O pensar pelo cinema: conceito de Blow-Up

Giulia Tessitore
Revista Flusser
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10 min readAug 7, 2020

Por Giulia Tessitore

Este texto é um exemplo de como o cinema — e neste caso o filme Blow Up (1966) de Antonioni — cria novas ideias e nos coloca para pensar por imagens cinematográficas.

As ideias apresentadas surgiram de um exercício de recriar o que seria o conceito de direção pensado por Antonioni para realizar este filme. A partir do resultado obtido, percebi que servia como exemplo da forma de pensar por imagens cinematográficas. Para reunir alguns pensamentos de cinema que o filme apresenta, busquei referências que não necessariamente foram utilizadas na concepção do filme, mas que podem ser lidas como ressonâncias e apontadas algumas intertextualidades. Tive o cuidado de manter as referências no período anterior a idealização fílmica analisada.

Nos expressamos de diversas formas. Estas expressões surgem de escolhas que tomamos — como o que vestimos ou o qual livro estamos lendo — ou de criações que colocamos no mundo — como desenhos ou textos. Neste complexo processo, um sentido em particular atua como mediador: o olhar, o mais ativo dentre os sentidos do nosso corpo.

Sendo nosso olhar muitas vezes o principal mediator de nossas experiências, muitas estruturas se formaram para explorar esse potencial. Cada vez mais somos seduzidos por estratégias sofisticadas que captam o nosso olhar. A riqueza plástica talvez nunca tenha sido uma característica tão importante. E é por participarmos deste processo incessantemente que precisamos refletir sobre os sentidos que estas imagens produzem.

Este é um filme sobre cinema. Buscou-se mergulhar na arte da fotografia, que, uma a uma, concatenadas em uma sequência lógica, revelam uma história. A história do filme se passa nos anos 60 e apresenta Thomas, um fotógrafo de moda que, ao caminhar pelos parques de Londres, fotografa uma cena bucólica de um casal de amantes. A história revelada nos fotogramas de Thomas aponta para um crime. Para que se chegue nesta conclusão, um processo minucioso de revelação, ampliação e justaposição ocupa a tarde do fotógrafo.

Assim, o filme trabalha com a sensação de impotência de um artista ao revelar uma realidade mas de forma alguma poder ser agente de tal realidade. Esta narrativa tem como ponto de virada a tomada de consciência da impossibilidade de ação de um artista, e assim, da fragilidade de sua obra. Por isso, o filme pode ser dividido nestes dois blocos, o que guia dois conceitos distintos de direção. Porém, algo une estes dois momentos: estamos inseridos na forma de pensar cinematográfica.

Referências das imagens da esquerda à direita: fotografia de MihoFix, Ilustração de Piero Fornasetti (1913–1988) e frame do filme Blow Up (1966) de Antonioni

Nestas figuras, duas características são exploradas: tanto a propriedade de sequência ou justaposição entre uma foto, quanto o conceito de por uma fresta (ou enquadramento) termos acesso a apenas parte de uma realidade. É preciso ter em mente que esta é a base para o cinema: enquadrar e montar.

O primeiro bloco apresenta Thomas e seu meio. Sua posição de superioridade atrás da câmera com as modelos que sonham em ser fotografadas por ele e, consequentemente inserirem-se no mundo da moda. Seu meio é situado em tempo e espaço com ícones da cultura pop, o rock, a moda psicodélica, a liberdade sexual e as cores vivas. Este conceito é básico para todas as áreas do filme. Neste momento, a direção de arte cumpre um papel central para a construção desta ambientação. Além da direção de arte, e do importante trabalho neste filme da área de figurino, a fotografia é responsável por traduzir em ângulos e composições a superioridade do protagonista perante as modelos. Em termos técnicos a utilização de altos ângulos para as atrizes durante as sessões fotográficas e o staging devem guiar a posição de inferioridade por meio de planos subjetivos delas. Para a locação, este momento exige que Thomas atue em estúdios de fotografia, para ter o total controle de seu trabalho.

Pensando no elenco: Referências das imagens da esquerda à direita: Veruschka para Vogue, 1965, Jimmy Page no Madison Square Garden, 1977, Fotografia de Jane Birkin — O filme é motivado por ícones do mundo pop dos anos 60 como a super modelo Veruschka, o guitarrista Jimmy Page e o grupo inglês Yardbirds com performances experimentais , a atriz e cantora Jane Birkin, também inglesa e a própria moda colorida e psicodélica vigente.
Pensando na arte: Referências das imagens da esquerda à direita: arte feita por John Alcorn (1935–1992), desenho de Caroline Smith, Destiny, 1970, Mirum tweeds, 1969, Albúm Little Games, The Yardbirds, 1967. Para o efeito proposto, o figurino transita entre arte e moda, seguindo contrastes de matisse assim como a arte pop (exemplificada também nas expressões artísticas de postes e capas de álbuns).

Assim, apresentei algumas ideias e exemplos de como as imagens nos colocam para pensar. Passamos um pouco pela composição de elenco e pela direção de arte. Abaixo, adentramos nos aspectos da fotografia e da direção como forma de transmitir um significado.

Pensando em como o enquadramento apresenta as modelos: da direita para a esquerda, Arte de Alexandra Levasseur, Arte disponível no blog wish, Arte disponível no blog shojo manga, Arte disponível no blog scrapzion.

Estas são referências para a construção do conceito de superioridade do fotógrafo em relação às modelos. Nestas ilustrações e pinturas é perceptível uma relação de poder a qual estas mulheres estão submetidas. Esta é a posição de uma vulnerabilidade explorada por Thomas.

No processo de frame in a frame: Fotografias de Sergio Larraín Echeñique (1931), chileno que trabalhou para a Magnum Photos durante os anos 1960.

Estas fotografias são referências para o conceito de direção e fotografia na composição de quadros em que as vítimas de Thomas são enquadradas, dentro dos quadros, e tornam-se meras imagens. Assim, manifesta-se um diálogo com a estrutura de poder do fotógrafo e com o ato fotográfico de enquadrar, mas vendo-se além do quadro.

Frames do filme Blow-Up

Nestes quatro frames, pode-se analisar o resultado do conceito aplicado. Na primeira, Thomas fotografa a modelo Veruschka. Depois, à direita, vemos Thomas fotografar um editorial de moda com figurinos conceituais da moda vigente, com cores extravagantes. Na terceira, Thomas em uma posição de superioridade em relação a mulher que seria fotografada, ele com roupas e ela sem, ela acuada e ele com um leve sorriso. Na última, por fim, a modelo aparece para Thomas como imagem, reflexo.

Saindo deste bloco, acompanhamos também a saída de Thomas de seu mundo comum. Nesta fase do enredo, o personagem perambula pelos vazios parques de Londres, que acalmam os intermináveis estímulos da metrópole. Thomas concretiza a atitude blasé, muito bem descrita por Simmel em seu texto A metrópole e a vida mental (1903) (deixei abaixo o meu último texto que reflete exatamente sobre esta questão na atualidade). Thomas, estimulado por uma vida com tantos prazeres e informações, excita seus nervos até que não possam mais reagir.

Ainda na transição, o protagonista busca em um parque de Londres algumas fotografias de paisagem e encontra um casal. Em uma atitude comum, começa a tirar fotos sem a autorização. O conceito que permeia este momento é o voyeurismo — o olhar escondido que, por não ser de conhecimento de sua vítima, tudo vê. Assim, o encontro de Thomas com o casal possui um tom de malícia, pela sensação de estar espiando sem ser observado. A escolha de um parque é motivada pelo passar de um espaço controlado a ser fotografado, os estúdios, para um espaço aberto, sem que Thomas possa ter o controle de luz, cenário, ou até, controle dos objetos fotografados.

Da esquerda para direita: dois quadros de Giorgio de Chirico, 1912, a última, quadro de Jean-Honoré Fragonard, (1767), O Balanço

Nos quadros de Giorgio de Chirico a sensação de solidão de um casal predomina, uma vulnerabilidade ao imaginar que ninguém poderia estar os assistindo, porém existe o olhar do pintor que os retrata. A obra de Jean-Honoré Fragonard, (1767) é clássica para falar-se em voyeur e também é utilizada como referência.

Cena do filme Blow-Up
Frame do filme Blow-Up

O bloco dois é marcado pelo início de uma tomada de consciência de Thomas sobre sua arte e seu trabalho. Depois de se envolver com a mulher que havia fotografado no parque, decide revelar suas fotos instigado pela desproporcional necessidade de aquela mulher em ter seu filme devolta. É neste momento da narrativa que o filme passa a destrinchar toda a inquietação do fotógrafo ao seguir seu instinto de que algo de estranho foi documentado.

O que o filme pretende, neste bloco, é desenvolver o revelar, literalmente e figurativamente. Assim, tem-se o revelar das fotografias mas o revelar de uma história de um crime. A investigação é feita como uma metalinguagem, o investigador amplia as fotografias como um fotógrafo, mas também as monta como cineasta. Criando assim, um sentido nesta narrativa por ele montada. O que o move é pensar que sua ação de espectador, pode ir além, a ponto de impedir um crime. Porém, o que é revelado na verdade é um corpo ao chão, indicando que Thomas presenciou um crime, e não pode impedi-lo.

Por ampliações, close-ups ou blow-ups, Thomas passa a identificar uma figura embaçada, uma imagem confusa e enigmática, mas que para ele, seria um indício de um crime. Quanto mais ampliada e saturada fica a imagem revelada, mais aumenta seu grau de opacidade e as formas tornam-se menos nítidas e mais vagas. Por outro lado, a ampliação sempre vem acompanhada de uma promessa de visibilidade, de iluminação dos fantasmas de objetos que pareciam escondidos nos cantos e nas sombras das imagens.

Pinturas de Francis Bacon. 1954, Man in Blue. Os quadros de Francis Bacon são referências para tratar a opacidade e falta de nitidez das imagens ampliadas por Thomas.
Frames do filme Blow-Up

Ao atingir a primeira prova, que explica parte de seu mistério, a figura de um corpo ao chão e um assassino que aponta uma arma, Thomas passa por uma autorreflexão sobre sua impossibilidade de agir diante de tal revelação. O que este bloco se propõe é pela sensação de impotência e de consciência da fragilidade da arte da fotografia. Assim, diferentemente da posição de superioridade, agora Thomas está mais ciente da ilusão do poder da câmera e passa para uma posição mais tensionada.

“The flood of photos sweeps away the dams of memory. Never before has a period known so little about itself. In the hands of the ruling society, the invention of illustrated magazines is one of the most powerful means of organizing a strike against understanding… The ‘image-idea’ drives away the idea.”

“O fluxo de fotos varre as barragens da memória. Nunca antes um período sabia tão pouco sobre si mesmo. Nas mãos da sociedade dominante, a invenção de revistas ilustradas é um dos meios mais poderosos de organizar uma greve contra a compreensão … A ‘imagem-idéia’ afasta a idéia.”

Esta frase, de Siegfried Kracauer, conceitua parte de sua teoria cinematográfica publicada no início dos anos 60. Ela serve de inspiração para o conceito de que um mundo cada vez mais representado por imagens, fotografia, ou projeção, adquire precedência na construção do real e esta visibilidade passa a ter um valor de realidade.

Nesta posição tensionada, o protagonista sai perambulando pela cidade e acaba em um show de Rock, referenciando à cultura popular do Bloco I. Thomas participa de uma disputa histérica entre uma multidão de fãs por um pedaço de madeira da guitarra de um dos ídolos jovens. Porém, a passagem para o Bloco II, faz com que Thomas, depois de conseguir com grande esforço este precioso objeto, o jogue ao chão quando afasta-se da multidão.

Inspirado nos shows de rock dos anos 60, o músico quebra sua guitarra no palco como parte de seu show.

Esta é apenas uma referência inspirada em shows de rock do momento em que o filme se passa. São clássicas as fotos da banda The Who, onde os músicos jogam à multidão, de forma agressiva, restos de seus instrumentos.

Assim como as fotos de Thomas, ou como qualquer outra imagem, o pedaço de madeira perde seu sentido ao ser retirado de seu contexto. Assim, o filme reforça a a fragilidade de significados imagéticos. Prova-se que é a relação que nós, com nosso fluxo histórico e nossa memória que provê sentido a algo.

O conceito chave do filme de refletir sobre a realidade de imagens e seus diversos significados também é explorado pela escolha de personagens reais de figuras do mundo pop que compõe o filme. Ao inserir o real dentro de um filme, reforçamos a qualidade de ilusão, e não o contrário. Ao colocar ícones da moda e da música no filme, reforçamos o que o filme é: um filme.

Obras da esquerda para direita: Pablo Picasso Bottle of Vieux Marc, Glass, Guitar and Newspaper 1913 Tate; Picasso. collage of still life with violin (1913); Guitarra Programa estátua d’épouvante, 1913 por Georges Braque

Nestes quadros do cubismo sintético, objetos reais são colocados na tela. Esta é uma forte referência para tensionar a relação que o espectador possui com as imagens. Seriam estes jornais reais ou partes da arte? Seriam estes personagens reais ou parte do filme? Assim como nestes quadros, objetos reais colocados em telas (contextos artísticos) reforçam a ideia de ilusão. Não se trata mais de um jornal, mas sim de um pedaço de papel com letras.

Por fim, o que o filme pretende é tornar visível pela câmera aquilo que não víamos. O conceito final explorado no filme é o do mímico. É o artista que vê o que outros não veem. Porém, ao explorar objetos invisíveis, a plateia passa a vê-los. No filme, quando apresentados os mímicos, a câmera é fundamental para tal ilusão. Ao acompanhar um objeto invisível, o espectador passa a vê-lo. Ao desenvolver os sons de tal objeto, passamos a visualizar ainda mais. Esta passagem marca a dissolução entre o visível e o invisível, o real e o imaginário. Thomas, ao entrar na mímica, realiza esta transição.

Ensaio de Jean-Louis Barrault as the mime Baptiste Deburau in ’Les enfants du paradis’ (Marcel Carné, 1946)

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Giulia Tessitore
Revista Flusser

oficialmente, estudante de cinema. realmente, estudando arte, filosofia e política.