Capitalismo, uma história de amor

Giulia Tessitore
Revista Flusser
Published in
8 min readDec 2, 2020

Por Giulia Tessitore e Rafaela Mayumi

O documentário Capitalismo, uma história de amor dirigido por Michael Moore em 2009 se propõe a discutir um sistema financeiro problemático o qual corrobora com o aumento do abismo social e econômico do país. Em um mundo desigual, que comporta bilhões de indivíduos em situação de miséria (DOWBOR, 2017, p.22), é compreensível a indignação, a busca por culpados e o estudo por respostas práticas. Achar que o sistema está dando certo significa não olhar para 800 milhões de pessoas que estão passando fome.

É apresentado no documentário a propaganda do sonho americano, com a ascensão de grupos sociais menos privilegiados, e aumento do poder de consumo. HOBSBAWM (1995, p. 45) comenta a história do enriquecimento dos Estados Unidos no pós guerra, sendo esta uma nação que claramente teve resultado econômico positivo por estar distante da luta e ser arsenal de seus aliados, em conjunto com a capacidade de expandir a produção de modo mais eficiente do que qualquer outra. Desta forma, temos uma breve apresentação da história de amor entre a américa e o capitalismo, selada por meio do estado de bem estar social. Porém, diante do estado de êxtase que a população enfrentava, o presidente Jimmy Carter, em anúncio presidencial (reproduzido no documentário), faz um alerta para a sociedade de consumo que os Estados Unidos estava criando. Em oposição a seu discurso “desanimador”, surge Ronald Reagan — “um homem que sabia como fazer o seu trabalho” — alinhado com os interesses de Wall Street, e de grandes corporações. A tensão começa a ser revelada a partir do momento em que os Estados Unidos estabelecem a reformulação da economia nos moldes da globalização e do estado liberal com a eleição de 1980.

Cenas do filme Capitalismo, uma história de amor (2009). À esquerda, em seu discurso de posse, Reagan ao lado de Don Regan. À esquerda, Don Regan, presidente do conselho do Merrill Lynch.

Com a abertura econômica, o que o filme relata é a premissa desenvolvida por Noam Chomsky (2018) de que enquanto o capital está livre para transitar entre países, os trabalhadores não. Desta forma, um trabalhador americano estaria competindo com outros países que possuem mão de obra mais barata, e as corporações optando pela segunda opção para garantirem o aumento de lucro.

Gráfico do filme Capitalismo, uma história de amor (2009).

Moore faz uma metáfora em seu título, capitalismo, uma história de amor, ao colocar em foco os anos de prosperidade econômica nos Estados Unidos, que deu aos seus cidadãos a chance de acreditar no american dream. Dando continuidade à metáfora, seria um caso de amor o qual se tornou abusivo depois de anos de casamento, abrindo uma brecha para que em 2008 chegasse no ápice: violência doméstica. Ou seja, são os próprios cidadãos americanos, aqueles que fortaleceram e alimentaram o capitalismo a vida toda, que agora se tornam reféns em sua própria casa, ou melhor, são expulsos dela.

O filme se utiliza da história recente dos Estados Unidos para denunciar um sistema financeiro que se edificou às custas de um sistema não democrático, que exclui grande parte dos trabalhadores — produtivos — em benefício de banqueiros e grandes empresários.

Depois de reportar casos que causam indignação, existe a apresentação da possível causa: o respaldo dos presidentes eleitos e de congressistas para prestar solícita assistência aos banqueiros e grandes empresários, que contam sempre, com bons argumentos, bons lobistas e escusas negociações. Em contrapartida a exemplos desumanos envolvendo empresas que buscam o lucro a qualquer custo, o filme apresenta uma luz de esperança. Para isso, cede espaço a focos de resistência mesmo que ainda de forma isolada, como a greve dos funcionários em Chicago e exemplos de empresas que seguem modelos essencialmente democráticos como cooperativas.

Com esta narrativa e construção de fatos, o filme, além de denunciar o sistema capitalista, apresenta soluções. E, é importante notar que elas não se voltam ao regime comumente oposto, o socialismo, mas sim, o regime democrático. Assim, denunciam o sistema vigente dos EUA, o qual opera como uma aristocracia onde um pequeno grupo — Wall Street e congressistas americanos — estão exercendo o poder político de forma egoísta prejudicando os cidadão. A democracia se opõe à este regime por ser em princípio um “governo do povo”. Ou seja, ela coloca os cidadãos em destaque explicitando que o governo é um representante das vontades do seu povo, uma coisa que a democracia estadunidense desconhece.

O sistema capitalista

O capitalismo, como dito no começo do filme, é um sistema de dar e tirar. Enquanto ele operava fornecendo para a classe média americana e tirando do resto do mundo, não existia problema aparente. O problema só passou a existir quando o american dream se tornou inalcançável para os seus criadores, quando a classe média americana passou a perder suas casas devido à especulação financeira e ao golpe financeiro dado pelos banqueiros, executivos de Wall Street, com a ajuda do congresso americano. Pode ter sido o maior roubo da história do mundo, um roubo o qual foi noticiado como a grande salvação. Foi o dinheiro do tesouro americano — dos cofres públicos — que foi dado aos maiores bancos como uma estratégia de recuperação econômica sem qualquer regulamentação ou monitoramento de como e onde este dinheiro estaria sendo utilizado.

Talvez seja neste momento em que se questiona, como foi que isso aconteceu? A desigualdade e a falta de recursos não é um mero efeito colateral, ela é um projeto passado de geração à geração por um grupo seleto e exclusivo — os verdadeiros detentores do poder político nos Estados Unidos. A própria globalização se tornou um instrumento de abuso de poder. Quando esta deveria ser utilizada para conectar o mundo em uma aldeia global, na verdade se torna uma atualização mais bem feita do panóptico de Foucault. Entretanto ela não têm o mesmo objetivo do panóptico clássico. Ao invés de uma vigilância constante onde ninguém pode escapar do espaço, o novo panóptico opera com informações fornecidas livremente, “o banco de dados é um instrumento de seleção, separação e exclusão” em que “o novo poder moderno prefere ficar na sombra, observando os súditos, em vez de ser observado por eles” (BAUMAN, 1999, página 59).

Essas práticas fortalecem o capitalismo em duas frentes. A primeira é que todo o volume de informações coletado quando há interações digitais — big data — é utilizado para pesquisa de mercado, que visa acompanhar e identificar consumidores, além de encontrar lacunas lucrativas no próprio mercado. Ou seja, as corporações se matam para ampliarem seu big data, sua influência na rede. A segunda atua nessa nova ferramenta de análise de mercado que possibilita a criação de bolhas digitais, cercando o usuário com informações a partir das pesquisas e dos interesses. Assim, saturando o indivíduo da mesma informação dita milhões de vezes de formas diferentes, criou-se o melhor mecanismo de distração já existente. É o upgrade do “pão e circo”. O capitalismo se retroalimenta, é um ciclo vicioso.

Dentre os diversos resultados deste novo Estado liberal e da aproximação de interesses privados na política americana, o documentário relata o aumento de empréstimos, elevando a dívida doméstica em 111% e de falências pessoais elevadas em 610%. Porém, ao comparar com os índices financeiros, aparentemente o mercado ia bem, e apresentava resultados positivos como o aumento: do índice Dow Jones em 1,371%; dos salários dos grandes executivos em comparação aos trabalhadores em 649%.

O capital especulativo e a desigualdade

É possível apontar para a gradativa redução da industrialização americana e o aumento de sua atividade financeira. Porém, é importante distinguir a atividade financeira entre sistemas produtivos e sistemas especulativos. Diferentemente do sistema produtivo, onde existe um investimento em uma empresa, o sistema especulativo visa o lucro em operações de compra e venda, tendo como alvo moedas, commodities ou ativos financeiros, como ações ou outros títulos. O capital especulativo não passa, portanto, pelo processo produtivo. Isso significa que existe um dinheiro sendo movimentado mas que não movimentará a economia produtiva, sem gerar novos empregos, ou aumentar a oferta de produtos.

O resultado desta tendência é apontado pelo economista Thomas Piketty (2014), o qual afirma que quando a especulação de capitais gera mais dinheiro que a produção de bens e serviços, é sinal de que o capitalismo está doente. Isto porque além de enxergar um aumento do capital especulativo, é possível adiantar uma dominação do sistema especulativo sobre o sistema produtivo. Este é um processo que contribui significamente para a concentração de renda, pois estamos falando de uma quantidade de recursos acumulada em uma parcela tão pequena da população que são incapazes de serem transformadas em demanda, por mais consumo de luxo que se faça. Assim, são reaplicadas em outros produtos financeiros (DOWBOR, 2017, p. 33).

Além dessa conclusão, deve-se incluir na conta os países mais pobres e emergentes que compõem esta cadeia produtiva globalizada. Nesta dominação da economia especulativa, países que dependem da exportação de commodities tornam-se vulneráveis quando crises do capitalismo estouram. Crises financeiras contagiam estes países por conta da interdependência entre as economias emergentes e avançadas. Assim, a conta sobra para a economia mais fraca com a queda dos preços das commodities e da demanda mundial e o aumento das remessas de lucros pelas empresas e bancos.

Conclusão

O que se tem, então, é a participação desproporcional e não democrática de empresas privadas na política americana. Assim, o filme começa a apontar para uma possível resposta: a democracia. DOWBOR (2017) faz uma análise importante sobre o poder político de grandes empresas e avalia que não há um interesse de “dominar o mundo”, mas sim, trata-se de decisões pelos negócios, visando o melhor resultado financeiro possível. Acontece que, com um objetivo ou outro, é algo que se concretiza, e não ver a conexão entre esta concentração de poder econômico e o poder político constitui ingenuidade ou evidente falta de realismo (DOWBOR, L. 2017, p. 46).

Entretanto, a crise financeira de 2008 mostrou que nenhuma corporação é grande demais para falir e que um sistema construído à base de capital especulativo está sempre sujeito à novas bolhas financeiras com impactos globais. O filme conclui com a busca pela democracia em âmbitos públicos e privados, acendendo uma faísca de esperança para que o povo retome o poder político que lhe é devido.

Acontece que, quase dez anos depois, a esperança plantada por Moore parece não se concretizar.

“No seu relatório sobre a situação econômica mundial e perspectivas para 2017, a ONU constata que o capital internacional permanece volátil, e se estima que os fluxos líquidos para países em desenvolvimento deverão permanecer negativos (…) Os ‘fluxos negativos’ significam que os pobres estão financiando os ricos, ou seja, o sistema financeiro drena.” (DOWBOR, , página 35)

Esta constatação da ONU mostra que os Estados Unidos não tomou outro rumo depois da crise de 2008, tampouco Wall Street dividiu seu poder com a população. A tendência mundial corrobora com a formação de novas crises provenientes de capital especulativo e, portanto, novamente com o aumento da concentração de renda e da desigualdade social.

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Giulia Tessitore
Revista Flusser

oficialmente, estudante de cinema. realmente, estudando arte, filosofia e política.