Sempre é tempo de se entender lésbica

Revista Entendidas
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6 min readMay 24, 2021

Por SapAntiga

Você já ouviu o termo “lésbica gold star”?

Elas seriam aquelas lésbicas que nunca tiveram experiências sexuais com homens.

Agora sejamos honestas: dar uma estrela dourada (gold star), como as professoras fazem com alunas exemplares, para mulheres que não se relacionaram sexualmente com homens, faz algum sentido?

Dentro de uma sociedade patriarcal, em que a heterossexualidade compulsória é um regime político que visa padronizar as relações humanas, sendo uma espécie de estatuto que determina que a “norma são as relações entre homens e mulheres”, a fim de constituírem uma família tradicional formada por pai, mãe e filhos; criar uma espécie de selo para aquelas que não se relacionaram afetiva/sexualmente com homens em algum momento de suas vidas é cruel com todas as mulheres.

Não dá para criarmos subcategorias de lésbicas, tendo em vista que a sexualidade não é inata: você não nasce predestinada a ser algo. Mesmo que desde muito jovem você compreenda seus afetos, que com o passar dos anos você perceba seus desejos sexuais, isso não é por ter nascido ou não com uma estrela dourada, e sim em razão de fatores objetivos e subjetivos como família, criação, religião, de como seus primeiros laços de confiança se deram, as informações externas que recebeu, as pessoas que aprendeu a admirar, aquelas que preferiu/quis se afastar. Enfim, somos seres sociais, e isso irá influenciar nossa sexualidade e forma que iremos vivenciá-la.

“A homossexualidade pode ser para a mulher uma maneira de fugir da sua condição ou uma maneira de assumí-la”. (Simone de Beauvoir — O Segundo Sexo, 1980).

Sendo seres sociais no patriarcado, vivemos cercadas pelas opressões. E, enquanto mulheres, essas opressões são talhadas em nós desde o momento que constatam que temos uma vulva. São a vulva, o útero, as trompas e ovários; é o fato sermos fêmeas humanas que irá nos conferir “uma estrela”, uma marca — a que possibilita à imposição da feminilidade, da docilidade, da submissão, dos trabalhos domésticos, da maternidade, dos cuidados com os outros, da culpa, dos rituais cosméticos que se iniciam no brinco colocado na bebê ainda na maternidade, e se perpetuam pelo tempo com depilação, maquiagem, salto alto, dietas, medo de envelhecer, pânico de engordar, desespero de não encontrar um marido para formar uma família com filhos…

Desta forma, nós, mulheres que compreendemos que nossos afetos e desejos sexuais são sentidos e direcionados para outras mulheres, que decidimos pelo afeto centrado em mulheres, não estamos imunes à heterossexualidade compulsória, uma vez que ela nos enreda em todas as esferas das nossas vidas, pois é esse o modelo adotado na sociedade em que vivemos.

“Gostaria de falar um pouco sobre o modo que ‘Heterossexualidade compulsória’ foi originalmente concebida e, ainda, sobre o contexto que estamos agora vivendo. O texto foi escrito em parte com a proposta de desafiar o apagamento da existência lésbica de boa parte da literatura acadêmica feminista, um apagamento que eu sentia (e sinto) ser não apenas antilésbico, mas também antifeminista em suas consequências, além de distorcer igualmente a experiência das mulheres heterossexuais. Não foi escrito a fim de ampliar ainda mais as divisões, mas sim para encorajar as feministas heterossexuais no exame da heterossexualidade como uma instituição política que retira o poder das mulheres e, portanto, a mudá-la. Eu também esperava que outras lésbicas fossem sentir a profundidade e a amplitude de identificação e de vínculo entre mulheres, que têm permanecido como um tema constante, embora abafado, através da experiência heterossexual, e que isso se tornasse, de modo crescente, um impulso politicamente ativado, não apenas uma validação de vidas pessoais.” (Adrienne Rich, 1993)

Lésbicas provam com suas vidas que há um caminho alternativo, melhor dizendo, há uma forma de vida que não será delimitada pela submissão à figura masculina, que há como sermos livres dos rituais de domesticação da mulher ao homem, ou que podemos ao menos ousar tentar ser livres. Para além da atração sexual entre mulheres, a lesbianidade é o ato de amar outra mulher.

“O sexo lésbico, é em si mesmo, poesia”, escrevou Cheryl Clarke em seu livro Living as a Lesbian (Vivendo como Lésbica) (1986), e em algo assim, que fala diretamente sobre aceitar seu corpo político enquanto mulher lésbica, ao centrar sua vida nos laços com outras mulheres, quebrando um ciclo desgastante e humilhante de alimentar as vaidades masculinas, não pode ser usado para categorizar mulheres em suas formas, tempo e compreensão deles.

O momento das nossas vidas em que nos sentiremos preparadas para vivenciar a lesbianidade não se dará pelos ponteiros do relógio e nem pelos dias no calendário. Não há uma regra a ser seguida, não há aquela que seja mais ou menos sapatão. Isso é desumanizar vivências e sentimentos.

A lesbianidade não é apenas sobre a orientação sexual daquela mulher, pois a sexualidade determinará mais do que com quem ela se relaciona, ela demarcará seu lugar no meio em que vive, passando a ser sua identidade política e social, tendo em vista que a partir do momento em que nos rebelamos contra essa opressão, contra essa ordem, passamos a ser vistas como menores, descartáveis e menos úteis, considerando que a maior utilidade de uma mulher, para os moldes tradicionais impostos, é o de reproduzir e de ser aquela que cuidará, através dos afazeres domésticos, do lar, da família e do marido.

Assim sendo, a enorme pressão sofrida por aquelas que não terão relacionamentos diretamente capazes de gerar filhos e que não irão dedicar suas vidas aos cuidados com o homem e suas necessidades domésticas, assim como o temor da rejeição, da violência, da expulsão de casa, da perda de alianças, do julgamento dos que as cercam, fazem muitas lésbicas negarem e lutarem contra seus afetos e desejos por outras mulheres.

“Escrevo sobretudo para aquelas mulheres que não falam, que não verbalizam, porque elas, nós, estamos aterrorizadas, porque fomos ensinadas a respeitar mais o medo que a nós mesmas. Fomos ensinadas a respeitar nossos medos, mas devemos aprender a nos respeitar e a respeitar nossas necessidades.” (Audre Lorde, 1983)

Mesmo aquelas que já experienciaram relacionamentos com outras mulheres ou que tiveram momentos em que não fugiram de suas vontades, tendo vivido paixões e laços com outras mulheres, sentem medo da palavra lésbica e de todo o peso que ela carrega. Algumas que se reivindicam bissexuais por muito tempo, temem se reconhecer lésbicas, porque tiveram relacionamentos com homens e mulheres, não querem ser julgadas, medidas, ter o seu passado sempre relembrado como uma forma de deboche e punição. E se têm filhos desses relacionamentos, se sentem ainda mais vulneráveis a essas exposições.

Quebrar com a submissão ritualizada da feminilidade e exigir sermos vistas como humanas e não como objetos a serviço dos olhares, desejos, anseios e expectativas dos outros causa um certo pânico.

Dessa forma, nada mais urgente que a solidariedade entre lésbicas, com as lutas travadas por aquelas que, sabemos, tiveram de lidar com as correntes que nos ferem na carne, com os olhares e propostas moldadas pelos fetiches daqueles que reduzem nossos afetos a sexo, e detalhe, sexo esse que é tido como “incompleto” pelo olhar masculino, pela ausência do pênis.

Mulheres que travaram batalhas contra a supremacia masculina e dizem ‘não’ ao mundo rosa da feminilidade imposta, são perseguidas pelos xingamentos cruéis que ferem aquelas que decidiram dedicar suas vidas a outras mulheres. Assim, estrelas, pódios, carteirinhas, troféus e qualquer outra forma de demarcar as lésbicas em razão de suas vivências, é ignorar a perversidade da sociedade em que vivemos. Sendo que a heterossexualidade é compulsória, a “estrela dourada” mascara as possibilidades de libertação, a qualquer tempo, de todas as mulheres.

“Se eu mesma não me definir, eu seria esmagada nas fantasias de outras pessoas e comida viva”. (Audre Lorde, 1982)

Dizer que há um tempo certo para se entender lésbica, é um imenso desrespeito com as mulheres e suas múltiplas vivências.

Isso é pregar o ódio às mulheres!

É desconsiderar a violência da sociedade em que vivemos!

É endossar o coro da misoginia.

Essas classificações precisam ser dissolvidas porque nossa batalha, não apenas como lésbicas, mas como feministas, é pelo fim de todos os rituais de submissão femininos. Desejamos e lutamos por mulheres livres.

Ser lésbica vai além da forma com que nos vestimos, com o momento das nossas vidas em que nos “assumimos” e dos rótulos que pregam em nós. Ser lésbica é ser uma rebelde. É amar radicalmente uma outra mulher em um mundo regido por padrões violentos e misóginos.

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