Você finge como se não fosse nada, quando na verdade tudo está em ato — ou Tudo está em ato

Série: Elena Ferrante

ano II: ensaio
ano II: ensaio
5 min readAug 27, 2021

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1.

Já se passaram alguns anos, mas ainda me lembro da sensação de ser exposta a mim mesma por Elena Ferrante pela primeira vez, durante a leitura de A Amiga Genial. Para ser mais precisa, durante a cena em que Lila está prestes a se casar com Stefano e Lenu a vê nua. Ao pousar o olhar sobre o corpo adolescente de Lila, com ombros de menino, seios de mamilos crispados, quadris estreitos, nádegas rijas, sexo escuríssimo e pernas compridas — mais uma das descrições brutas e inesquecíveis de Ferrante –, Lenu, tomada por desejos inocentes e ao mesmo tempo perturbadores em relação ao corpo da amiga, “finge como se não fosse nada, quando na verdade tudo está em ato”.

Elena Ferrante não é de tirar conclusões fáceis, não está interessada em mastigar as perturbações humanas e transformá-las em frases bonitas extremamente artificiais, como é o caso de muitos autores frutos do fenômeno contemporâneo dos cursos de escrita criativa. Ferrante joga, escancara, fere e ri da cara da leitora que, até aquele momento, achou que seus desejos sáficos infantis eram coisa só sua, que ninguém mais sabia, sobre os quais ela jamais precisaria pensar. Eu sabia exatamente o que Ferrante estava relatando, através da protagonista e narradora, no momento mais íntimo de toda a Tetralogia Napolitana. Eu só não sabia que meus segredos e memórias eróticas da infância eram tão banais assim.

A vida toda, fingimos que nada acontecia, olhamos para o outro lado, reprimimos o que não sabíamos explicar — mas sabíamos que ia contra o que esperavam de nós. Até que Ferrante apareceu para apontar que a vivência feminina é muito mais padronizada, ridícula e banal do que pensávamos e, justamente por isso, muito mais interessante e complexa. Tudo está em ato.

2.

Ao me ver como Lenu, a vergonha enterrada viva veio à tona, aliada à repulsa, ao desconforto. Odiei Ferrante por algumas horas naquele dia. Como ela ousa escrever sobre o que ninguém mais fala? A questão do erotismo latente entre as amizades femininas é só mais um dos pontos que ela expõe, embora talvez o mais íntimo. Ela também reafirma tudo o que já sabemos sobre as ambivalências da maternidade, a ideia tentadora de elevar-se através do casamento, a escolha de se submeter ao homem por puro cansaço.

Sentimos tudo isso e sabemos que sentimos, mas 1) não consideramos a possibilidade de dizer em voz alta, caso contrário seríamos consumidas pela culpa e 2) nem saberíamos como fazer isso, quais palavras usar. E o desrespeito de Ferrante ao romper pactos coletivos milenares, expondo-nos a nós mesmas, nos faz detestá-la no primeiro momento. Como se uma autora que nem tem a coragem de mostrar o rosto tivesse cavucado suas vulnerabilidades, traduzido com palavras sofisticadamente brutas e transformado em best-seller.

Mas, uma vez deixado de lado o ego e a ideia de que tudo é sobre nós, o alívio supera o desconforto da exposição. Está tudo ali, em ato, provando que tudo aquilo, que por muito tempo me atormentou, na verdade não tinha nada de meu. Minha narrativa, em especial as partes que não contei para ninguém, não tem nada de única — e isso é um consolo.

3.

Depois da raiva e do alívio, vem a obsessão. Ferrante não é uma autora de sentimentos mornos. Uma vez exposta para mim mesma pelos longos, claros e incômodos parágrafos da italiana, mergulhei fundo numa espécie de fascínio masoquista. Precisava de mais, porque aquilo valia mais que 500 sessões de terapia. A cada página da Tetralogia e dos livros avulsos, até mesmo do infantil, eu me sentia mais próxima de mim, do feminino, daquela vivência que não era mais repulsiva e só minha, mas sim deliciosamente banal e pública.

Vendo-me em Lila e Lenu, descobri, entre muitas outras coisas, por que já senti inveja de pessoas que amava e por que repito discursos empoderados quando, na primeira oportunidade, aceito ser guiada e protegida por um homem. Em Olga, protagonista de Dias de Abandono, estive mais uma vez em contato com a pior versão de mim, que deu as caras após um término traumático. Lendo Um Amor Incômodo, entendi, pelo menos um pouco, por que minha relação com minha mãe é como é. Em A Filha Perdida, por que a maternidade é mais complicada, dual e assustadora do que eu imaginava. E em A Vida Mentirosa dos Adultos, o mais recente e definitivamente brilhante, por que minha feiúra adolescente foi tão importante para constituir o sujeito que sou hoje.

Disse que devíamos deixar de lado a ideia de que tudo é sobre nós, mas o ser humano é naturalmente egoísta e, por mais que negue e tente disfarçar, tem tesão em tornar sobre si situações que não lhe pertencem. Ferrante sabe disso melhor do que ninguém, e usa tal conhecimento contra e a favor de nós, mulheres. Contra, porque dói; a favor, porque revela. Se é para relacionar suas próprias vivências com as de personagens complexas e dúbias, que seja de uma forma que te faça tomar consciência de si mesma, de seus traumas, das tentações que inutilmente tentou exterminar.

Foi difícil, e ainda é — cada releitura é uma facada, um rasgo nas falsas ideias que tenho do que sou. Mas existe em mim a certeza de que a vida atormentada pela autoconsciência que passei a ter após a leitura de A Amiga Genial é melhor do que qualquer vida pacata e sufocada que não conhece a palavra ofensiva e consoladora, vulgar e primorosa, constrangedora e franca de Elena Ferrante. Ela nos liberta do constante fingimento de que tudo aquilo não é nada. Somos nossos desejos e perturbações — e estamos em ato.

Giovanna Reis é (quase) jornalista pela Faculdade Cásper Líbero. Com passagens pela Folha de S.Paulo e pela Editora MOL, escreve e traduz histórias sobre pessoas e iniciativas que fazem a diferença na sociedade. Também estuda literatura de forma independente, sendo aluna de diversos cursos livres e ouvinte de Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. No tempo livre, resenha os livros que lê e transforma tudo o que aprende em conteúdo digital, compartilhado no perfil literário MinhaEstanteMinhaVida no Instagram.

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