A bandeira lésbica

Revista Entendidas
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10 min readApr 19, 2021

Há razões reais e significativas para que a bandeira lábris seja reivindicada como a bandeira lésbica oficial

Por: SapAntiga

Vivemos, lamentavelmente, um tempo em que reforçar os papéis e estereótipos sexuais passou a ser considerado revolucionário em vez de uma prática degradante, limitadora e patriarcal. Com isso, pautas e símbolos associados ao feminismo são atacados como “conservadores” e “ultrapassados”. E, muito embora a gente esteja falando sobre fenômenos atuais de ataques ao feminismo e às lésbicas feministas, é importante frisar que o processo de ataque e apagamento às nossas luta e história são constantes desde que começamos a nos organizar com o objetivo de denunciar as estratégias patriarcais de controle e dominação.

A acusação de que feministas são “moralistas” ou “conservadoras”, por exemplo, é evidenciada por Catherine MacKinnon em seu livro Feminism Unmodified (1981), mais especificamente em alguns de seus capítulos, como Sexo e violência e Desejo e poder. Ela explica que o objeto do feminismo é a sexualidade, assim como o trabalho é o objeto do marxismo. E investigar a sexualidade, os papéis sexuais e as práticas sexuais em si, ao mesmo tempo em que nos permite enxergar o poder sexual masculino, nos coloca visíveis aos que não estão dispostos a desmantelar o poder dos homens. Ou seja, quanto mais evidenciamos as estruturas que nos aprisionam, mais somos acusadas de “moralistas”.

Trazemos esses apontamos iniciais para tocar em um assunto que é constantemente alvo de debates: a bandeira lésbica e seus significados para as que são por ela representadas.

Em 2010 popularizou-se nas redes sociais uma bandeira dita lésbica — em tons de rosa, trazendo a marca de um beijo na lateral, de nome Lipstick Lesbian (em português, lésbica de batom) –, que tinha como intenção representar as lésbicas femininas, leia-se aqui: que usam batom (ao que faz referência o nome da bandeira), maquiagem, roupas e sapatos como saias, vestidos e salto alto.

Bandeira Lipstick Lesbian. Imagem: Entendidas.

Ainda que não saibamos ao certo como surgiu o termo, há rumores de que, no ano de 1982, uma jornalista do San Francisco Sentinel, um jornal da comunidade gay de São Francisco, escrevia um artigo chamado Lesbians for Lipstick (Lésbicas pelos batons), algo como a reivindicação de maquiagens e outros elementos que tornam visíveis a feminilidade como um objeto de luta de parte das mulheres que se afirmavam lésbicas naquela comunidade.

Enquanto feministas lésbicas, identificamos essa demanda como, ao mesmo tempo, um grito por visibilidade de parte das mulheres que não se sentiam representadas pelas lésbicas menos feminilizadas e, por outro lado, uma forma de retrocesso da luta de várias de nós pelo abandono desses artifícios visuais que nos categorizam como presas sexuais. Afinal, o que as lésbicas estavam tentando dizer, nos anos 1960 e 1970, é que batom, maquiagem, salto alto, saias e cirurgias plásticas além de nos ocuparem com coisas superficiais, nos desviando da luta coletiva, também eram formas de nos “marcar” socialmente como presas sexuais masculinas, e de nos incapacitar de alguma forma, dificultando nosso deslocamento, nossa forma de nos expressar etc.

O problema dessas categorias mais femininas de lésbicas é que isso não foge muito do que a sociedade espera de nós — que, como mulheres, ajamos como se fôssemos frágeis e delicadas, limitadas pela nossa aparência agradável — e reforça diferenças dentro da nossa classe e da nossa comunidade, criando estereótipos como femme x butch (sendo a palavra femme “mulher” em francês, e butch uma contração de butcher, palavra do inglês que, em português, quer dizer açougueiro/a), reforçando o ideal de presa x predadora sexual do qual tanto tentamos nos desfazer.

Ainda sobre a Lipstick lesbian flag, ela foi criada no Tumblr, em 2010, por pessoas que entendiam que a bandeira lábris era muito séria. Desta forma, resolveram fazer uma com listras em vários tons de rosa para simbolizar “diversas formas de feminilidade”.

Após muitas críticas quanto ao beijo na lateral e ao fato de ela remeter exclusivamente às lésbicas feminilizadas, a marca de batom foi retirada, mantendo-se apenas as listras em tons de rosa.

Bandeira Lipstick Lesbian sem a marca de batom. Imagem: Entendidas.

Em 2017 surgiu, então, uma bandeira com tons de laranja e rosa, feita também no Tumblr, por um usuário de nome Sadlesbiandisaster, que prometia ser mais inclusiva, porque o laranja escuro, segundo o criador, significa “não conformidade de gênero”; o laranja médio, “independência”; e o laranja claro, “comunidade”. O branco que fica no meio representaria as “relações únicas com o universo feminino”. Depois, rosa claro para “serenidade e paz”; rosa médio para “amor e sexo” e rosa escuro para “feminilidade”.

Bandeira de Sadlesbiandisaster. Imagem: Entendidas.

Ainda em 2017 foi difundida, também pelas redes sociais, uma bandeira supostamente lésbica que tentava dar conta das personalidades “butch”. Afinal, a bandeira anterior enaltece a feminilidade, e as mulheres que não se identificavam com ela precisavam de uma nova versão, a Butch Positivity. Com sete cores horizontais, ela se forma da seguinte maneira: laranja avermelhado escuro, laranja avermelhado médio, laranja avermelhado claro, creme, laranja amarelado claro, laranja amarelado médio e, finalmente, amarelo escuro marrom-alaranjado.

Bandeira Butch Positivity. Imagem: Entendidas.

Esses exemplos, por mais tragicômicos que pareçam, servem para evidenciar as tentativas frustradas de representação que cada uma de nós tenta e tentou desenvolver em um mundo que, cada vez mais, nos divide para nos conquistar. Separar mulheres em categorias é o que o patriarcado faz de melhor, e nós estamos nos rendendo a isso. Se considerarmos que antes de tudo a bandeira é um símbolo coletivo, que ela representa pessoas que se identificam por terem em comum uma comunidade, uma ideologia, e, no caso em questão, uma sexualidade, já cai por terra qualquer possibilidade de que as bandeiras criadas por esses sites, blogs ou essas redes sociais sejam capazes de representar as lésbicas em suas pluralidades. Por mais que pareçam tentar abarcar todas as personalidades lésbicas, a verdade é que é impossível considerar a individualidade de cada uma e transformar em uma bandeira. Somos plurais, e devemos nos unir por nossas pautas. Uma bandeira lésbica, portanto, deve transmitir orgulho, visibilidade e luta pela nossa sobrevivência, já que, diferentemente do que vimos ser difundido nas mais diversas plataformas midiáticas, no dia do Orgulho LGBT de 2020, o L não está lutando apenas pelo direito de amar, afinal somos mulheres, somos oprimidas, perseguidas, violentadas, silenciadas e mortas diariamente.

Em 2018, uma nova versão da bandeira de Sadlesbiandisaster foi criada, bastante parecida com a anterior, mas com apenas cinco tiras: laranja escuro, laranja, branco, rosa claro e rosa escuro.

Segunda versão da bandeira de Sadlesbiandisaster. Imagem: Entendidas.

É bem significativo perceber que a história de luta das lésbicas é completamente esvaziada de sentido quando associada a essas cores e seus “significados”, sendo transformada em meras frases de efeito que podem ser reproduzidas e cooptadas por qualquer um. Para nós, lésbicas feministas, é um equívoco ignorar a trajetória das sapatões, e por isso reivindicamos a bandeira roxa, com triângulo preto invertido e uma lábris no centro.

Bandeira Lábris. Imagem: Entendidas.

São várias as razões para insistirmos na nossa bandeira oficial. A primeira delas é a força que ela transmite através dos seus símbolos: não são meras cores que foram colocadas ali sem uma história; ela tem uma memória.

A bandeira lábris, além de ser PARA TODAS AS LÉSBICAS, tem reunida em si muito do que faz da história escrita pelas lésbicas algo forte e capaz de resistir em uma sociedade que cotidianamente tenta nos destruir das mais diversas, violentas e cruéis maneiras:

O triângulo preto invertido: é necessário pontuar que o uso dos triângulos invertidos foi realmente uma forma de identificar as prisioneiras e os prisioneiros nos campos de concentração em razão da religião (roxo), dos ideais políticos (vermelho), da orientação sexual (rosa para os gays e preto para as lésbicas) e demais cores que, junto com a tatuagem de números, serviram para marcar essas pessoas. O triângulo preto também era usado pelas mulheres rebeldes, como as feministas.

É exatamente por isso que nós, que defendemos a força e a legitimidade dessa bandeira, nos pautamos no entendimento de que resgatar o triângulo preto invertido é uma forma de honrar a memória dessas mulheres, é uma maneira de dizer “nós não nos esqueceremos do que foi feito às nossas antecessoras”. E também de lembrar que poderia ser qualquer uma de nós ali.

É importante dizer que não enxergamos que haja qualquer referência ou analogia ao ódio empregado contra as nossas, mas ao respeito imenso pelas mulheres que foram presas, torturadas e mortas por amarem e lutarem por outras mulheres.

A lábris: símbolo de força e proteção, há diversas histórias em torno dela. Algumas dizem ter sido uma das armas utilizadas pelas guerreiras amazonas, e outras que esse era um símbolo das sociedades matriarcais.

O que é pontuado em rodas de conversa promovidas por organizações lésbicas e feministas é que a lábris foi agregada à bandeira por seus dois lados iguais, o que remete ao relacionamento entre mulheres, que têm em comum o mesmo sexo.

A cor roxa: A escritora e teórica Betty Friedan, em um discurso em 1969 para a National Organization for Women — Organização Nacional para as Mulheres (NOW), a qual fundou, chamou as integrantes lésbicas da organização de “lavender menace” (“ameaça lavanda”), afirmando que elas manchavam a reputação do grupo, afastavam outras mulheres e desviavam a atenção de pautas mais importantes na luta pela libertação das mulheres. Com essa situação, as feministas lésbicas decidiram fundar seus próprios grupos.

Dentre os grupos que nasceram desse rompimento está o que se denominou Lavender Menace (Ameaça Lavanda), que em 1970 interrompeu o Second Congress to Unite Women — Segundo Congresso para Unir Mulheres (organizado pela NOW) apagando as luzes do local, tomando os microfones e distribuindo o manifesto The Woman-Identified Woman (em português, A mulher que se identifica com a mulher[1]).

Tal manifesto é considerado um marco do feminismo radical e lésbico ao afirmar, entre outras coisas, que as lésbicas estavam na vanguarda da luta pela libertação das mulheres.

Desta forma, a cor roxa tem uma história dentro do movimento, considerando a associação da lavanda às lésbicas que romperam com a NOW.

É importante dizer que mesmo que estejamos tentando contar a nossa história com o máximo de rigor e responsabilidade possível, é muito complicado contá-la, porque não há muitas fontes de pesquisa disponíveis, uma vez que muito do que é dito sobre a história lésbica e seus símbolos é baseado em discussões e debates feitos em anos de militância lésbica, tendo em vista o apagamento lésbico, o fato de a homossexualidade ter deixado de ser formalmente considerada doença no Brasil apenas 1990 e, de em alguns lugares, ainda ser considerada crime. Assim sendo, nossas reuniões, manifestações, nossos encontros e grupos não possuem muitas fotos, atas e listas de presença, nossa memória, em muitos aspectos, são os relatos das sobreviventes.

A nossa história é passada de geração para geração, de uma mulher que esteve presente, que participou de um levante, que chamou uma reunião, que passou horas em um processo de criação coletiva para outra mulher; ou seja, nós somos as guardiãs do que significa cada um dos nossos signos e lutas.

Inclusive, há uma informação equivocada sobre a bandeira lábris ter sido criada por um designer de nome Sean Campbell, o que não corresponde exatamente à verdade, já que os símbolos que estão na bandeira roxa já eram usados por mulheres lésbicas muito antes que Sean os tenha reunido em forma de bandeira.

Contudo, é possível afirmar, sem margem para erros, que o movimento das lésbicas tem grande importância nos avanços conquistados pelas mulheres lésbicas e que se reividicam bissexuais, considerando que fomos as pioneiras na luta pelos direitos da comunidade homossexual.

Há muito se tenta apagar as lésbicas, seja por meio da culpa e das chantagens emocionais, seja nos responsabilizando por privilégios que nunca tivemos. Assim, uma bandeira que usa tons de rosa, laranja ou seja qual for a próxima invenção não pode ser aceita.

Por isso, pela coletividade da nossa luta por respeito e sobrevivência, temos com urgência que reivindicar a história das que arduamente lutaram para que chegássemos até aqui, as que se organizaram em coletivas, que encararam o preconceito, que publicaram a revista ChanacomChana, que invadiram o Ferro’s Bar, que construíram as Caminhadas Lésbicas, que organizaram as Paradas do Orgulho, que se reuniram nos primeiros seminários, que estiveram ativamente em Stonewall, que publicaram os primeiros livros sobre nossas vivências, que não aceitaram ter nossas pautas silenciadas e que não se calaram diante do discurso patriarcal de que somos incompletas.

Honremos a nossa história. Não podemos permitir que usurpem nossos símbolos e que apaguem a nossa trajetória de luta. As lésbicas sempre foram sinônimo de resistência.

Nossa bandeira não é em tons de rosa.

Nossa bandeira não é em tons de laranja.

Nossa bandeira não é dividida em listras.

Nossa bandeira não é vazia de luta, de simbolismos nem de significados.

[1] Disponível aqui.

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