Criança e natureza : Observações (d)e Natureza Lúdica

Ana Lobo
Entrenós | diálogos e práticas de afeto
8 min readOct 15, 2019

Por Lais Lavinas

Quanto mais observo as crianças, mais compreendo a essência da natureza humana. Em meus últimos meses nunca convivi tão próxima às crianças — desde que eu era uma. Elas estão presentes em meu cotidiano, em meu entorno, no meu mundo; ao alcance dos meus olhos e ouvidos; trazendo seus cheiros, seus sons, suas demandas, seus pensamentos, seus erros, suas sabedorias — elas trazem o ser humano até mim. O tempo todo e a todo tempo. Simplesmente integram minha vida e minha mente em boa parte de meu presente, elas me demandam muito tempo. E eu as entrego tudo o que posso com todo o carinho e felicidade que tenho — meu tempo também é delas.

Ao escolher entregar meu foco às crianças da Fundação Casa Grande — Memorial do Homem Kariri, me peguei a observar e refletir sobre as seguintes questões: o tempo criativo humano, o autoconhecimento, o presente, a essência natural lúdica, a ocupação do espaço, o amor pela liberdade e a liberdade pelo amor. Esses assuntos me retornam mentalmente sempre que vou refletir sobre a dinâmica de cotidiano lúdico da Casa Azul; as razões que os trazem é o que busco compreender.

Nessas observações sobre o cotidiano lúdico percebo que a ludicidade não se prende a um espaço temporal da existência humana, ela está em qualquer idade, em qualquer período da vida. Não é exclusividade das crianças, e não pertence somente à infância; ela se faz presente nos ambientes e espaços por que passa. Há lugares que materializam a ludicidade e, assim, a atraem e solidificam seu encantamento natural. Um encanto que se faz genuíno, originário, natural, selvagem e verdadeiro.

Observar o lúdico é enxergar as origens dos processos de aprendizado criativo, é ver a ancestralidade da intuição, a gene da naturalidade espontânea do humano. Ao assistir ao filme “Território do Brincar”, de David Reeks e Renata Meirelles, enxergava em suas cenas a mesma essência que vejo no cotidiano lúdico da Casa Azul — o despertar do aprendizado pelo interesse intuitivo e afetivo da brincadeira; a compreensão do mundo pela sua (re)criação, e esta movida pelo interesse afetivo e pelo desbravamento intuitivo da criatividade.

Movimento muito próximo ao da natureza e dos animais. A vida se recria o tempo todo, a cada momento de uma maneira, sempre inovando na forma de se (re)viver, contudo, em conexão com sua essência físico-química originária. Se os espaços e as circunstâncias são efêmeros (pois estão se transformando), a inovação (ou como preferem os geneticistas, a mutação) deve se fazer constante para viabilizar a vida. E o cotidiano lúdico me mostra que a inovação é sua essência, e por isso, percebo a força de sua ancestralidade natural.

Se refletirmos sobre a manutenção da dinâmica da brincadeira após às infâncias dos animais, percebemos que os bichos não param de brincar enquanto envelhecem; o passar do tempo pode fazer com que o brincar seja menos presente, porém, dificilmente ele cessa. Provavelmente o ser humano é o único animal que reprime o brincar após a infância, o que contribui para o distanciamento do lúdico nos processos de aprendizado (criativo). Então, se o lúdico é social(mente) reprimido, também reprimi-se um potencial naturalmente inovador.

A repressão de um potencial natural não faz social (mente) nenhum tipo de sentido, com exceção das perspectivas de degeneração humana, sejam elas econômicas, políticas, culturais, psicossociais e/ou ambientais; ou talvez faça completo sentido em nosso tempo atual — como bem mostra a animação “O Menino e o Mundo”, de Alê Abreu. É curioso perceber que em um tempo em que se fala muito em criatividade, inovação de pensamento e transformações socioculturais, ainda pouco se discute sobre o lúdico, sobre a espontaneidade da criação, sobre a naturalidade da intuição criativa.

É preciso resgatar o respeito pelo lúdico; em nosso atual tempo até nossas crianças perderam parte do respeito por ele, provavelmente porque seus tempos andam mais controlados e suas asas mais presas. Assim como a maior parte dos adultos e dos idosos, as crianças estão cada vez mais presas ao tempo executivo e afastadas de seus tempos criativos. Nós estamos — cada vez mais — nos afastando da nossa essência naturalmente lúdica, e assim, se distanciando de nós mesmos e da nossa ancestralidade criativa. A sorte é que, assim como a natureza, a ludicidade possui uma força de renovação incrível, e ela consegue se manter presente mesmo em contextos de alto autoritarismo executor.

Adentrar o território da Fundação Casa Grande — Memorial do Homem Kariri entregue ao cotidiano do lúdico me fez compreender a importância do autoconhecimento e da liberdade pelo amor, em que um alimenta o outro ciclicamente. O poder de provocação do lúdico em nossas limitações psicossociais e cognitivas é forte, nos testa o tempo todo, aguça os sentidos e a intuição; o que faz com que sejamos menos moralmente formados, mais flexíveis diante dos controles sociais de comportamento, e mais próximos aos processos de natureza espontânea. Ou seja, ficamos mais próximos à nossa essência naturalmente criativa, pois estamos mais sensíveis à criação espontânea.

O que não significa sermos bonzinhos, inocentes, incapazes e perdidos — como muitas vezes o lúdico é visto ao ser confundido com a infantilização — significa sermos mais desprendidos de controle organizacional espacial, mais adeptos aos processos de (cria)tividade — o que requer uma perspectiva de organização temporal mais complexa e socialmente refinada para que haja harmonia e não falta de respeito. É preciso confiar no tempo criativo do outro, algo muito comum às crianças; que confiam com facilidade na capacidade de invenção e articulação do outro, o que contribui para a simplicidade em desenvolver ações coletivas.

O lúdico ao mesmo tempo que confia no aprendizado do outro e o observa, também se dispõe a complementá-lo e/ou trocar informações. É muito natural e simples a forma e a velocidade com que as crianças conseguem alternar entre o olhar aprendiz e o de aprendizado-orientador, entre o que é incorporado e o que é transmitido; o compartilhar das informações é genuíno, verdadeiro, sincero, mesmo que não seja fácil ou doce. Essa perspicácia de alternância do olhar provoca constantes situações de compreensão de perspectiva, o que contribui para o crescimento da empatia e do questionamento crítico interior; ou seja, estimula o autoconhecimento. O estímulo ao autoconhecimento aumenta o senso de liberdade. Já a confiança no outro favorece o florescimento da amizade, do cuidado, do carinho, do respeito. Então, o vínculo do compromisso se faz pelo afeto e pelo cuidado, e não apenas pela sustentabilidade de algo. O autoconhecimento alimenta o amor ao próximo, que permite a liberdade individual e o respeito social ao outro.

Ao observar o cotidiano lúdico percebo que a ludicidade é um tipo de estado de espírito — mais presente entre as crianças — que pode ser estimulado através da ocupação do espaço e do respeito ao tempo criativo. O brincar permite o alcance de um estado de espírito de renovação (senti)mental e energética, em que a psique passa por processos de cura traumática. Isso ocorre por conta da força de ativação da memória que os momentos de interesse, diversão e criatividade contidos no brincar possuem. Força essa que em boa parte dos casos consegue ser superior a dos traumas corriqueiros. Ou seja, o brincar chama e cria fortes memórias sociais baseadas em sensações de leveza, concentração, espontaneidade, criação, vitalidade, comunicação, experimentação, intuição, aguçamento dos sentidos e descobrimento corpóreo. Portanto, quanto mais se brinca, mais se aprofunda e enraíza as conexões de autoconhecimento e intelecto-sociais.

Para esta reflexão, creio que seja interessante descrever algumas características ambientais do espaço sociocultural que envolve o cotidiano lúdico da Fundação Casa Grande — Memorial do Homem Kariri. A ludicidade chega ao espaço pela comunicação, pela linguagem e pela troca de experiência entre as pessoas; e assim, se concretiza em cores, música, brincadeiras, arquitetura, afetos, leituras, fotografias, vídeos, trilhas sonoras, programas de rádio, espetáculos, passeios, narrativas histórico-culturais, gibis, artefatos arqueológicos, comidas e eventos.

As demandas energéticas de aprendizado direcionam-se para dois tipos de foco: o primeiro é a pesquisa e a absorção de conteúdo; e o segundo é a (con)vivência entre as gerações de pessoas. A estrutura laboratorial e o repertório de conteúdo foram pensados para atrair e estimular a comunicação lúdica; suas linguagens são simples e esteticamente atraentes, em que o aprendiz tem a liberdade temporal de usufruir dos lugares. Lugares, estes, que são habitados por outros aprendizes dispostos a também serem orientadores. Assim, através da comunicação lúdica e o compartilhamento dos lugares, os moradores vão compreendendo o desenvolvimento do tempo criativo humano, e são provocados a refletir sobre si mesmos e o tempo de criação do outro — o que favorece o crescimento da empatia e do espírito lúdico no espaço.

Quanto mais a ludicidade cresce no espaço, mais o tempo criativo se faz presente e liberta a intuição e a sensibilidade humana; processos mais profundos de autoconhecimento ocorrem e espontaneamente nasce o equilíbrio cria-ativo — entre o criar e o executar. E assim, os moradores da Casa Azul vão (re)descobrindo seus interesses, vão (re)criando seus lugares socioculturais, naturalmente se (auto)desenvolvendo; e fazem tudo isso juntos, misturando seus sonhos e aprendizados com o território que compartilham, elaborando processos coletivos a partir do respeito e a união dos tempos criativos individuais. Eles buscam a harmonia entre os tempos criativos do indivíduo e do coletivo para construir o tempo social do território.

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Série radiofônica “O rádio da meninada do sertão do Cariri” transmitida pela EBC e Rádio MEC:

Antropóloga pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Especialista em Gestão do Patrimônio Cultural pelo Instituto Metodista Granbery. Mestre em História Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Inovação em Agropecuária na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

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Ana Lobo
Entrenós | diálogos e práticas de afeto

Consultora curatorial, crítica de projetos artísticos e gestora de conteúdo para arte, cultura e arte/educação.