Libertação gay e feminismo lésbico

Revista Entendidas
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19 min readApr 26, 2021

Tradução por Selvática de um trecho do capítulo 1 do livro Unpacking Queer Politics, da feminista lésbica inglesa expatriada na Austrália, Sheila Jeffreys.

Feminismo Lésbico

O Movimento de Libertação das Mulheres (Women’s Liberation Movement — WLM), que entrou em andamento no fim dos anos 60, estava repleto de lésbicas (veja Abbott e Love, 1972). Mas essas lésbicas não conseguiram colocar imediatamente suas pautas na agenda do movimento. Betty Friedan referiu-se às políticas lésbicas na Organização Nacional de Mulheres nos Estados Unidos com o termo que se tornou famoso: “ameaça lavanda” (Abbott e Love, 1972). O feminismo lésbico surgiu como resultado de dois fenômenos: lésbicas dentro do MLM começaram a criar novas políticas feministas distintamente lésbicas, e lésbicas da Frente de Libertação Gay (FLG) saíram para se juntar a essas irmãs. Desde os anos 50, no Reino Unido e nos Estados Unidos, houve organizações lésbicas determinadamente separadas de organizações de homens, que identificavam seus próprios objetivos separadamente da dominação dos interesses masculinos e criticavam o sexismo de grupos masculinos (veja D’Emilio, 1998). Algumas dessas primeiras organizadoras, tais como Phyllis Martin Del Lyon das Filhas de Bilitis (of Daughters of Bilitis), nos Estados Unidos, tornaram-se influentes ativistas e teóricas dentro do novo movimento.

O feminismo lésbico surgiu do entendimento de que os interesses de lésbicas e homens gays eram bem diferentes em vários aspectos, porque lésbicas pertencem à classe política das mulheres. A libertação lésbica, então, requer a destruição do poder dos homens sobre as mulheres. Não é possível descrever aqui as políticas e práticas do feminismo lésbico em detalhes. Eu não consigo fazer justiça a todos os grupos, atividades e ideias. É importante, entretanto, descrever os princípios que inspiraram o feminismo lésbico desde o começo e, que o distinguiu das subsequentes formas de políticas que lésbicas adotaram, particularmente nas políticas queer. Os princípios do feminismo lésbico, que o distinguem claramente das políticas queer de hoje, são o amor entre mulheres; organizações, comunidades e ideias separatistas; a ideia de que lesbianismo é sobre escolha e resistência; a ideia de que pessoal é político; a rejeição da hierarquia na forma de reprodução de papéis sexuais e sadomasoquismo; a crítica da sexualidade da supremacia masculina que erotiza desigualdade.

Amor entre mulheres

A base do feminismo lésbico, bem como do feminismo radical desse período, foi o amor entre mulheres. Feministas lésbicas entendiam o amor entre mulheres como fundamental para o feminismo. Como foi expressado por Charlotte Bunch em 1972: “Nós dizemos que uma lésbica é uma mulher cujo senso próprio e energias, incluindo energias sexuais, é centrada em torno de mulheres — ela é mulher-identificada. A mulher mulher-identificada se compromete com outras mulheres para suporte político, físico e econômico. Mulheres são importantes para ela. Ela é importante para si mesma” (Bunch, 2000: 332). As filósofas feministas apontaram que a filosofia e cultura supremacista masculina é hostil ao amor e amizade entre mulheres. Janice Raymond explica, “Em uma sociedade que odeia mulheres, a amizade entre mulheres tem sido um tabu a ponto de mulheres odiarem seu Eu original” (Raymond, 1986: 6). O amor entre mulheres era uma tarefa necessária à própria sobrevivência do feminismo. Se as mulheres não amassem elas próprias e umas às outras, elas não teriam base para identificar e rejeitar as atrocidades contra mulheres. Para um movimento feminista, solidariedade entre os oprimidos era uma base necessária para a organização. Mas o amor entre mulheres sempre foi considerado mais do que uma versão feminina de camaradagem.

Raymond inventou o termo “Gino/afeição” para descrever o amor entre mulheres, que é fundamental ao feminismo. Gino/afeição “conota a paixão que mulheres sentem por mulheres, isso é, a experiência de uma profunda atração pelo Eu original vital e o movimento em direção a outras mulheres” (p. 7). As políticas feministas precisavam ser “baseadas em amizade… Portanto, o significado básico de Gino/afeição é que mulheres afetem, movam, agitem e estimulem umas às outras ao poder completo” (p. 9). Para muitas feministas, a conclusão óbvia do amor entre mulheres era o lesbianismo (Radicalesbians, 1999). Raymond explica que, apesar de seu conceito de Gino/afeição não ser limitado ao lesbianismo, ela não entende porque qualquer mulher que ama mulheres não chega ao lesbianismo.

“Se a Gino/afeição abraça a totalidade de existência de uma mulher com e para seu Eu e outras mulheres, se a Gino/afeição significa colocar primeiro seu Eu vital e outras mulheres, e se a Gino/afeição é um movimento em direção a outras mulheres, então muitas mulheres esperariam que mulheres que são Gino/afeiçoadas e Gino/afetivas seriam lésbicas… eu não entendo porque Gino/afeição não se traduz em amor lésbico para muitas mulheres” (Raymond, 1986: 14).

E o vínculo entre mulheres, que é o amor entre mulheres, ou Gino/afeição, é bem diferente do vínculo entre homens. O vínculo entre homens é a cola da dominação masculina. Ele tem sido baseado no reconhecimento da diferença que homens vêem entre eles e as mulheres, e é uma forma de comportamento, masculinidade, que cria e mantém o poder masculino.

Mary Daly caracteriza o vínculo entre mulheres como “vínculo (de amor à vida) biofílico” [biophilic (lifeloving) bonding], para distingui-lo de outras formas de vínculos na “sadosociedade” dominada por homens. Ela enfatiza a diferença: “vínculo, como ele se aplica a Hags/Harpies/Furies/Crone é tão completamente Outro com relação ao “vínculo masculino” quanto Hags são Outras com relação ao patriarcado. A camaradagem/vínculo masculino depende da energia sugada das mulheres” (Daly, 1979: 319). Marilyn Frye, a filósofa lésbica americana, em seu artigo sobre as diferenças políticas entre homens gays e mulheres lésbicas, vê a homossexualidade masculina como o apogeu do vínculo masculino que forma a argamassa da supremacia masculina. O vínculo entre feministas lésbicas, entretanto, é herético: “Se o amor entre os homens é a regra da cultura falocrática, como eu penso que é, e se, portanto, o homoeroticismo gay é compulsório, então homens gays devem ser contados entre os cidadãos fiéis ou cumpridores leais da lei, e lésbicas feministas são pecadoras e criminosas, ou, se vistas politicamente, insurgentes e traidoras” (Frye, 1983: 135–6).

O amor entre mulheres não sobrevive bem em uma política queer dominada por homens. Num movimento misto, os recursos, as influências e um número massivo de homens dão a eles o poder de criar normas culturais. Como resultado, algumas lésbicas se tornaram tão desencantadas com seu lesbianismo e até com sua mulheridade, que há atualmente centenas, senão milhares, de lésbicas no Reino Unido e nos EUA que “transicionaram” — isto é, que adotaram a identidade não só de homens mas de homens gays com a ajuda de testosterona e cirurgias mutiladoras (Devor, 1999).

Lesbianismo como escolha e resistência

A lésbica do feminismo lésbico é uma criatura diferente da mulher homossexual, ou da fêmea invertida da sexologia, ou dos movimentos assimilacionistas. Ela é bem diferente, também, do homem gay da libertação gay. Embora a libertação gay reconhecesse que a sexualidade é socialmente construída, não havia sugestão de que a homossexualidade pudesse estar sujeita a uma escolha voluntária, e pudesse ser escolhida como uma forma de resistência ao sistema político opressivo. A feminista lésbica vê seu lesbianismo como algo que pode ser escolhido e como resistência política em ação (Clarke, 1999). Embora os homens da libertação gay pudessem dizer “eu tenho orgulho”, feministas lésbicas foram longe o suficiente a ponto de dizer “eu escolho”. Raymond expressa isso como: “mulheres não nascem lésbicas. Mulheres se tornam lésbicas por escolha” (Raymond, 1986: 14). Isso não significa que todas que escolhem se identificar como lésbicas feministas conscientemente escolhem seu lesbianismo. Muitas eram lésbicas antes do feminismo lésbico ter sido pensado pela primeira vez. Mas ainda assim, elas adotaram um entendimento de seu lesbianismo que Cheryl Clarke, em This Bridge Called my Back, a antologia histórica feita por “mulheres racializadas” americanas, chamou de “Um Ato de Resistência”. Clarke explica: “Não importa como uma mulher viva seu lesbianismo… ela rebelou-se contra tornar-se a concubina do mestre de escravos, a mulher dependente do homem, ou seja, a mulher heterossexual. Essa rebelião é um negócio perigoso no patriarcado” (Clarke, 1999: 565).

A conexão genital não foi sempre vista como o fundamento da identidade lésbica. Lillian Faderman, a historiadora lésbica americana, explica que feministas lésbicas dos anos 70 lembravam as “amigas românticas” do século 19, sobre as quais ela escreve, que enfatizavam amor e companheirismo, e não necessariamente incluíam conexões genitais em seus relacionamentos (Faderman, 1984). A identidade de lésbicas feministas incluía regularmente tais ingredientes, como colocar mulheres primeiro em suas vidas e afeições, e não se envolver em relações sexuais com homens. Apesar da conexão genital poder não ter sido, para algumas, a base de sua identidade, um entusiasmo por relações sexuais ardentes certamente marcaram o feminismo lésbico desse período. Sexo não estava ausente, mas ele não tinha a significância que tem para lésbicas “queer” que exorcizam lésbicas feministas por serem “anti-sexo”. Mary Daly, a filósofa lésbica feminista americana cujos escritos providenciaram inspiração para os movimentos dos anos 70 e 80 e continuam a fazer isso, expressa o papel do sexo nos relacionamentos como: “Para mulheres mulher-identificadas, o amor erótico não é dicotomizado de uma amizade radical entre mulheres mas, ao invés disso, é uma importante expressão/manifestação de amizade” (Daly, 1979: 373).

Separatismo

O separatismo lésbico se distingue de outras variedades de políticas lésbicas por sua ênfase na necessidade de algum grau de separatismo das políticas, instituições e cultura dos homens. Tal separação é necessária porque o feminismo lésbico, como sua fonte, o feminismo radical, é baseado no entendimento de que as mulheres vivem, como descreve Mary Daly, num “estado de atrocidade” (Daly, 1979). O estado de atrocidade é a condição em que mulheres têm, por séculos, em diferentes partes do mundo, sobrevivido à terrível violência e tortura. Essas eras incluem a queima de bruxas, por exemplo, a epidemia de violência doméstica que está agora destruindo vidas de mulheres tanto ricas quanto pobres, e a indústria do sexo e sua variante atual de uma enorme, perversa indústria de tráfico sexual. Como apresenta Daly:

O patriarcado é ele próprio a religião prevalecente do planeta inteiro e, sua mensagem essencial é a necrofilia. Todas as ditas religiões que legitimam o patriarcado são meras seitas subordinadas sob seu vasto guarda-chuva/dossel. Todas — do budismo e hinduísmo ao islã, judaísmo, cristandade, às suas derivações seculares tais como freudianismo, junguianismo, marxismo e maoísmo — são infraestruturas do edifício do patriarcado. (Daly, 1979: 39).

Essa condição em que as mulheres vivem é criada a partir de, e sustentada por, um sistema de ideias pelas religiões do mundo, por psicanalistas, pela pornografia, pela sexologia, pela ciência e medicina e pelas ciências sociais. Todos esses sistemas de pensamentos são fundados sobre o que Monique Wittig chama de “a mente heterossexual” — isso é, moldado pela heterossexualidade e suas dinâmicas de dominação e submissão (Wittig, 1992). Essa “mente heterossexual”, aos olhos de feministas lésbicas radicais, é onipresente nos sistemas de pensamentos da supremacia masculina.

A crítica feminista lésbica a todo esse sistema de pensamento da supremacia masculina é extensa em sua visão e originalidade, sua coragem e criatividade. Quando eu falo de feminismo radical e feminismo lésbico no mesmo fôlego, é porque na maioria das vezes as principais pensadoras do feminismo radical foram também lésbicas (Millett, 1977; Daly, 1979; Dworkin, 1981), e o feminismo lésbico cresceu de uma base feminista radical. O pensamento visionário necessário para criar a nova visão de mundo do feminismo lésbico não poderia ser facilmente desenvolvido dentro de um movimento misto de libertação gay. No movimento misto, eram as ideias tradicionais masculinas do freudianismo, por exemplo, que dominavam as discussões. A análise crítica e a forte rejeição ao freudianismo como uma filosofia anti-mulher por excelência, formaram uma pedra basilar crucial para a criação da teoria feminista. O freudianismo havia sido desmontado e criticado já em 1946, por Viola Klein em “O Caráter Feminino” (The Feminine Character), e então, quando o feminismo ressurgiu no final dos anos 60, foi novamente sujeito à duras críticas em “Políticas Sexuais” (Sexual Politics), de Kate Millett e “Atitudes Patriarcais” (Patriarchal Attitudes), de Eva Figes (Klein, 1971; Millett, 1977; Figes, 1970).

As ideias de Foucault, também baseadas nas tradições da supremacia masculina, e portanto, no apagamento e degradação das mulheres, tornaram-se centrais para o movimento dos homens gays no final dos anos 70. Raymond mostra como Foucault reverenciava o Marquês de Sade, dizendo, “Um Deus morto e sodomia são entrada para a nova elipse metafísica… Sade e Bataille” (citado em Raymond, 1986: 45). O motivo da fama de Sade, como já havia sido apontado por muitas comentadoras feministas, foi a brutalização de mulheres em novas formas extremas.

A elaboração de um espaço para criar uma nova visão de mundo foi um motivo crucial para o separatismo lésbico. O separatismo lésbico é a separação de lésbicas de organizações gays mistas, e em alguns casos, particularmente nos EUA, do movimento de libertação das mulheres. Lésbicas separaram-se para formar seus próprios grupos, livrarias, cafés e editoras. Mais frequentemente, os espaços separados que lésbicas criaram destinavam-se a mulheres em geral, não especificamente a mulheres lésbicas. Foi a energia de lésbicas que sustentou a maioria dos espaços separados para mulheres, incluindo refúgios de violência doméstica.

Há duas maneiras bastante diferentes de separatismo lésbico. Algumas separam-se para criar uma cultura, espaço e comunidade lésbica nas quais elas podem viver tão separadamente quanto possível do mundo convencional masculino. Esse é o objetivo. Essa forma de separatismo pode apresentar perigo para o feminismo que estas lésbicas defendem. Ele pode se tornar uma dissociação do mundo, de forma que o contexto no qual certas práticas e ideias se originam na supremacia masculina é esquecido, e qualquer coisa feita ou pensada por lésbicas pode ser aceita. Janice Raymond explica:

“Mesmo um distanciamento radical e voluntário do mundo, originalmente tomado como necessário e uma instância política feminista desafiadora, pode produzir uma visão limitada do mundo que expõe mulheres a ataques. Uma consequência importante dessa dissociação é que mulheres podem tornar-se ignorantes das condições no mundo “real”, condições que podem dificultar sua própria sobrevivência” (Raymond, 1986: 153).

Dessa forma o sadomasoquismo criado por lésbicas, ou a reprodução de papéis na forma de butch/femme, podem parecer práticas inventadas por lésbicas ao invés de terem emergido da dominação masculina. Raymond explica que “Embora o sadomasoquismo lésbico possa surgir num contexto onde mulheres estão politicamente dissociadas do mundo exterior, ao mesmo tempo, ele assimila mulheres forçosamente a um mundo de esquerda e gay masculino de sexualidade” (p. 167).

Raymond recomenda um tipo diferente de separatismo, no qual o “inside outsider” (pessoa de fora que está dentro) consegue viver no mundo feito por homens, enquanto trabalha para mudá-lo a partir de uma base separada na amizade e cultura de mulheres. “A dissociação que eu critico não é a de mulheres se unindo separadamente para então influenciar o mundo “real”. Mas sim a dissociação que proclama um afastamento desse mundo” (p. 154). Nessa forma de separatismo, que feministas revolucionárias no Reino Unido nos anos 70 chamaram de “separatismo tático”, ao invés do separatismo como fim em si mesmo, feministas lésbicas são capazes de desenvolver ideias e práticas contra o contexto de realidade que a maioria das mulheres vive. Elas estão cientes do estado de emergência e do trabalho para pôr um fim a ele; portanto o sadomasoquismo, por exemplo, deve ser avaliado quanto às suas origens na cultura supremacista masculina, o que ele significa para a vida das mulheres, e se é adequado para a sobrevivência coletiva das mulheres. A base do feminismo lésbico sempre foi instituições e cultura lésbicas feministas separadas.

O pessoal é político

Feministas lésbicas trouxeram do feminismo radical o entendimento de que “o pessoal é político” (Hanisch, 1970). Essa frase resume a importante revelação do feminismo do fim dos anos 60 e dos anos 70 de que a igualdade com os homens na esfera pública era um objetivo insuficiente, senão sem sentido. Algumas feministas disseram simplesmente que uma mulher que queria ser igual aos homens não tinha ambição. Outras analisaram as limitações dessa estratégia com mais detalhes, apontando que era a dinâmica da vida pessoal heterossexual que aprisionava mulheres e limitava seu envolvimento com a vida pública, e que a própria noção do que é público, incluindo suas formas e conteúdos, derivava precisamente da posse dos homens dos serviços de “um anjo do lar”. Bat-Ami Bar On explica que esse princípio do feminismo radical surgiu da desprivatização e politização da vida pessoal que começou com a Nova Esquerda nos anos 60 (Bar On, 1994). A hierarquia precisava ser eliminada da vida pessoal se quisesse mudar a face da vida pública, e se quisesse derrubar as barreiras entre a vida pública e a vida privada.

Assim, lésbicas feministas, bem como muitos homens gay liberacionistas, rejeitaram a reprodução de papéis sexuais e qualquer manifestação de desigualdade em relacionamentos lésbicos. Elas consideravam que lésbicas que se envolviam na reprodução de papéis sexuais estavam imitando padrões nocivos da heterossexualidade e se colocando como obstáculos no caminho da libertação lésbica (Abott and Love, 1972). A visão de futuro das feministas lésbicas não consistia de um mundo público em que se teria oficialmente oportunidades iguais, baseado num mundo privado onde a desigualdade pudesse ser erotizada e explorada para fins de excitação. O público e o privado deveriam ser indistinguíveis, e serem moldados para representar uma nova ética.

Teóricas lésbicas feministas estenderam o entendimento de que o pessoal é político a uma crítica, não só a alguns aspectos opressivos da heterossexualidade, mas à heterossexualidade em si. Elas argumentaram que a heterossexualidade é uma instituição política ao invés de um resultado da biologia ou de uma preferência sexual. Adrienne Rich, por exemplo, diz que a heterossexualidade precisa ser analisada como um sistema político que exerce tanta influência quanto o capitalismo e o sistema de castas (Rich, 1993). No caso do sistema da heterossexualidade, mulheres são forçadas ao papel de servir ao homem sexualmente e em outras formas de trabalho. O trabalho é arrebatado da mulher através da posição subordinada da mulher na “família” e justificado por meio do amor romântico ou expectativas culturais. Esse sistema é imposto através do que Rich chama de “apagamento da existência lésbica”, violência masculina, pressões familiares, restrições econômicas, o desejo de “se encaixar”, e evitar ostracismo e discriminação.

A análise lésbica feminista da sexualidade requer uma nova linguagem. Janice Raymond forneceu algumas palavras para analisar a forma pela qual a heterossexualidade como instituição política funciona, tais como “heterorrealidade” e “heterorrelações” (Raymond, 1986). Eu tenho sugerido que o termo “heterossexual” seja usado para denotar a prática sexual que se origina do poder masculino e da subordinação feminina e erotiza disparidades de poder; e que a palavra “homossexual” seja mais adequada ao desejo que erotiza a uniformidade de poder ou igualdade (Jeffreys, 1990b). Tal linguagem dá um novo valor ao termo “homossexual” como em oposição à favorecida sexualidade da dominação masculina “heterossexual”. No Reino Unido dos anos 90, feministas lésbicas editaram livros que levaram a discussão adiante ao encorajar feministas, tanto lésbicas quanto heterossexuais, a analisar a heterossexualidade e sua rejeição ou aceitação da instituição e prática (Wilkinson and Kitzinger, 1993; Richardson, 1996). Teóricos gays não se engajaram muito nessa questão. Uma versão desenraizada da crítica lésbica feminista foi levada para o movimento queer. Mas a versão queer analisa a heterossexualidade como um problema para aqueles que se vêem como “queer” ao invés de vê-la como uma instituição que oprime mulheres.

Foram a crítica feminista lésbica e a crítica feminista radical da sexualidade e relacionamentos, a ideia de que o pessoal é político e precisa mudar, que vieram a ser desafiadas nos anos 80 no que desde de então vem sendo chamado de “debates feministas sobre sexualidade”, ou “guerras do sexo”. Uma nova variedade de lésbicas pornógrafas e sadomasoquistas ridicularizaram os entendimentos de lésbicas feministas de que pessoal é político e a importância da igualdade no sexo e no amor como anti-sexo — veja meu livro “A Heresia Lésbica” (The Lesbian Heresy), Jeffreys, 1993.

Erotizando a igualdade

A criação de uma sexualidade de igualdade em oposição à sexualidade da supremacia masculina, que erotiza a dominação masculina e a subordinação das mulheres, é um princípio vital do feminismo lésbico. Feministas radicais e feministas lésbicas radicais, nos anos 70 e 80, argumentaram que a sexualidade é construída através, e tem papel importante na manutenção da opressão das mulheres (Millett, 1977; MacKinnon, 1989). A sexualidade é socialmente construída para homens por conta de sua posição de dominação; e para mulheres por conta de sua posição de subordinação. Assim, ela erotiza a desigualdade de mulheres, o que forma o excitamento do sexo sob a supremacia masculina (Jeffreys, 1990a). Como resultado, feministas radicais argumentam que a sexualidade dos homens comumente toma a forma de agressão, objetificação, separação do sexo da emoção e a centralização do sexo em torno do acesso peniano ao corpo da mulher. Para mulheres, a sexualidade assume a forma de prazer em sua posição de subordinada e na erotização da dominação masculina. Esse sistema não funciona de forma eficiente. Assim, ao longo do século 20, um exército de sexologistas e de escritores de conselhos sexuais procurou encorajar, treinar e chantagear mulheres a terem orgasmos, ou no mínimo entusiasmo sexual, no intercurso sexual pênis-na-vagina, de preferência na posição missionária de forma que o homem continue “por cima”. Aqueles que aplicavam a sexologia identificaram o fracasso das mulheres em obter tal prazer como resistência política, ou até mesmo como uma “ameaça à civilização” (Jeffreys, 1997b).

A construção da sexualidade em torno da erotização da subordinação das mulheres e dominação dos homens é problemática também por outros motivos. Essa sexualidade sustenta a violência sexual masculina em todas as suas formas, e cria a prerrogativa sexual dos homens de usar mulheres, que dissociam para sobreviver, na prostituição e na indústria pornográfica. Dessa forma, feministas radicais e feministas lésbicas entenderam que a sexualidade precisa mudar. A sexualidade da desigualdade, que torna excitante a opressão das mulheres, é um obstáculo direto a qualquer movimento de mulheres na direção da igualdade. É difícil trabalhar por igualdade quando a realização desse objetivo destruiria o “prazer” do sexo. Assim, é importante tornar a igualdade excitante. Apenas uma sexualidade de igualdade é um objetivo consistente com a libertação das mulheres. Nas “guerras do sexo” dos anos 80, esse entendimento feminista sobre o sexo, como sendo moldado pela dominação masculina e necessitando reconstrução, tornou-se o objeto de um ataque feroz.

As “guerras do sexo” das lésbicas desenvolveram-se simultaneamente às “guerras do sexo” das feministas, as quais começaram como backlash contra da campanha feminista contra a pornografia do fim dos anos 70 e começo dos anos 80. Algumas feministas e algumas lésbicas (Duggan e Hunter, 1995; Vance, 1984), principalmente aquelas com raízes no feminismo socialista mais do que no feminismo radical, ou aquelas envolvidas nas políticas de gênero misto, fizeram campanha em oposição às políticas anti-pornografia de feministas radicais e lésbicas feministas. Naquele tempo, pareceu que as críticas de feministas radicais sobre pornografia e violência sexual estavam ganhando algum reconhecimento dentro da sociedade masculinista. Pareceu que as análises feministas da pornografia como violência contra a mulher, por exemplo, poderiam levar à introdução de legislações em alguns estados dos EUA na forma da portaria elaborada por Andrea Dworkin e Catharine MacKinnon (veja Jeffreys, 1990a; Mackinnon e Dworkin, 1997). O grupo britânico “Mulheres Contra a Violência Contra as Mulheres” (Women Against Violence Against Women) estava tendo algum sucesso, no começo dos anos 80, em fazer que o Greater London Council removesse propagandas sexualmente violentas dos metrôs de Londres. Houve um momento por volta de 1980 à 1982, em que realmente pareceu que as campanhas feministas anti-pornografia tinham alguma chance de sucesso. Em reação a isso, algumas mulheres nos EUA (“Força Tarefa Feminista Anti-Censura” — Feminist Anti-Censorship Task Force, ou FACT) e no Reino Unido (“Feministas Contra Censura” — Feminists Against Censorship, ou FAC), começaram uma campanha e a escrever em defesa da pornografia, ou numa base de liberdade de expressão ou porque elas aprovavam categoricamente a pornografia e queriam que ela fosse mais acessível às mulheres.

Os argumentos que ocorreram em torno da significativa questão de se era importante desafiar a pornografia, foram chamados, por aqueles que defendiam os direitos de pornógrafos e consumidores, de “debates de sexualidade” ou “guerras do sexo”. As guerras ou debates constituíram um divisor de águas político crucial na história dessa onda feminista. Os “debates” pararam um progresso real em direção à criação de uma sexualidade de igualdade, e colocou em curso uma marcha no sentido contrário, na qual práticas sexuais e de gênero, que teóricas e ativistas feministas haviam desafiado como sendo hostis aos interesses das mulheres, começaram a ser promovidas como sendo “libertadoras”, ou mesmo “transgressivas”, e politicamente revolucionárias. A diferença de poder entre homens e mulheres foi erotizada no sadomasoquismo, por exemplo, ao invés de ser desmantelada.

As “guerras do sexo” das lésbicas focavam nas questões da pornografia “lésbica” e do sadomasoquismo “lésbico” (SM). Kimberley O’Sullivan, que estava do lado pró-pornografia e pró-SM, diz que as “guerras do sexo” estavam inteiramente restritas à comunidade lésbica na Austrália, e não haviam se infiltrado no feminismo convencional (O’Sullivan, 1997). Feministas lésbicas argumentaram que lésbicas que se envolveram nas práticas de pornografia e SM, importaram os valores de dominação/submissão da sexualidade da supremacia masculina para a cultura lésbica (Linden et al., 1982; Saxe, 1994). Essas práticas replicaram a cultura de ódio às mulheres da cultura masculinista mesmo quando as praticantes e pornógrafas eram lésbicas. Lésbicas, foi apontado, são criadas numa cultura de supremacia masculina. Algumas têm a sexualidade construída através de abuso sexual infantil e prostituição/pornografia; apesar de que lésbicas feministas escolhiam explicitamente rejeitar esse treinamento ao invés de abraçá-lo. As guerras do sexo foram abastecidas pelo que chamei de “revolução sexual lésbica” (Jeffreys, 1993). Uma indústria sexual foi criada por e para lésbicas, vendendo pornografia lésbica, brinquedos sexuais e dildos no início dos anos 80. Os valores sexuais dessa indústria vieram da prostituição e da pornografia feita por homens, bem como muitos de seus funcionários. A lésbica que criou a principal revista para lésbicas nos EUA, On Our Backs, era uma stripper (O’Sullivan, 1997). Foi abastecida também pelo fato de que algumas lésbicas que tiravam prazer da pornografia e sadomasoquismo, estavam determinadas a proteger esse prazer das críticas das lésbicas feministas. Lésbicas que criticavam a sexualidade de dominação desconsideravam que suas respostas sexuais eram também afetadas pela sado-sociedade, mas elas buscavam mudar isso (Jeffreys, 1990b). Aquelas que defendiam a sexualidade da desigualdade não queriam essa mudança. Proteger essa sexualidade requeria a reprivatização da sexualidade. Para colocar as respostas e práticas sexuais fora dos limites da análise política, elas precisam ser separadas do político, e serem colocadas no privado mais uma vez.

Gayle Rubin, uma lésbica americana sadomasoquista, providenciou uma importante fundamentação teórica para a reprivatização do sexo. Ela se envolveu em uma manobra ousada e notavelmente bem-sucedida para isolar a prática sexual da discussão feminista. Em 1984, em um artigo intitulado “Pensando sexo” (Thinking sex), ela argumenta que sexualidade e gênero precisam ser teoricamente separados (Rubin, 1984). Assim, “gênero” é aquilo que pode ser propriamente analisado pelas lentes feministas, enquanto “sexualidade” não é adequada para uma análise feminista e deve ser vista separadamente da opressão, para ser analisada por libertárias sexuais e sadomasoquistas, como ela mesma. Sua manobra remove convenientemente da crítica feminista o sadomasoquismo e outras práticas de sexo hierárquico, tal como abuso sexual infantil, e fez com que seu ensaio fosse extremamente celebrado dentro dos novos estudos de políticas queer. Ele é constantemente reproduzido, mesmo em antologias feministas, apesar do fato de que pode ser visto como uma tentativa de limitar a análise feminista e impedir que mulheres incômodas analisem as práticas que são principalmente de homens gays.

Seu ataque tático foi visto como problemático mesmo pela principal teórica queer, Judith Butler, que aponta que a “emancipação” da sexualidade da análise feminista pregada por Rubin “se encaixa no conservadorismo convencional e na dominação masculina em suas muitas e várias formas” (Butler, 1994:20). Feministas lésbicas notaram que o centro do trabalho (de Rubin) era a reprivatização da sexualidade. A filósofa feminista Bat-Ami Bar On descreve Rubin como tendo se engajado em um “vôo do feminismo”, e diz que ela “contribui para a construção de um feminismo em que o pessoal não é político” (Bar On, 1994: 60). O trabalho de Rubin promoveu a base teórica para a considerável oposição aos entendimentos feministas da necessidade de análise política e para a sexualidade transformada que se desenvolveu nos anos 80, as “guerras do sexo lésbicas”. A indústria dos sexo providenciou o motivo comercial.

Todos os princípios do feminismo lésbico foram atacados nos anos 80 e 90. As organizações, cultura e existência de lésbicas separatistas foram atacadas quando algumas lésbicas nos anos 90 desenvolveram um novo relacionamento próximo com homens gays nas políticas queer. O amor entre mulheres foi visto com suspeita enquanto a masculinidade se tornava o valor mais alto numa cultura queer mista. A sexualidade foi o ponto crucial de divergência nas guerras do sexo lésbicas. Ela é também, argumentarei nesse livro, a mais importante diferença entre o feminismo lésbico e as políticas queer. Embora muito possa ser escrito sobre a agenda queer em outros aspectos, é a agenda queer da sexualidade que será examinada aqui com detalhe. As lésbicas que procuraram despolitizar a sexualidade, opôr-se à crítica feminista sobre a erotização da dominação e submissão, e as dinâmicas da pornografia e prostituição, identificaram-se com a nova política queer. Para elas, insultar o feminismo como sendo entediante e não-sexy, foi um rito de passagem para as novas políticas (Walters, 1996).

A tradução do capítulo completo pode ser lida aqui. Originalmente publicado em Blogueiras Radicais; publicado aqui sob nova revisão.

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