Ao Vasco, tudo! Para mim, o dobro!

‘Cada um carrega a sua cruz’, diz o ditado; o Vasco carrega duas: uma no peito e outra na sala da presidência

Revista Fora da Área
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9 min readAug 20, 2015

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Por Yuri Eiras

Eurico ama o Vasco da Gama porque ama as tradições passadas por seus pais; sua família é toda Vasco e o Vasco é sua família. Seu Álvaro, velho português, ensinou três lições para o pequeno que ele nunca mais esqueceu: a receita de uma fornada de pão francês (1 quilo de farinha, 400 gramas de açúcar e 250 gramas de sal); honrar as tradições de sua família e amar o Vasco da Gama acima de tudo. Todo o resto ele aprendeu sozinho mesmo.

Tu tens o nome de um marechal brasileiro

O casal Álvaro e Alexandra vieram para a cidade do Rio de Janeiro há quase oitenta anos atrás, fugindo da ditadura salazarista de Portugal. Abriram um comércio, atividade de boa parte da colônia lusitana, no bucólico bairro da Urca: a Padaria Miranda. O jovem Eurico, que carrega esse nome em homenagem ao então presidente brasileiro Eurico Gaspar Dutra, não devia ter mais de quinze anos quando distribuía os pães na vizinhança com sua fiel bicicleta, todos os dias pela manhã. Nas horas vagas entre o horário das aulas no tradicional colégio Santo Inácio e a ajuda no balcão da padaria, ele sempre dava uma escapada rumo a São Januário para acompanhar o seu Vasco da Gama, um pedaço daquela Arouca que sua família havia deixado anos antes. Era Portugal instalado em São Cristóvão.

Seria uma linda história de amor e identificação a um clube se não estivéssemos falando de Eurico Miranda. Brigas, ameaças e o seu sempre dedo em riste fazem da figura um dos dirigentes mais controversos da história do futebol brasileiro. Matérias em jornais e revistas de trinta anos atrás já atentavam para o risco de Eurico Miranda se tornar o homem-forte do Vasco da Gama. Ele se tornou, de fato, e colecionou desafetos por onde passou: brigou com ídolos do clube, jornalistas, sócios, torcedores, Rede Globo. Só não brigou com Deus porque é um Católico Apostólico Romano convicto e frequenta missas sempre que pode.

Entre muitos de seus oponentes está Davidson de Mattos. Das pedras gigantescas no sapato mocassim do presidente, ele é apenas uma poeirinha. Professor por profissão e liderança durante muito tempo da torcida Guerreiros do Almirante, Davidson foi expulso recentemente do quadro de sócios do Vasco da Gama. Sua história de amor ao Cruzmaltino é bonita, como a de Eurico também é. A diferença está na transparência.

Eurico Miranda, a tua fama assim se fez

Davidson, como poucos, anteviu o que seria a política vascaína com a participação de Eurico Miranda. “Eu tenho orgulho de ser oposição às posturas dele desde o final da década de 1980”, diz o professor sobre o Sapo, apelido que dá a Eurico. “Percebi muito antes da maioria que ele é a antítese do Vasco”, afirma. “O Vasco tem uma história progressista, é um clube honesto, onde não há máculas de politicagem”, completa.

Foto: Acervo O Globo (edição de 26/11/1969)

Muito antes disso, em 1969, o primeiro ato de Eurico foi estampado nos jornais. A sua mão direita foi fotografada pelo Jornal O Globo (publicado em 26 de novembro do mesmo ano) desligando o quadro de energia elétrica da sede náutica do Vasco da Gama. A ação foi a fim de impedir a votação pela cassação do presidente do clube na época, Reinaldo de Matos Reis. Eurico, aliado político do então presidente e já vice de patrimônio tinha apenas 25 anos, mas já dava seu primeiro passo como figura importante dos bastidores do Cruzmaltino.

Sócio proprietário do clube desde 2003, Davidson tem uma vida frequentando as arquibancadas de São Januário. Foi integrante da Força Jovem do Vasco na década de 1980 e da Tulipas Vascaínas logo depois, quando se afastou após o nascimento de seu filho. Figura conhecida entre os torcedores, Davidson esteve na liderança da torcida Guerreiros do Almirante entre 2008 e 2015. Não foi fundador, mas foi o capo durante um bom tempo. Capo é a denominação dada àqueles que são liderança nas barra bravas.

Guerreiros do Almirante em São Januário, no amistoso contra o Ajax (HOL). Foto: Luis Felipe Capellao

Afastou-se da liderança da Guerreiros logo após circular a notícia que Eurico Miranda voltaria a se candidatar para a presidência do Vasco. Para a torcida não pagar o pato de sua oposição ferrenha ao candidato, Davidson entregou o cargo. “Percebendo que em caso de vitória do Sapo a torcida pagaria pela minha postura, eu decidi me afastar e entreguei a liderança. Já tinha notificado desde outubro que minha luta seria essa. Eu não aceitaria entregar o Vasco a esses canalhas sem lutar. Parti pra guerra” declara Davidson.

A mesma mão que desligou o quadro de energia em 1969 aponta o dedo para adversários políticos na social de São Januário. É a mesma que assina documentos diversos, a favor do Vasco ou contra. É a mão que se ergue ao gritar ‘Casaca! Casaca! Casá-casá-casaca!’ em dia de conquista. É a que ele usa, vez ou outra, para fumar seus charutos cubano Cohiba, o preferido também de Fidel Castro. É a mesma mão que Eurico esticou para cumprimentar Davidson na única vez em que eles estiveram frente a frente, em 2013.

Ele tentou um contato, mas o professor, que estava na secretaria para regularizar sua situação de sócio, negou o cumprimento. Disse a Eurico que não apertaria sua mão. ‘Apertaria a mão de qualquer pessoa do Vasco, menos a sua’, afirmou, convicto.

A expulsão de Davidson do quadro de sócios do Vasco se deu após a divulgação, via Whatsapp, da foto de um prontuário médico recente de Eurico Miranda. Ele a publicou em um grupo fechado de vascaínos no Facebook, junto com uma frase onde ele dizia estar na torcida para que Eurico morresse ‘o mais dolorosamente possível’ e, de preferência, ‘levasse a corja junto’. Outro sócio, aliado de Eurico e, segundo Davidson, organizador do ‘Mensalão do Vasco’ na Baixada Fluminense viu a publicação. Ele printou, enviou para o site Casaca! e a notícia chegou ao gabinete da presidência.

Sob o artigo 34 e 35 do estatuto do clube, Davidson foi cassado. Seus advogados já fazem sua defesa prévia no Vasco. O professor sabe que ‘o sistema do clube é viciado’ e ele estará representando contra quem o expulsou. Mas não desiste.

Na política do Vasco és imortal

Eurico, quando jovem, passou para a faculdade de Medicina, mas largou para tentar Fisioterapia. Exerceu durante dois anos a profissão, mas desistiu novamente para voltar às carteiras da universidade, desta vez para cursar Direito. Não saiu mais. Entrou para o quadro de funcionários do Vasco aos 21 anos, onde era responsável pelo departamento de cadastros. O filho de Seu Álvaro só passaria a se tornar parte vital da política do clube, entretanto, a partir dos anos 1980. Ao lado de seu aliado — e antes adversário — Antônio Soares Calçada, Eurico passou a exercer a função que sempre quis: era ele quem fazia o contato direto com os atletas e, consequentemente, aparecia nos noticiários. Era quem executava as ações, solucionava os problemas — eloquente como o quê, ao contrário de Calçada.

Foto: Revista Placar, edição de agosto de 1988

“Ele é um mau-caráter que me deu um grande prejuízo moral e financeiro”, ou “Ele é um líder, um revolucionário, que luta de peito aberto pelo Vasco e é ótima pessoa”. As duas declarações de Gabriel Ferreira e Amâncio César, respectivamente, poderiam ser contextualizadas na divisão que existe atualmente na torcida vascaína: há quem odeie e há quem ame Eurico Miranda. As frases, entretanto, foram ditas para a Revista Placar de 1988, onde uma reportagem sobre a falência da recém-nascida Copa União dava o tom do comportamento polêmico de Eurico desde aquela época.

Eurico Miranda era vice-presidente do Clube dos 13, liga paralela à Confederação Brasileira de Futebol que organizou a Copa União de 1987. Para confirmar o regulamento da competição que já estava sendo disputada, o dirigente Cruzmaltino foi para a reunião com a CBF representando o Clube dos 13. Carlos Miguel Aidar, hoje presidente do São Paulo Futebol Clube, é taxativo no documentário sobre a Copa União: ‘Ele nos traiu’. Eurico se defende, dizendo que ‘nunca foi a lugar nenhum com ordem expressa de ninguém’.

O resultado da reunião foi, logicamente, polêmico: Eurico cedeu à pressão da CBF e aceitou o cruzamento dos campeões Módulo Verde (Copa União) com o Módulo Amarelo (competição da CBF). Desta disputa sairia o campeão brasileiro. Eurico argumenta que havia o risco do campeonato não seguir, já que as rodadas estavam acontecendo e ainda não existia regulamento.

Em ritmo de festa

O Vasco da Gama montaria um esquadrão para jogar a Copa João Havelange de 2000. O time, por méritos, chegou à final contra o São Caetano ao vencer o Módulo Azul, enquanto o clube do ABC Paulista faturou o Módulo Amarelo. A equipe de São Januário contava com Helton, Jorginho, Juninho Paulista, Romário, Euller, Juninho Pernambucano, Júnior Baiano, entre outros craques. Uma máquina.

O primeiro jogo foi disputado no Palestra Itália, em São Paulo, e terminou empatado em 1 a 1. A segunda partida foi jogada — ou pelo menos iniciada — em São Januário. Aos 23 minutos do primeiro tempo, uma briga nas arquibancadas resultou em um dominó humano. Quem estava perto da confusão tentou sair e empurrou quem estava lá embaixo. O resultado foi a queda do alambrado de São Januário e 168 feridas. Ambulâncias no gramado e até um helicóptero para resgatar os feridos foram rapidamente acionados. Durante a indecisão de reiniciar ou não a partida, o então governador do Rio de Janeiro Anthony Garotinho ligou para o secretário de defesa civil, que estava no gramado. A ordem era cancelar o jogo. Eurico Miranda ficou irritado com a decisão e, por telefone, chamou-o de ‘incompetente e frouxo’.

Foto: Jorge Araújo/FolhaPress

O presidente do Vasco da Gama sempre se defendeu da acusação de que ele queria o retorno do jogo de qualquer forma. Costuma dizer que foi o que mais ajudou e pediu para que a partida fosse interrompida enquanto não houvesse o atendimento a todos os feridos. Quando isso foi realizado, pediu, de fato, o reinício.

Foto: Antônio Gaudério/FolhaPress

A Rede Globo transmitia a partida e era a favor da interrupção do jogo. Eurico diz que a emissora, na época, o acusou de querer o reinício da partida de qualquer forma. Por isso o presidente ordenou que o Vasco entrasse em campo com a logo colorida do SBT, principal concorrente da Globo na época, na terceira final do campeonato, disputada no Maracanã. Com gols de Juninho Pernambucano, Jorginho Paulista e Romário, o Vasco da Gama sagrou-se campeão brasileiro daquele ano ao vencer o São Caetano por 3 a 1. A comemoração foi, é lógico, ‘em ritmo de festa’. Sobre a polêmica estampada na camisa Cruzmaltina, Eurico afirmou na época que “foi uma homenagem ao SBT” e uma forma que encontrou “de mostrar que a gente não pode ter monopólio. Precisamos estimular a concorrência”.

Concorrência é algo que Eurico até gosta, mas bem longe do Vasco.

Agradecimento especial a Davidson de Mattos, que colaborou desde o início para a produção da reportagem.

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