Até o céu iremos cantar

A carta de um filho torcedor a sua mãe

Revista Fora da Área
Revista Fora da Área
8 min readJul 2, 2015

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Mãe,

o que você tanto temia aconteceu como pode ver diante de seus olhos. Nem eu próprio sei explicar o que não tem explicação para você e te deixará perplexa e revoltada o resto da vida. Só sei dizer que esses últimos tempos com minha vida próxima à sua foram os mais intensos de toda a minha. Foi tudo tão rápido assim como rápido meu sangue já secou antes que você agora abraçasse agoniada meu corpo. Foram alguns minutos que o pau quebrou. É isso que tem que se falar sem esconder nem fazer rodeios. Isso já não adianta mais. É toda a adrenalina que procurei!

Parecia que abriu uma janela que confundiu o tempo e o espaço e toda a realidade desse mundo grande foi suspensa e todas as forças do universo cabiam em algumas centenas de pessoas que éramos nós contra eles. Os segundos pareciam que duravam horas. E tudo se resumia a socos, barradas e pontapés. Era incrível!

O que já era intenso depois foram alguns segundos que tudo ficou mais intenso, nos quais a dor que senti foi absoluta mas muito rápida. No começo era quase igual aquelas bebedeiras que a gente toma e a cabeça parece que nunca vai parar de girar quando se deita na cama. Mas a diferença que agora a brutalidade de tudo não tem como pensar que algo vai melhorar. E já não sei se todo o filme de minha vida que passou em minha mente foi entre as pancadas e o fato consumado. Ou se foi depois dele. O que importa é que estou aqui. Bem longe de você. E é esse o fato que a partir de agora você tem que aceitar. E que foi nesse breve instante de revelação que percebi todo o sentido do que venho lhe contar. A intensidade dos fatos atropelou minhas lembranças como um moinho de vento mas o que posso mais lembrar de imediato é isso.

E agora, horas depois, você já informada pelas autoridades vai atrás de recolher meu corpo e se agarrar a ele. Cheia do arrependimento que eu nunca desejei que você passasse e agora é a única coisa que você se apega. Como já não adianta mais demagogia, mesmo sabendo que um dia iria me arrepender eu ocultava os perigos de cada caminhada a cada domingo de clássico todas as vezes que você me questionava. Sei que você vai lembrar sempre dos muitos domingos que não teve tranquilidade e pediu pra eu não me envolver com isso, que você tentava pactuar comigo que ‘’ok, mas vai ser a ultima vez que fará uma loucura dessa”. Mas eu obviamente não me dava por satisfeito. E você não pode se sentir culpada, porque fui eu quem procurei esse aventura toda que me sacudisse tanto assim.

Nunca me convenceu que existisse apenas um jogo concreto e racional somente ali nas quatro linhas. Com o jogo do campeonato ficando cada vez mais distante da realidade do torcedor minhas visões foram se clareando para encontrar as entranhas de um outro jogo que só nós entendemos. Pode nos chamar de bandos mesmo mas era assim que encontrávamos de volta tudo de passional que vinha nos sendo negado cada vez mais. Era assim que a gente expressava todas as semelhanças entre nós contra todas as diferenças que temos contra aqueles outros. E isso era o maior barato a gente se sentir fortalecido por isso. Não só na nossa cabeça, mas a gente tava e ainda tá muito fortalecido. E mesmo com toda sua experiência de vida eu tentei humildemente te ensinar que não se pode aceitar silenciar esse animal dentro de nós.

Sei que você não concordaria com isso, acha agressivo e bárbaro demais, mas eu já desisti de te convencer de algo faz tempo e queria apenas que respeitasse o que muitos de nós torcedores fazemos. E principalmente sentimos. Só espero que com essa carta te ajude a pelo menos começar a pensar sobre isso…

Sei que você sempre achou o futebol todo violento e até minha forma de me envolver com ele desde o inicio de tudo também. Achava uma grande bobagem eu me envolver tanto com as emoções do futebol desde pequeno só porque ouviu dizer que um dia alguém teve um infarto por isso. E você só tentava me proteger.

Só te peço que não sinta raiva do futebol por isso. Não de entrevistas às televisões, nem faça campanhas contra ele diante das pessoas em sua volta. Por favor, já são as famílias que com seu desconhecimento tentam matar o futebol um pouco a cada dia, não seja você mais uma a tramar com isso. Quando precisar desabafar que por favor o seja somente com os mais próximos. Isso porque o nosso futebol é a melhor coisa que já inventaram. Pobre de quem não sente isso. Não é porque se equivocaram alguns que tem que pagar o futebol por isso. Mas sim tem de sobra tudo que são as paixões humanas, e olha que as anti-humanas também.

Sei que você achava ele banal. Uma distração e até mesmo uma perda de tempo. Mas certa fase da minha vida percebi que não conseguiria me dedicar a outra coisa com tanta paixão como a ele e precisei ir até a raiz e provar os limites dessa paixão. Não era conquistando um emprego, uma carreira ou um casamento como as coisas que a maioria se contenta nesses caminhos traçados de sempre que a gente ia se dar por satisfeito de dar sentido pra vida pra viver por algo e não apenas sobreviver. Era preciso tanta adrenalina a cada clássico para romper o tédio de tantos dias seguidos. Sei que você pode não acreditar mas foi isso tudo que senti e me envolvi.

Chegou um ponto de minha vida que isso não tinha mais volta, dominava todas as expectativas e todos os planos. Até que me coloquei essa tarefa como a principal em minha vida: experimentar intensamente o futebol e provar ao mundo sua grandeza. Até que paguei por esse preço. Deve ter sido um erro a essa altura dos fatos mas não tenho como me arrepender. Aqui do outro lado seguirei cantando e torcendo, pois aprendi na bancada que isso é possível e nossa paixão é muito mais importante que uma questão de vida ou morte. Afinal, nunca estive sozinho nessa empreitada nem muito menos a parti de agora estarei. O futebol é muito fácil de fazer amigos e guardar recordações para aqueles que o levam assim no peito. Sei que não foi em vão ter dedicado tantos anos de minha vida, ainda que curta, a provar ao mundo o que tem de tão incrível o futebol.

Por fim te peço que não se livre dos meus tantos objetos de futebol guardados em sua casa se vão lhe trazer más lembranças. Não os jogue fora, mas somente os encaminhe para os amigos tão fanáticos quanto eu pelo futebol que darão uso a eles e seguirão com nossa união. Seja pela nossa torcida ou também seja pelo futebol como um todo ficou mais do que provado pra quem quiser enxergar que essa paixão é para além da vida. Não deixe de procura-los, ou de recebe-los, que te dou essa missão agora! Eles saberão que isso tudo que fizemos foi por muita diversão e muita amizade, sem dúvida, mas acima de tudo foi muita solidariedade.

Naquele instante que as visões foram se clareando eu vi que de cada dia de emoção assim se for somar todos com o futebol nós tivemos uma causa em comum. Que unimos nossas semelhanças em meio a nossas diferenças e não deixamos nenhum ego falar mais alto. Nós ainda queríamos usar o futebol como um bom pretexto para manter os amigos mais próximos e ser um antídoto, ora contra a monotonia da vida, ora contra sua velocidade dos tempos modernos, ora contra a modernização do futebol . Essa velocidade que nos arrebatava e nos deixava desterrados, sem ter com o que se apegar, até que se nosso sentimento pelo clube e pelo futebol era a ultima coisa que restou, não aceitaríamos perde-lo com apatia.

O que você não entende, minha mãe, é que mesmo estando próximos dos perigos nós só queríamos nos divertir…E por muitas vezes assim fomos felizes! E com certeza também fomos livres nas nossas escolhas!

Você sempre enxergou mais o lado ruim do que o lado bom do dia a dia de torcedor. Ao menos que te traga paz que nesses momentos extremos ainda temos gente nas torcidas que param pra pensar e veem que, apesar das cores que cada um defende, a realidade de todo torcedor tem mais semelhanças do que diferenças. Se você sempre gostou de rezar, reze também pra que essas ideias sigam iluminando as mentes e os corações de vários outros guerreiros de bancada até que todos fiquem fechados numa mesma sintonia: bandido muito pior é aquele de colarinho branco. E covardia mesmo é ele fazer de tudo pra colocar uma torcida contra a outra e a sociedade contra todas elas. O maior inimigo do nosso bonde não deveria ser o torcedor rival que veste outra cor. Somente assim que vão ter menos mães que vão chorar numa noite de domingo e por toda a vida quando um filho jovem tiver que ir.

O texto foi produzido por um integrante de uma Torcida Organizada de São Paulo. Apesar disso, esta carta é fictícia.

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