Procedimento Operacional Padrão

Giulia Tessitore
Revista Flusser
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10 min readDec 2, 2020

Por Giulia Tessitore e Rafaela Mayumi

Este relatório pretende analisar o documentário Procedimento operacional padrão (2008) de Errol Morris como documento que retrata o ápice da guerra ao terror americana. Para isso, será apresentada uma breve contextualização sobre os diversos conflitos que envolveram a região do Golfo Pérsico e como que estes conflitos estão associados com a disputa por recursos naturais, especificamente, pelo petróleo. Tendo como cenário a guerra do Iraque, o filme aponta para táticas de tortura aplicadas pelo exército americano para a obtenção de informações sobre Saddam Hussein.

O documentário tem como missão investigar o vasto arquivo de imagens feitas na penitenciária de Abu Ghraib, no ano de 2003, durante a Guerra do Iraque. Para isso, são realizados interrogatórios, ou entrevistas, com ex soldados americanos e reencenações. O que se têm, na conclusão, é uma história de guerra. O diretor, em seus interrogatórios, revela personagens contraditórios, como no caso de Sabrina. A entrevistada insiste estar em Abu Ghraib em uma missão fotojornalística, mas aparece sempre sorrindo nas mais tenebrosas imagens. Mesmo sem se colocar no papel de acusador, o filme, em sua montagem, consegue revelar estas contradições. Uma sequência que explicita um pensamento por meio da montagem é a aproximação de fotos marcadas como atos criminosos ou como procedimento operacional padrão. Não existe uma diferença essencial e convincente entre as imagens.

Frame do filme Procedimento operacional padrão (2008) de Errol Morris

A instabilidade política iraquiana

Para entender melhor o contexto da instabilidade vivida na região do Iraque, Michael Klare, em seu capítulo The politics of oil security, comenta sobre o interesse de diversas nações após as grandes guerras em reservas de petróleo. Assim, os cobiçados poços de Mosul teriam sido a principal razão para o interesse da região que formaria o Iraque de hoje. A partir da década de 40, os Estados Unidos passam a incorporar a mesma estratégia. Com o final da URSS, são realizadas novas operações, com o foco no golfo Pérsico.

Esta escolha foi estratégica por se tratar de uma região com maior tendência a conflitos. As tensões regionais são colocadas por HOBSBAWM em: “a rivalidade entre as potências ocidentais, Irã e Iraque, por posições no golfo Pérsico iria levar à bárbara guerra de oito anos entre o Iraque e o Irã revolucionário, em 1980–8 e, após a Guerra Fria, entre os EUA e seus aliados e o Iraque em 1991” (1995, p. 279). Com a dissolução da URSS, Estados Unidos são colocados como supremacia sem concorrentes. Assim, eles lideram uma coalizão multilateral contra o Iraque, aprovada após ter a soberania de um dos estados membros das Nações Unidas violada. A primeira guerra do Iraque, em 1990, começa com a invasão de Saddam Hussein ao Kuwait. E esta foi mais uma justificativa encontrada para o claro interesse econômico pelos recursos naturais da região.

Já em 2003, inicia-se um novo capítulo dessa história. Em março deste ano, a chamada pelos norte-americanos “liberdade iraquiana” representou mais uma demonstração de superioridade militar, compondo sua antiga estratégia de reafirmar sua hegemonia na região. Porém, foi apenas este momento, com a retirada de Saddam Hussein do poder, que permitiu aos norte-americanos uma ocupação mais efetiva na região e o acesso às reservas de petróleo.

A disputa por recursos e a guerra ao terror

Logo no início do século XX o petróleo começa a ser visto como recurso primordial para a guerra e, principalmente durante a Primeira Guerra Mundial, foi o combustível essencial para veículos militares. Pelo seu alto valor e importância, é visto como elemento de poder e barganha para quem o detém e o controla. A disputa torna-se um fator geopolítico principalmente quando as reservas de petróleo estão situadas em regiões instáveis, o que poderia comprometer a segurança deste recurso.

Como explicado no tópico anterior, a região do Golfo Pérsico e, em específico, o Iraque é um país que passou por diversos conflitos devido a instabilidade política interna e envolvendo a disputa por petróleo de interesses externos. Como explica Michael Klare, por conta do declínio da extração doméstica, países como os Estados Unidos buscam obter seus recursos de países com fontes mais abundantes. O cientista político aponta esta competição por recursos como a maior fonte potencial de conflitos mundiais quando escreve seu livro em 2001.

Para que os interesses de grandes potências, como os Estados Unidos, sejam mantidos, existe uma tendência de tratar recursos, como o petróleo, como essenciais para a segurança nacional e, com isso, legitimar o uso de forças militares para sua procura e proteção. KLARE (2005) exemplifica esta lógica com a declaração do então presidente americano Jimmy Carter em janeiro de 1980 de que o Golfo Pérsico seria essencial para a segurança dos Estados Unidos e por isso usariam “quaisquer meios necessários, incluindo a força militar” para assegurar um fluxo seguro ao país.

Após o ataque de 11 de setembro ao World Trade Center, instaurou-se nos Estados Unidos a guerra ao terror. Este episódio pode ser entendido como catalisador de um processo que já estava em curso. A partir daí, a premissa maior era a captura de grandes líderes terroristas.

Para entender melhor origens do terrorismo, Chomsky, um sociólogo e ativista político, pode oferecer algumas pistas. Em seu livro “Quem manda no mundo?”, o autor dedica sua primeira metade para mostrar como os atos terroristas divulgados pela mídia internacional não passam de represálias por crimes anteriores cometidos pelos EUA e seus aliados. A guerra ao terror é um projeto para a invasão e o controle dos recursos — petróleo principalmente. Aparentemente, não existe limite para as ações deste Estado que se demonstra um dos maiores terroristas da história.

“The United States accounts for 70 per cent of total global spending on national security agencies. It is estimated that from 2001 to 2014 domestic security agency expenditure in the United States has been US$1.1 trillion, an average of US$73 billion a year. While national security agency expenditure isn’t fully devoted to counterterrorism, it is a major component of most intelligence agencies in the developed world. Forty-four per cent of expenditure by the United States domestic security agencies is estimated to be devoted towards counterterrorism.” (GLOBAL TERRORISM INDEX 2015, página 64)

Táticas de guerra

O filme deste relatório, mesmo tendo como base de conflito a guerra do iraque e a problemática disputa por petróleo do golfo Pérsico, se aprofunda em táticas de guerra. Impulsionados pelo lema de guerra ao terror, novos procedimentos de interrogatório são colocados em prática, utilizando-se ora de um procedimento operacional padrão, ora de tortura. O que o filme deixa claro é a similitude entre estas opções. As fotos reveladas no filme mostram claras evidências de crimes de guerra e são provas do descumprimento da Convenção de Genebra, em particular, os protocolos que se referem ao tratamento justo aos prisioneiros de guerra (BUTLER, 2015, p. 120–1). Porém, mesmo o ocorrido em Abu Ghraib podendo ser visto como caso isolado, GIROUX (2010) relata as diversas iniciativas institucionais para o descumprimento de acordos internacionais de direitos Humanos. Como exemplo, o autor cita o comentário de Alberto Gonzalez, o então Advogado-Geral da União no governo Bush que, em janeiro de 2002 acusa a Convenção de Genebra de ser “pitoresca”, senão “obsoleta”, e que certas formas de métodos tradicionalmente não-autorizados de infligir dor física e psicológica podem ser justificadas sob a égide da luta contra o terrorismo.

Seria ingenuidade dizer que a tortura e o POP utilizados em Guantánamo e em Abu Ghraib são um efeito colateral da guerra e que seus mandantes foram influenciados pelo desespero de se obter uma informação que poderia garantir a segurança mundial. Mas seria de uma ignorância maior ainda dizer que a guerra contra o terrorismo fez com que os EUA perdessem seu norte e se esquecesse temporariamente de seus valores.

“Ao longo dos últimos sessenta anos, vítimas em todo o mundo padeceram do ‘paradigma da tortura’ da CIA, desenvolvido a um custo que chegou a 1 bilhão de dólares anuais, de acordo com o historiador Alfred McCoy em seu livro ‘A question of torture’, em que ele mostra como os métodos de tortura da CIA se desenvolveram na década de 1950 e vieram à tona, com pouca alteração, na prisão de Abu Ghraib” (CHOMSKY, 2017, p. 51)

Os EUA escolheram invadir o Iraque com a desculpa de uma operação que o libertaria no contexto da guerra contra o terror, implementada pela segunda vez depois do 11 de setembro. Foram utilizados procedimentos não só autorizados pelo alto escalão como desenvolvido por mais de 60 anos pela CIA, mesma técnica aplicada em Guantánamo anos antes. Não existe inocência, até mesmo para aqueles que escolhem se alistar no exército americano, eles conhecem a história e o fazem mesmo assim.

Depois desse deslize que fez com que o presidente dos EUA precisasse se desculpar com a comunidade internacional devido aos incidentes de tortura ‘fora de seu controle’ é necessário tomar medidas drásticas: terceirizar em larga escala a tortura. Allan Nair, um jornalista investigativo americano que “(…) revelou o papel do governo dos EUA no estabelecimento e financiamento do grupo paramilitar haitiano, envolvido em violações dos direitos humanos”, nos elucida dizendo que a proibição da tortura proclamada por Obama omite a tortura sistêmica na qual não são mãos norte-americanas a praticá-la e sim estrangeiras sob o patrocínio dos Estados Unidos, “Obama não interrompeu a prática da tortura, mas meramente a reposicionou”.

O filme analisado trás à tona ainda uma questão sobre o discurso de ódio contra grupos religiosos que a guerra ao terror carrega. O que percebe-se nos relatos de procedimento operacional padrão são técnicas para a obtenção de informação a partir do uso de vulnerabilidades específicas do mundo islâmico. Um contraponto interessante que BUTLER oferece a esta questão é que o próprio “sujeito do Islã também foi construído através da tortura, e os textos antropológicos, bem como os protocolos de tortura, faziam parte da produção desse sujeito dentro do discurso dos militares” (2015, p. 184–5).

Alexander, o homem que conseguiu a informação para tornar possível a captura do chefe da Al-Qaeda, diz que o uso da tortura é contraproducente levando à morte mais soldados americanos do que o próprio 11 de setembro (CHOMSKY, 2017, p. 57). Ele afirma que nenhuma informação útil é extraída dessa maneira. Os EUA não simplesmente declararam a guerra ao terror como também estão produzindo terroristas e isso não parece ser um efeito colateral em prol da paz. Estrangeiros, como represália aos abusos em Guantánamo e em Abu Ghraib, colocaram em curso atentados terroristas e suicidas.

Conclusão

O filme analisado cumpre um papel político claro. Não é capaz de libertar prisioneiros, ou reverter os estragos já causados. Porém, oferece um espaço de reflexão que pode resultar em uma comoção a partir do horror como a guerra ao terror vem sendo conduzida e da banalização que procedimentos de tortura são avaliados como procedimentos operacionais padrões. A divulgação de imagens possui um poder enorme de despertar emoções. O que o filme é capaz de fazer é contextualizar as mais possíveis exatas circunstâncias em que ocorreram, de forma cronológica e acrescidas de relatos dos participantes, para que o espectador elabora sua reação.

É exatamente por este poder que as imagens possuem que a exibição de imagens de guerra são reguladas. Como explica Butler (2015, p.67), quando as fotos da prisão de Abu Ghraib foram divulgadas nos Estados Unidos, muitos jornalistas conservadores defendiam que mostrá-las seria um comportamento antiamericano. Neste raciocínio, a divulgação dessas fotos, ou de fotos de mortos na guerra, poderia minar o esforço da operação e colocar a nação em perigo. Faria parte de uma estratégia pelo bem comum da nação o ocultamento dessas evidências de tortura. Porém é desta forma que a comoção é regulada pelo Estado. As ações de Abu Ghraib são revoltantes porque foram registradas, entraram para o histórico da nação norte-americana. Mas o que realmente deveria ser revoltante, e não só para o povo estadunidense, é o que ainda está sendo omitido. É digno de espanto o que os EUA retirou da história da humanidade.

No filme, os militares de baixa patente que relatam suas vivências no Iraque admitem terem participado ou ignorado os crimes, mas também mostram certa naturalidade com tudo o que ocorreu. Aquele era o “normal” uma vez que estavam em guerra. Os militares produzidos pelos EUA não tem escolha a não ser acatar ordens, mesmo que isso destrua qualquer percepção moral e ética do mundo cívico. Não existe lugar para os soldados que voltam da guerra no mundo civilizado, e não somos nós que estamos dizendo, são eles:

“Em 2013, o website oficial do Departamento da Defesa dos Estados Unidos anunciou a estatística de que o número de suicídios dos militares em 2012 tinha excedido em muito o total daqueles militares mortos em batalha (…) Alega-se que isto é devido ao stress de guerra. Mas os factos revelam que 85% de suicídios no exército não estiveram em combate — e 52% não foram sequer destacados.”

O procedimento operacional padrão não está matando, torturando e destruindo apenas terroristas ou inocentes do oriente médio, está destruindo o jovem americano patriota que promete dar a vida por sua nação. É notável, mas não surpreendente, como o indivíduo entrega tudo e o Estado nem hesita em colocá-lo no matadouro. Quando o Tio Sam chama, é possível ver do céu o rastro de destruição do procedimento operacional padrão. O POP é uma via de mão dupla. Em Abu Ghraib, como dito no documentário, os verdadeiros crimes foram cometidos durante os interrogatórios, ou seja, não foram documentados e os responsáveis não responderam ou sequer foram mencionados.

Cartaz que mostra o Tio Sam recrutando militares para a Primeira Guerra Mundial. Ilustrado por James Flagg em 1917.

A preocupação com a violência promovida pelo terrorismo é sem dúvida uma preocupação com a segurança mundial, entretanto se comparado com a taxa de homicídios global, por exemplo, esta é 13 vezes maior que a taxa global de terrorismo Ou seja, a prioridade dos EUA não é simplesmente minimizar a violência global ou tratar dos piores obstáculos que não permite alcançar uma possível paz entre as nações (GLOBAL TERRORISM INDEX, 2015, p. 30). Pelo contrário, a indústria bélica continua em primeiro lugar no ranking. Em 2018 os EUA tiveram despesas militares de 648,8 bilhões de dólares (GLOBAL PEACE INDEX 2019, p. 62). Talvez, o resto do mundo devesse investir em bankers em seus quintais e esconderijos secretos em suas casas e apartamentos.

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Giulia Tessitore
Revista Flusser

oficialmente, estudante de cinema. realmente, estudando arte, filosofia e política.