado, com capa. A única coisa que as editoras precisam fazer é mandar traduzir. E se para o editor é mais barato produzir, ele também vende o livro mais barato. Além disso, os livros bestseller tem tiragem de dez mil cópias, enquanto o livro de um autor estreante só terá uma tiragem de quinhentas, fazendo o livro custar cinco vezes mais. É uma questão de mercado e não ideológica. Não é porque não gostam do Brasil. Não tem nada a ver. Isso é muita paranoia dos autores. Eu mesma tive uma editora e sei o quanto custa fazer um livro que não vai vender.

P: Ao mesmo tempo os livros que vendem não são tidos como boa literatura pela academia.

HB: A academia faz muita besteira, gente. Parece que é proibido consumir literatura, porque eles acham ruim. Eu não entendo isso! Quando os adolescentes começaram a entrar no mercado foi maravilhoso, porque fortaleceu muito a indústria do livro! Quando os adolescentes começaram a comprar aquele Harry Potter foi um sucesso total para as editoras, que se fortalecem e podem fazer um trabalho de curadoria melhor. Mas na época todo mundo dizia: “meu filho só lê merda, só lê Harry Potter”. Harry Potter, para começar, é ótimo! Para começar a conversa. Como que diz que é ruim? Só porque não tá lendo Machado de Assis? Você não pode pedir para uma menina ler Machado de Assis a menos que tenha se entupido de entretenimento para gostar do outro. Literatura também é entretenimento. Existe literatura entretenimento. Você vai nos Estados Unidos e tá todo mundo lendo no metrô. Se você for no metrô de Paris tá todo mundo lendo. Você acha que tá todo mundo lendo Voltaire? Não tá! Mas no Brasil é proibido, porque nós somos aristocratas.

A saga de livros Harry Potter foi escrita pela autora inglesa J. K. Rowling e publicada entre 1997 e 2007. Segundo o site oficial da saga, Pottermore, em 2018 os livros ultrapassaram 500 milhões de cópias vendidas e já foram traduzidos para 80 idiomas. No Brasil eles são publicados pela editora Rocco.

P: Nesse tempo como docente, que mudanças você observou na academia?

HB: A única mudança importante que eu vi até hoje nesses 50 anos de academia foram as cotas. Tem gente que não gosta, mas no meu ponto de vista elas iluminaram a academia e fizeram entrar um dado novo que desconsertou a paz universal da igreja acadêmica. Esse foi um impacto que gerou mudanças, gerou problemas de escuta, gerou interpelações, trouxe questões que não habitavam a academia. Eu acho que foi muito bom.

P: E você acha que daqui para frente essas mudanças vão continuar? Você acha que as pessoas da periferia e as pessoas negras vão continuar ganhando espaço na academia?

HB: Elas não têm espaço na academia. Elas literalmente não têm. As pessoas que passam por cotas não são ouvidas, são relegadas, não recebem atenção. O impacto é que de repente o professor tem um monte de alunos negros na sala e tem se policiar mais, fazer outras leituras. Mas o negro não tem voz. Eu tenho um projeto chamado “Universidade das Quebradas”, que conta apenas com artistas da periferia, e às vezes alunos da UFRJ vão fazer o projeto. Eu pergunto por que eles estão ali se já fazem parte da universidade e eles me respondem que na universidade eles não conseguem ser sujeitos, não conseguem falar. E não falam mesmo, porque o preconceito é muito grande e eles não são absorvidos. E eles poderiam colaborar. Eles trazem informações muito novas. Mas as cotas fizeram esses alunos serem tolerados pela academia.

P: E você acha que existe alguma perspectiva de mudança?

HB: Eu acho que há à medida que essa política for se fortalecendo. Hoje você não tem professores negros. À medida que se formam pessoas negras, teremos professores negros. Aí começa a mudar uma coisa mais epistêmica, uma coisa mais de conhecimento. Mas, por enquanto, essas pessoas ainda não são um número expressivo na academia. Isso começa a mudar quando as pessoas se formam e se tornam docentes.

P: Mas se tornar professor no ensino superior não é tão simples. Um fato interessante é que embora as mulheres se formem mais em cursos de graduação e pós-graduação, elas continuam sendo minoria na docência em cursos superiores. Por que você acha que isso acontece?

HB: A universidade claramente não foi pensada para ter mulheres. Aquela epistemologia que a gente tem é toda masculina. A mulher que quiser ser produtiva na universidade tem que pensar como um homem. Se ela pensar como mulher, é empírica, não serve. Hoje você já tem várias disciplinas novas que são muito importantes. São as epistemologias sociais, quer dizer, as pessoas produzem conhecimento fora daquele padrão masculino. No caso das ciências e das humanidades se as mulheres começarem a produzir elas vão fazer uma diferença. Não que a epistemologia masculina seja ruim, mas você tem que saber que aquilo foi escrito por um homem branco francês. Você tem que localizar isso porque ele não é igual a você e todo saber vem de uma experiência social. Você só pode inventar o que você vive. A experiência social masculina é muito diferente. Você não tem nem bibliografia de mulheres para estudar, pra poder formular alguma coisa nova. As epistemologias sociais (feministas, negras) são uma vontade de romper esse padrão e produzir algo novo a partir de experiências silenciadas. Um segundo ponto é que o espaço da universidade não foi pensado para as mulheres. Se ela fica grávida, ou nasce um bebê ela perde a prova, o vestibular, a ascensão. Se ela tiver um bebê e ganhar uma bolsa na Noruega de inovação ela não vai, ela não vai conseguir se especializar. Se fosse o marido que ganhasse essa bolsa ele iria. Se o bebê fica doente, ela não vai à aula. O marido vai. Essa divisão de tarefas dá uma diferença enorme na mobilidade acadêmica dessas mulheres. Uma mulher pode receber uma ótima oportunidade de emprego em outra cidade e ela vai ter que fazer um monte de conta antes de aceitar. Um rapaz na mesma situação nem vai pensar, ele só vai. A mulher carrega uma cesta nas costas. Então a formação e a produção de conhecimento dela são prejudicadas. Fora isso tem o óbvio machismo que desqualifica qualquer mulher. Mulheres sofrem com assédio, sofrem com pesquisadores que até acham seus trabalhos interessantes, mas não as citam na bibliografia. As mulheres não são levadas a sério. As que são pensam e falam como homens. Se você quiser fazer carreira na academia você tem que abrir mão da sua epistemologia. Você tem que abrir mão de você e virar um homem.

P: Você acha que recebeu pressão para agir como um homem?

HB: Olha, como eu nunca me interessei pela carreira acadêmica, eu não sei. Mas eu fui muito assediada. Diziam que eu só conseguia publicar porque “dava pra não sei quem”. Essa é a vida das mulheres. A mobilidade você não tem, a formação você não tem e a aceitação da forma como você produz conhecimento é precária. Sabe, tem um caso clássico do estudo dos gorilas. Consideravam que os gorilas já estavam totalmente estudados, já estavam mais que totalmente definidos. Até que uma zoóloga foi estudar o gorila. Ela olhou para o lado e viu que o gorila tinha filho e mulher. E a mulher não combinava em nada com a descrição que ela tinha na fixa do gorila. Elas tinham um outro tipo de comportamento, assim como os bebezinhos. Essa observação mudou a zoologia como a gente conhece. Essa zoóloga mudou a história. Existia uma única perspectiva há séculos estudando o gorila macho. Na hora que ela viu a família, a distribuição dos encargos e os demais comportamentos, a noção que se tinha de gorila mudou. E as mulheres podem contribuir da mesma forma em outras áreas. É só olhar para o lado um pouco diferente que você vai ver as coisas de forma diferente. Mas se a mulher quiser fazer sucesso ela tem que olhar só para o gorila macho. Se você olhar para o lado é ruim, não tem valor.

P: E você acredita que tem como suavizar essa situação sem uma mudança estrutural no sistema?

HB: Não. Isso conversa com a economia, com a religião, com tudo, então não tem. Você pode até avançar gradualmente, mas sem mudar a estrutura eu acho improvável. Eu tenho lido muito sobre as comunidades indígenas e é completamente diferente, não tem nada a ver. Então o que a gente vive é uma coisa construída e sólida. Não é natural o que a gente vive, é uma construção tijolo a tijolo. As nossas cabeças são formatadas com régua e compasso. Até mesmo a sexualidade. A bissexualidade é norma em muitas tribos. Em várias culturas não interessa se alguém é mulher ou homem e não só na questão sexual. O papel das mulheres nas comunidades africanas ancestrais também não tem nada a ver com o que vivemos hoje. Se o que nós vivemos é uma construção, ou se demole ela ou fica contente em um canto.

P: Que papel você considera que a literatura desempenha em despertar as pessoas para esses problemas sociais e quem sabe provocar uma mudança na sociedade?

HB: Eu acho que a poesia feminina, das mulheres, está fazendo isso. É espantoso. Você leva susto porque está invertendo o universo. É um universo completamente desconhecido. Veja a menstruação, que é uma palavra que não se fala nem entre mulheres. Entre mulheres só se fala se estiver com cólica. E isso virar temas de belas poesias? Você está iluminando uma experiência social que nunca foi iluminada.

P: Você acha que a literatura pode fazer com que essas temáticas também sejam estudadas na academia?

HB: Eu acho que a academia já está grilada por causa da cota. É muita cota. As mulheres entraram e não fizeram nada. Repare que o Brasil é o único país que não tem departamento de estudo de mulheres, feminista ou de gênero. Qualquer país tem um departamento de Women Studies, Feminist Studies. Qualquer país tem nas universidades um departamento de gênero e aqui não tem. Aqui você estuda embaixo da sociologia, embaixo da literatura, mas não tem nada formalizado. É um segredo esses estudos, porque se não tem um espaço institucional… Tem muita feminista agora na matemática, discutindo o pensamento matemático masculino, mas ela está embaixo da matemática! A vantagem desses centros acadêmicos de mulheres é que eles são interdisciplinares, o que os torna muito mais potentes. Aqui não, é cada um escondidinho. Se você estuda o feminismo na literatura quem manda é a literatura, que não fala de mulher. Nesse caso, quem fala de mulher sou eu, pessoalmente. Você faz os trabalhos, mas a instituição nunca te reconhece como um saber válido, legítimo.

P: Você acha que com essa nova onda feminista isso pode mudar?

HB: Essa onda não está acontecendo muito dentro da academia. Existem alguns estudos, mas ainda é um movimento manso, que não chega a afrontar a filosofia e a antropologia ocidentais. Eu acho que para chegar no pensamento vai demorar, mas as classes já estão diversificadas. Isso se não acabarem com as cotas. Eu tenho uma dentista que passa um tempo com aquele motor na minha boca dizendo como está horrível dar aula para essa “negrada”. Para ela eles não sabem nada e ela não pode ensinar. E eu não posso responder porque ela está com a broca na minha boca. Mas é comum ouvir isso de professor. E é um saber novo chegando, gente. Um conhecimento novo em folha. Que falta de curiosidade total! Temos que saber o que aquelas pessoas têm a dizer!

P: Por que você acha que o Brasil tem esse pensamento mais conservador em comparação com outros países?

HB: Ah, não sei se os outros lugares não são assim também. Acho que tem o fato de ainda sermos um país aristocrático, coronelista. Somos um país que ainda não mexeu muito no privilégio. Nos Estados Unidos a grande maioria da população é de classe média e existe uma democracia concreta. Aqui você ainda tem aquela coisa do favor, aqui tem aquelas relações assimétricas de poder. É uma coisa cultural nossa muito forte essa relação com o senhor. Essa relação não tem conflitos aparentes. As coisas são resolvidas na negociação. A nossa estrutura de poder aqui é mais complexa que nos outros lugares. A gente não perdoou os torturadores todos na anistia geral e irrestrita? Nenhum outro país fez isso. Aqui não se confronta e sem confronto não tem democracia, as pessoas não têm voz. Aqui se depende do sobrenome, da família, da ascendência. Como se isso realmente tivesse sido importante no Brasil. Lendo a literatura você vê como as coisas eram. Um dono de botequim que morava em Laranjeiras ganha um título de conde! A corte distribuía título pra todo lado. Lembra do “Cortiço”? Aquele Romão lá que era dono de um botequim e se casou com a escrava ganhou título de barão de repente. Quer dizer que não é sanguíneo isso.

P: Você sempre diz que não gosta de estudar muito tempo uma mesma coisa. Além dos estudos sobre a periferia e sobre o feminismo, o que tem chamado a sua atenção no momento?

HB: Eu estou estudando bastante a onda neopentecostal. É engraçado, porque eu digo que mudo sempre de tema, mas é meio mentira, porque a gente nunca larga os temas anteriores. Eu agora estou estudando os evangélicos, mas com foco nas mulheres, nos negros e na periferia. Então não adianta, você traz a bagagem do que você já fez. Mas hoje o engate maior é com os evangélicos. Quero entender melhor, perceber as possíveis brechas, as possíveis dissidências. Porque nós temos o evangélico fundamentalista, que é esse mais caricato que vemos com mais frequência, mas o evangélico não é fundamentalista sempre. Aliás, os fundamentalistas não uma porcentagem menor. Isso é complexo, porque a base comum é o capitalismo e a modernidade. Então tem muita coisa pra ver. Que tipo de cultura, que tipo de ethos tem por ali? É o que quero responder.

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Ana Resende Quadros
ano II: ensaio

Sou jornalista formada pela UFSJ e mestranda em Comunicação na UFJF. Gosto de refletir sobre a realidade no meu canal no YouTube, o Analisando.